sexta-feira, 13 de outubro de 2017

D I R E I T O E L I N G U A G E M



                                  D I R E I T O    E   L I N G U A G E M
“Decompondo-se o fenômeno do conhecimento, encontramos a linguagem, sem o que o conhecimento não se fixa nem se transmite. Já existe um quantum de conhecimento na percepção, mas ele se realiza mesmo, na sua plenitude, no plano proposicional e, portanto, com a intervenção da linguagem. “Conhecer”, ainda que experimente mais de uma acepção, significa “saber proposições sobre”. Conheço determinado objeto na media em que posso expedir enunciados sobre ele, de tal arte que o conhecimento se apresenta pela linguagem, mediante proposições descritivas ou indicativas. Por outro lado, a cada momento se confirma a natureza da linguagem como constitutiva de nossa realidade. Já L. WITTGENSTEIN afirmada, na proposição 5.6, do Tractatus Logico-Philosophicus, que “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”, que dito de outro modo, pode significar: meu mundo vai até onde for minha linguagem.” (Paulo de Barros Carvalho).



 SERVIÇO DE JURISPRUDÊNCIA (DJU, 17.03.1995, Ementário nº 1779-2)
HABEAS CORPUS Nº 72391-8 – DF, STF, Pleno, por unanimidade, Relator Ministro Celso de Melo [...], acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal não conhecer do pedido de habeas corpus.
E M E N T A: HABEAS CORPUS – IMPETRAÇÃO REDIGIDA EM LÍNGUA ESPANHOLA – EXTRADIÇÃO – FORMULAÇÃO DE PEDIDO DE CLEMÊNCIA AO PRESIDENTE DA REPÚBLICA – AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DE ATO CONFIGURADOR DE ILEGALIDADE OU ABUSO DE PODER – HC NÃO CONHECIDO.
- É inquestionável o direito de súditos estrangeiros ajuizarem, em causa própria, a ação de habeas corpus, eis que esse remédio constitucional – por qualificar-se como verdadeira ação popular – pode ser utilizado por qualquer pessoa, independentemente da condição jurídica resultante de sua origem nacional.
- A petição com que impetrado o habeas corpus deve ser redigida em português, sob pena de não-conhecimento do writ constitucional (CPC, art. 156, c/c CPP, art. 3º), eis que o conteúdo dessa peça processual deve ser acessível a todos, sendo irrelevante, para esse efeito, que o juiz da causa conheça, eventualmente, o idioma estrangeiro utilizado pelo impetrante. A imprescindibilidade do uso do idioma nacional nos atos processuais, além de corresponder a uma exigência que decorre de razões vinculadas à própria soberania nacional, constitui projeção concretizadora da norma inscrita no art. 13, caput, da Carta Federal, que proclama ser a língua portuguