D I R E I T
O E
L I N G U A G E M
“Decompondo-se o
fenômeno do conhecimento, encontramos a linguagem, sem o que o conhecimento não
se fixa nem se transmite. Já existe um quantum de conhecimento na percepção,
mas ele se realiza mesmo, na sua plenitude, no plano proposicional e, portanto,
com a intervenção da linguagem. “Conhecer”, ainda que experimente mais de uma
acepção, significa “saber proposições sobre”. Conheço determinado objeto na
media em que posso expedir enunciados sobre ele, de tal arte que o conhecimento
se apresenta pela linguagem, mediante proposições descritivas ou indicativas.
Por outro lado, a cada momento se confirma a natureza da linguagem como
constitutiva de nossa realidade. Já L. WITTGENSTEIN afirmada, na proposição
5.6, do Tractatus Logico-Philosophicus, que “os limites da minha linguagem são os limites do meu
mundo”, que dito de outro modo, pode
significar: meu mundo vai até onde for minha linguagem.” (Paulo de Barros
Carvalho).
SERVIÇO DE JURISPRUDÊNCIA (DJU, 17.03.1995,
Ementário nº 1779-2)
HABEAS CORPUS Nº
72391-8 – DF, STF, Pleno, por unanimidade, Relator
Ministro Celso de Melo [...], acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal
não conhecer do pedido de habeas corpus.
E M E N T A: HABEAS
CORPUS – IMPETRAÇÃO REDIGIDA EM LÍNGUA ESPANHOLA – EXTRADIÇÃO – FORMULAÇÃO
DE PEDIDO DE CLEMÊNCIA AO PRESIDENTE DA REPÚBLICA – AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DE
ATO CONFIGURADOR DE ILEGALIDADE OU ABUSO DE PODER – HC NÃO CONHECIDO.
- É inquestionável o
direito de súditos estrangeiros ajuizarem, em causa própria, a
ação de habeas corpus, eis que esse remédio constitucional – por
qualificar-se como verdadeira ação popular – pode ser utilizado por qualquer
pessoa, independentemente da condição jurídica resultante de sua origem
nacional.
- A petição com que
impetrado o habeas corpus deve ser redigida em português, sob pena de
não-conhecimento do writ constitucional (CPC, art. 156, c/c CPP,
art. 3º), eis que o conteúdo dessa peça processual deve ser acessível a todos,
sendo irrelevante, para esse efeito, que o juiz da causa conheça,
eventualmente, o idioma estrangeiro utilizado pelo impetrante. A
imprescindibilidade do uso do idioma nacional nos atos processuais, além de
corresponder a uma exigência que decorre de razões vinculadas à própria
soberania nacional, constitui projeção concretizadora da norma inscrita no art.
13, caput, da Carta Federal,
que proclama ser a língua portuguesa “o idioma oficial da República Federativa
do Brasil”.
- Não há como admitir o
processamento da ação de habeas corpus se o impetrante deixa de atribuir
à autoridade apontada como coatora a prática de ato concreto que evidencie a
ocorrência de um específico comportamento abusivo ou revestido de ilegalidade.
- O exercício da
clemência soberana do Estado não se estende, em nosso direito positivo, aos
processos de extradição, eis que o objeto da indulgencia principis
restringe-se, exclusivamente, ao plano dos ilícitos penais sujeitos à
competência jurisdicional do Estado brasileiro. O Presidente da
República – que constitui, nas situações referidas no art. 89 do Estatuto do
Estrangeiro, o único árbitro da conveniência e oportunidade da entrega
do extraditando ao Estado requerente – não pode ser constrangido a abster-se do
exercício dessa prerrogativa institucional que se acha sujeita ao domínio
específico de suas funções como Chefe de Estado.”
DIREITO E LINGUAGEM –
Lição 7
(Manual de Introdução ao Estudo
do Direito, Dimitri Dimoulis, 4ª ed., SP, RT, 2011, p. 133/143).
1.
As
línguas do Direito
Todas as fontes
do direito brasileiro são redigidas em idioma português. As aulas de direito são ministradas na
mesma língua, que é também utilizada pela administração pública e pelos
tribunais. Isso corresponde, aliás, a uma obrigação constitucional: “A
língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil” (art.
13, caput, da Constituição Federal).
Pode então
parecer que o estudante de direito
não deve se preocupar muito com questões de língua, já que domina o português.
Essa aparência engana por completo. Em primeiro lugar, como já mencionamos na
Introdução (Este livro de introdução ao direito foi construído a partir de
minha experiência no ensino universitário. O Direito moderno é, muitas vezes,
de difícil compreensão para os leigos e para aqueles que iniciam seu estudo.
Tomemos como exemplo o art. 1.197, do Código Civil: “A posse direta, de pessoa que tem a coisa em seu poder,
temporariamente, em virtude de direito pessoal, ou real, não anula a indireta,
de quem aquela foi havida, podendo o possuidor direito defender a sua possa
contra o indireto”. É evidente que a frase
está escrita em bom português.
Porém, não é compreensível por quem não tem conhecimentos jurídicos. Isso
ocorre porque o mundo jurídico utiliza seus códigos de comunicação, que
divergem dos ordinários. Com efeito, para entender o art. 1.197 é necessário
saber o que significa “posse” e quais suas espécies do direito civil), muitos
termos utilizados no direito são desconhecidos pela maioria da população. Basta
consultar o índice no Código Civil na letra “A” para encontrar palavras como
“acessão”, “adjunto”, “álveo”, “anticrese”, “aquestos” e “avulsão”.
Em segundo
lugar, muitas palavras da língua ordinária adquirem significados particulares
no direito. Exemplo: a palavra “ação” é utilizada no direito processual para
indicar o direito de invocar a tutela jurisdicional e não para designar
qualquer ato ou efeito de atuar, como no idioma comum.
Em terceiro
lugar, o estilo de redação utilizado nos vários documentos jurídicos (linguagem
jurídica ou linguagem forense) apresenta muitas particularidades e, para ser
dominado e utilizado corretamente, pressupõe longos e pacientes exercícios.
Todos os alunos de direito passam pela desagradável experiência de ler a
decisão de um tribunal sem conseguir entender quase nada, justamente porque não
estão acostumados com a linguagem forense.
Exemplo: “Esta
Corte firmara entendimento no sentido de que o serventuário de serventia não
oficializada era servidor público” (STF, RE 187.753-7/PR, j. 26.03.1999).
Assim sendo, não
estranha o fato que muitas faculdades de direito incluam nas matérias da graduação
aulas de “português jurídico” para introduzir os alunos a esse novo idioma com
seu vocabulário e suas estruturas sintáticas particulares. [...].
2.
Elementos
de linguística
A linguagem é a
mais valiosa e versátil ferramenta da humanidade. Serve para comunicar, para
transmitir informações, emoções, ordens, para intimidar e para se divertir. Em
sua maior parte, os contatos entre os seres humanos são feitos mediante a
utilização de idiomas naturais, de forma oral ou escrita. Mesmo os nossos
pensamentos e até os nossos sonhos são feitos por meio da utilização da
linguagem.
Para que a
língua possa servir como instrumento de comunicação, o destinatário (auditório) deve entender o locutor (ou autor). Muitos tiveram a
experiência desesperadora de tentar pedir informações em um país estrangeiro,
cujo idioma lhes era desconhecido. O essencial da linguagem é se fazer
entender. A linguística analisa os mecanismos que permitem a comunicação por
meio da língua. Por que, por exemplo, quando alguém pede uma faca, o seu interlocutor
lhe dá uma faca e não um garfo ou um travesseiro?
Desde crianças
aprendemos que há determinadas palavras que devem ser utilizadas para indicar
certos objetos ou situações. O objeto utilizado para cortar a carne chama-se
“faca” e se uma criança o chamar de “fraca” ou de “espada” os adultos vão corrigir, até que aprenda a palavra
certa. Da mesma forma, a criança aprende que, agradecer alguém, a expressão
certa é “muito obrigado” e não “pouco obrigado” ou “muito ligado”.
Essa forma de
aprendizagem nos faz crer que existe uma correspondência natural entre
palavras, objetos e situações. A palavra faca corresponde a determinados
objetos metálicos, a palavra garfo a outros e assim por diante. Essa é a visão naturalista da linguagem. Mas as
aparências enganam. Basta pensar que, para os alemães, as palavras “faca” e
“garfo” não fazem o menor sentido e o correto é usar, respectivamente, as
palavras Messer e Gabel que, por sua vez, não fazem
sentido em português!
Além disso, a
mesma palavra pode ser utilizada de variadas formas e com sentidos que mudam no
tempo e no espaço. O melhor exemplo para isso é o próprio termo “direito”, cujo
significado gera as intermináveis controvérsias [...].
Podemos, assim,
concluir que o sentido de uma palavra depende de convenções sociais e da
situação concreta na qual está sendo empregada. Não existem correspondências
naturais entre as palavras e o mundo, nem certezas absolutas. Basta pensar que
o dicionário (Dicionário Houaiss da
língua portuguesa. Rio de Janeiro. Objetiva, 2001, p. 2.158-2.159) atribui
à palavra “pé” 28 significados diferentes e indica 91 expressões que utilizam a
palavra, inclusive de forma que não se relaciona com seus próprios significados
(“em pé de igualdade”, “pé quente”).
Por essas razões,
a linguística moderna considera que a comunicação humana, realizada
principalmente por meio da linguagem, é um assunto de convenção, decorre de um
“jogo” ao qual participamos todos. Adota-se, assim, a visão convencionalista da linguagem
(Struchiner, 2002, p. 11-32). Há correspondência entre a palavra “faca” e
determinados objetos metálicos não porque isso seja “natural”, mas porque
milhões de pessoas durante séculos adotam essa convenção. Se, amanhã, a maioria
dos brasileiros decidir chamar o mesmo objeto de “baruapó”, será criada uma
nova convenção.
“Aquilo que deve ser estudado são, então, os fatores que
criam a transformam o significado das palavras e as circunstâncias que lhes dão
sentido, permitindo, por exemplo, entender se o locutor entende com a palavra
“pé” uma parte do corpo humano, uma planta, à parte inferior de uma página, a
situação de um negócio etc.
A comunicação humana é feita por meio de signos. “Signo, em termos bem simples, é algo que significa alguma
coisa para alguém” (Guerra Filho, 2001, p. 103). Signo pode ser uma palavra, um
grito, um sinal de mão, a marca de um produto, um som e qualquer outro sinal,
verbal ou não, que permite a comunicação.
Os signos são quase sempre polissêmicos, isto é, possuem vários significados. Uma coisa é
dizer “comer abacaxi”, outra doisa “descascar um abacaxi” em seu significado
metafórico. Mesmo quando um termo possui um único significado podem surgir
dúvidas sobre os objetos e situações às quais se refere. Todos sabem o que
significa “frio”, mas é impossível definir a partir de qual limite de
temperatura, umidade, velocidade do vento etc. começa o frio. Nesses casos
temos o fenômeno da vagueza da linguagem.
Os linguistas insistem na importância das circunstâncias da
comunicação para que o auditório possa compreender aquilo que está sendo dito.
Para tanto é muitas vezes citado o exemplo do pedido no restaurante (por exemplo, Bechillon, 1997, p. 175-176).
Se o cliente pedir “picanha com arroz, por favor” e o garçom lhe entregar uma
tonelada de carne crua acompanhada de vinte sacos de arroz, qualquer pessoa
sensata dirá que o pedido não foi atendido, mesmo se o garçom realmente
entregou “picanha com arroz”. Nenhum cliente tem o cuidado de especificar que
quer um prato com 285 gramas de picanha mal passada acompanhada de arroz branco
cozido, de acordo com os costumes culinários brasileiros. Mas todos entendem
essas especificações implícitas da comunicação, já que, nos restaurantes
brasileiros, “picanha com arroz” é sempre servida dessa forma. Se o mesmo
cliente quisesse comprar uma tonelada de picanha e arroz cru procuraria uma
loja de atacado, e não um restaurante.
Disso resulta que a linguagem, como conjunto de letras,
palavras e frases, nunca é clara. As palavras adquirem seu significado pelo contexto da comunicação: “Aquilo que
uma frase diz, disto é, aquilo que dá a entender aos outros depende da forma de
sua utilização comum” (Koch, 1977, p. 39). A palavra “abacaxi”, como qualquer
outra, não tem um significado fixo: seu entendimento depende do como está sendo
usada em determinadas situações e adquire um significado só graças ao uso
constante. A frase “descascar um abacaxi” ganhou um significado metafórico,
porque milhões de pessoas, por muito tempo, a empregam para indicar
dificuldades e não porque descascar um abacaxi é realmente a coisa mais difícil
do mundo!
O meio para manifestar e veicular significados é o discurso (ou texto). O discurso é uma
combinação de elementos que fazem parte de um sistema de signos. O locutor deve
seguir as regras do sistema de comunicação, que foram fixadas pelo uso
constante, para se fazer entender. Essas regras indicam como e onde pode ser
utilizada determinada palavra e quais relações lógicas deve manter com as
demais para que o seu sentido seja “claro”. Quanto mais cuidado tiver o locutor
na escolha de suas expressões, maiores são as chances de que ele se faça
entender de forma correspondente às suas intenções. Quem comete erros, utiliza
expressões genéricas, ambivalentes ou “fora do lugar”, aumenta as
probabilidades de mal-entendidos.
Mesmo assim, o entendimento não depende exclusivamente das
intenções, do cuidado e do preparo do locutor. Os destinatários do texto
(auditório) são os verdadeiros intérpretes do discurso. O auditório pode
cometer erros de entendimento porque escutou mal, porque desconhece o exato
sentido dos termos empregados ou porque não compreende a estrutura da frase.
Ainda que a comunicação seja tecnicamente perfeita, o sentido
dado ao discurso depende das intenções, dos preconceitos e das ideologias do
auditório. Por isso, afirma-se que a comunicação linguística é marcada por
problemas, confusões e interpretações múltiplas. Não há comunicação natural ou
automática. A comunicação é um “processo de atribuição de sentido”, que depende
tanto do locutor como do auditório.
Segundo os ensinamentos do linguista Charles Morris, podemos
realizar três abordagens da linguagem (Sgarbi, 2007, p.36). Primeiro, a
abordagem sintática. Trata-se das
relações que devem existir entre os signos para que estes adquiram um sentido
(sintaxe e gramática), permitindo que os outros os entendam. A frase “eu gosto
de você” é gramaticalmente correta e entende-se facilmente. A frase “eu gosto
para você” cria certa perplexidade porque desvia das regras sintáticas. O
interlocutor deve corrigi-la mentalmente, entendendo “de” no lugar de “para”.
Finalmente, a frase “eu gostavam indo gelo” não é compreensível: todas as
palavras existem em português, mas a sua combinação desrespeita por completo as
regras sintáticas.
A segunda abordagem é a semântica.
Cada um dos signos tem seus significados particulares porque se refere a
determinados objetos ou situações. Os dicionários são a fonte de consulta mais
comum para constatar os vários significados de uma palavra. Em nosso exemplo, o
verbo “gostar” deve ser usado para indicar determinados sentimentos (amar,
estimar, preferir, achar agradável etc.). Sua utilização para indicar
sentimentos como a indiferença, o ciúme ou o ódio não permite que o auditório
compreenda o locutor.
A terceira abordagem é a pragmática.
Estuda as condições e situações nas quais uma expressão pode ser utilizada de
forma adequada, bem como as circunstâncias reais que dão sentido ao discurso. A
frase “eu gosto de você” é sintaticamente correta e possui um significado
bastante claro. Não deve, porém, ser utilizada em determinadas situações porque
quebra convenções e expectativas sociais. Um advogado não deveria, por exemplo,
endereçá-la a um juiz durante uma audiência, porque a intimidade que indica a
frase não se ajusta às regras e finalidades da comunicação forense. Além disso,
o exato significado da frase depende da situação em que é utilizada. Se for
empregada entre dois amigos assume um significado bastante diferente da mesma
frase utilizada na conversa entre dois namorados.
No âmbito da interpretação jurídica interessa principalmente a abordagem semântica, já que o
objetivo do intérprete é entender o significado das normas jurídicas. Mas, para
tanto, o intérprete deve também levar em consideração o aspecto sintático das
normas e, em menor medida, o aspecto pragmático.”.
Os linguistas demonstram que as
línguas faladas e escritas, que se denominam “naturais” ou “ordinárias”, não
permitem exprimir-se de forma clara e unívoca. Há quatro situações que criam problemas na comunicação (Koch, 1977, p.
41-55):
*Polissemia. Como constatamos no exemplo das palavras “pé” e
“abacaxi”, a polissemia verifica-se quando uma palavra ou expressão pode ser
utilizada em vários contextos com significados diferentes e incompatíveis entre
si, cabendo ao auditório decidir qual é o sentido que deve ser atribuído no
contexto concreto.
*Ambiguidade sintática. Muitas vezes, o modo de construção de uma
frase permite vários entendimentos incompatíveis entre si, sendo possível que o
auditório entenda algo diferente daquilo que quis dizer o locutor. Exemplo:
lendo a frase “gasolina e álcool a preço promocional” não podemos ter certeza
se a promoção refere-se a ambos os produtos ou somente ao álcool.
*Vagueza. Caracterizamos assim os termos que não permitem ao
auditório decidir com certeza sobre o alcance de seu significado, isto é, saber
se a sua utilização é procedente ou não no caso concreto. Exemplo: o cliente
diz ao vendedor que o produto é “caro”. O vendedor pode discordar porque o
termo “caro” permite interpretações subjetivas. Em tais casos, é necessário
precisar os termos. Se o cliente disser “o produto é caro, porque o encontrei
em outra loja 10% mais barato”, o vendedor dificilmente poderá discordar. A
vagueza pode ser de maior ou menor alcance, mas sempre existe nas línguas naturais.
Mesmo uma constatação clara e objetiva como “a capa do livro é azul” permite
controvérsias, se, por exemplo, a capa tiver pontinhas pretas ou se o azul for
muito esverdeado (O emprego de
termos vagos pode colocar o auditório diante de três situações (Koch, 1977, p.
43) a) sabe-se com certeza que o
termo foi bem utilizado, já que algumas capas de livros são, sem dúvida, azuis
(“candidato aprovado”); b) sabe-se
com certeza que a utilização do termo está errada: a capa preta nunca pode ser
qualificada de azul (“candidato reprovado”); c) o problema está nos “candidatos duvidosos”: as capas de uma
tonalidade azul que se aproxima de outra cor não permite decidir com certeza se
a utilização do termo é adequada. Os “candidatos duvidosos” indicam os
problemas da vagueza). Em muitos casos, a vagueza é causada pela
combinação de termos razoavelmente claros. Sabemos o que é “valor” e o que
significa “brasileiro”. Mas quais são os “valores brasileiros”?
*Dificuldade de avaliação. Quando são empregados termos que indicam
características psicológicas do indivíduo, não temos somente o problema da
vagueza, mas também o problema da comprovação. Como ter certeza se uma pessoa
merece a qualificação de “honesta”, “fiel” ou “inteligente”?
Podemos distinguir quatro formas
de utilização da linguagem.
*Uso emotivo, quando o locutor transmite sentimentos e emoções (“foi um
rio que passou em minha vida e meu coração se deixou levar” – Paulinho da
Viola).
*Uso performativo que permite realizar algo através da pronúncia de
certas palavras. Quem diz “peço perdão” realiza o ato de pedir perdão com a
simples pronúncia dessas palavras, não sendo necessário fazer mais nada.
*Uso prescritivo, que emite ordens, procurando influenciar o
comportamento dos demais (“abra a janela”). Essa é forma de utilização da
linguagem que mais interessa no direito.
No caso das prescrições, o
elemento crucial é a presença do verbo deôntico que deixa clara a intenção de
emitir uma ordem (proibir, permitir ou obrigar). O verbo deôntico pode ser
utilizado de maneira implícita (“não fume” ou “apaga o cigarro” significa: “é
proibido fumar”). Não há, porém, uso prescritivo da linguagem sem a presença
(ou suposição) do verbo deôntico.
Como sabemos, as normas jurídicas
fazem uso prescritivo da linguagem (“é proibido estacionar”), enquanto o
intérprete do direito faz um uso descrito da linguagem (“a lei proíbe o
estacionamento”).
3.
A
Linguagem jurídica
O ponto de
partida é a tese de que a linguagem jurídica se diferencia dos idiomas
naturais. A linguagem jurídica é um idioma técnico ou artificial, utilizado e
entendido pelo grupo socioprofissional dos operadores jurídicos. Da mesma forma
que um físico ou matemático redige uma monografia em português empregando uma
terminologia bastante específica, o operador do direito utiliza o português de
forma particular.
O estudo
aprofundado da linguagem jurídica é realizado no âmbito da linguística jurídica, desenvolvida em extensos tratados (Cornu,
2000). Esses trabalhos estudam com detalhes a estrutura do vocabulário
jurídico, suas particularidades gramaticais e sintáticas e as espécies de
enunciados jurídicos. Limitar-nos-emos aqui a indicar duas características
centrais da linguagem jurídica.
3.1. Linguagem de poder
O direito é um idioma de poder. Não é utilizado para a
simples comunicação humana, isto é, para passar informações, instruir ou
divertir. O direito emite mandamentos, ou seja, utiliza a ferramenta da
linguagem para influenciar o comportamento das pessoas, convencendo-as de se
comportarem da forma que este determina (“faça”, “não faça”). Esse é o uso prescritivo da linguagem que indica que
o direito é um meio de exercício do poder.
A natureza prescritiva da linguagem jurídica deve ser
levada em consideração para interpretar corretamente as normas jurídicas.
Vejamos dois exemplos:
*”Não pode” significa “pode”. Um escrivão do tribunal
informa no dia audiência: “o juiz não pode comparecer hoje porque sofreu um
acidente e está internado”. O art. 211 do Código Civil prevê: “Se a decadência
for convencional, a parte a quem aproveita pode alega-la em qualquer grau de
jurisdição, mas o juiz não pode suprir a alegação”. Do ponto de vista
sintático, as duas frases são idênticas. Indicam aquilo que uma pessoa (o juiz)
não pode fazer. Do ponto de vista pragmático apresentam, porém, uma grande
diferença.
A primeira frase descreve aquilo que aconteceu
indicando a impossibilidade de comparecimento do juiz, que realmente “não pode”
locomover-se e atuar profissionalmente. A segunda frase só pode ser entendida
se a traduzirmos em termos prescritivos, isto é, em termos de dever ser. O art.
211 do Código Civil não informa sobre a impossibilidade de o juiz levar em
consideração a decadência por iniciativa própria, isto é, sem alegação do
interessado. Sabe-se que o juiz pode fazê-lo e ordena-se que que não o faça. O
intérprete do direito entende o verbo “não pode” como “pode, mas não deve fazê-lo”.
*”É” significa “deve ser”. Em um livro de geografia
está escrito: “Brasília é a Capital Federal”. O art. 18, § 1º, da Constituição
Federal prevê: “Brasília é a Capital Federal”. As duas frases são idênticas,
mas também divergem totalmente em seu significado. A primeira frase informa
qual é a capital do país. Se, amanhã, Salvador voltasse a ser a capital do
Brasil, os redatores do livro deveriam atualizá-lo. Quando, porém, a
Constituição utiliza o verbo “é” não quer informar os leitores sobre a capital
do país; emite implicitamente uma ordem, proibindo que qualquer outra cidade
seja proclamada como capital. Nesse caso, o verbo “é” tem o sentido de: “deve
ser, e eventual decisão de mudar a capital será inconstitucional”.
Esses exemplos indicam que sem levar em consideração a
natureza prescritiva da linguagem jurídica enquanto idioma de exercício de
poder não é possível entender a estrutura de suas normas, ou seja, o sentido do
direito em vigor.
3.2. Linguagem técnica
Poucos são os documentos jurídicos e os textos de
doutrina de fácil compreensão e de estilo agradável. Isso não é devido à
incapacidade literária de quem trabalha na área do direito, mas a exigências do
sistema jurídico. A linguagem jurídica não é utilizada para informar e muito
menos para agradar o público. Seu objetivo é formular com precisão, brevidade,
clareza e certeza determinadas prescrições e, no caso da doutrina, expor de
forma sistemática os regulamentos e os conceitos jurídicos.
O discurso jurídico utiliza modos de expressão
técnicos, concisos, repetitivos e “secos”, no intuito de evitar os problemas
das linguagens naturais indicados no item 2, desta Lição. Quanto mais rigorosa
for a linguagem jurídica, menor será o espaço deixado à polissemia, à
ambiguidade sintática, à vagueza e às avaliações subjetivas e maiores serão as
garantias para a segurança jurídica. Em outras palavras, a tecnicidade e o
rigor da linguagem jurídica objetivam minimizar os problemas da comunicação,
permitir ao locutor transmitir de forma fiel sua vontade e diminuir os espaços
de interpretação subjetiva por parte do auditório, isto é, dos aplicadores do
direito (Bergel, 2001, p. 297; Pettoruti
e Scatolini, 2005, p. 137-139).
Exemplo: o legislador que deseja regulamentar a taxa
de juros pode escolher expressões mais ou menos vagas. Pode estabelecer um
valor (10% ao ano), remeter a índices econômicos (inferior ao dobro da
inflação) ou fazer indicação vaga (taxa de juros razoável). A escolha não é
questão de preferência literária; depende da vontade do legislador de controlar
efetivamente os juros ou de deixa-los à discrição do mercado e do Poder
Judiciário, utilizando para tanto termos vagos e ambíguos.
Da mesma forma, o operador do direito recorre ao rigor
da linguagem técnica para se fazer entender e para evitar que o adversário no
processo se aproveite das ambiguidades e vaguezas da linguagem para atribuir a
determinadas alegações o sentido que mais lhe favorece. O leigo pode, por
exemplo, considerar que queixa, denúncia e “notícia-crime” são sinônimos. Mas a
comunicação forense só é satisfatória se todos conhecerem o significado técnico
de cada um dos termos e os usarem de forma correta.
Estas colocações indicam qual é o ideal de construção
da linguagem jurídica. Na prática, porém, as formas de redação dos documentos
estão distantes desse ideal.
Em primeiro lugar, o estudo das fontes do direito
revela que, muitas vezes, os autores não se exprimem de forma satisfatória. A
leitura do próprio texto constitucional revela uma série de flutuações na
terminologia (termos diferentes são usados para indicar a mesma competência
(Isso ocorre com os numerosos termos utilizados no texto constitucional para
designar as mesmas categorias de direitos fundamentais), de repetições inúteis
(Exemplo: as múltiplas referências à justiça social), de erros conceituais
(Exemplo: o direito à associação profissional encontra-se entre os direitos
sociais, apesar de ser um clássico de defesa, semelhante ao direito de
associação) e de termos vagos e ambíguos (Isso ocorre no caso das normas
programáticas). Essas imperfeições dificultam a compreensão e aplicação do
texto.
Em segundo lugar, muitos textos normativos utilizam
uma linguagem de difícil compreensão para os cidadãos, apesar de ser possível
utilizar formulações mais acessíveis. É interessante que na França foi editada
em 2009 a Lei 526 “para simplificação e melhor compreensão do direito e a
facilitação dos procedimentos; no Brasil temos a Lei Complementar nº 95, de
26/02/1998 e o Decreto n. 4.176/2002, que dispõe e regulamenta
a técnica legislativa sobre a elaboração, a redação, a alteração e a
consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da
Constituição Federal. A lei modificou centenas de dispositivos legais para
facilitar sua compreensão e aplicação, tendo em particular eliminado termos
jurídicos incompreensíveis.
Em terceiro lugar, a leitura de peças processuais
demonstra que os operadores jurídicos utilizam um estilo retórico, repetitivo,
repleto de argumentos de autoridade e, na realidade, vazio de conteúdo, que
dificulta indevidamente a compreensão, ignorando as exigências do rigor
jurídico.
Exemplo: “Na linha evolutiva de sua extensão,
extingue-se temporariamente o ius puniendi
do Estado, que passa ao patamar da dispensabilidade, enquanto durar o bom
comportamento do beneficiado. Esse é o ponto revitalizador da aplicação do
instituto condicionador de natureza normativa (TACrimSP, SER 1.317.317-1, 1ª
CCrim, Boletim IBCrim, Jurisprudência 122/676,2003).
Observamos, finalmente, que a tecnicização da
linguagem jurídica não decorre só da preocupação de clareza e, por
consequência, de segurança jurídica. Com todo toda linguagem de “iniciados”, a
linguagem jurídica é um instrumento de poder, manuseado pelos operadores
jurídicos que conseguem, assim, adquirir um prestígio social (“o Doutor fala
bonito”) e manter o monopólio de acesso ao sistema de justiça. O resultado é
distanciar a população do universo jurídico e manter as vantagens sociais dos
operadores do direito.
Isso não significa que os operadores do direito devem
abandonar a terminologia técnica e usar expressões coloquiais, que sempre
causam confusões e incertezas. Mas não deve servir de pretexto para a retórica
e o “fechamento” do sistema jurídico. Os operadores do direito possuem o dever
de popularizar o conhecimento jurídico e, principalmente, de explicar às partes
do processo, com palavras simples, o andamento das causas que os interessam.
[...] Por um lado, o operador do direito deve aplicar
aquilo que as leis ordenam. Por outro lado, não deve se esquecer da realidade
na qual está inserido tanto ele como a própria lei. Radbruch convida o operador
a ser lúcido, mesmo se o preço a pagar é perder a falsa inocência e a tranquilidade
de espírito. Pelo menos até que o direito e a sociedade mudem...”.
[...] O ser humano aprende com esforço e comete sempre
erros. Devemos começar estudando, mesmo sem entender tudo, para depois tentar
de novo, errando e acertando mais. De maneira imperceptível adquirimos o
domínio de uma matéria. Quem se formou em direito sabe que os ensinamentos dos
livros de introdução ao direito, que lhe pareciam tão difíceis e complexos no
primeiro ano de faculdade, foram gradualmente assimilados, até que os conceitos
“inacessíveis” tornaram-se perfeitamente familiares. Para superar os problemas
de entendimento, o estudante deve encontrar a coragem de dizer “não entendi” e
de procurar os professores pedindo explicações. Ao contrário das universidades
autoritárias do passado, onde os professores “pontificavam” e os alunos ouviam
(ou dormiam), os professores de hoje ficam felizes com as intervenções dos
alunos, porque isso lhes permite melhorar o próprio desempenho e transmitir o
conhecimento de forma mais eficaz (...).”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário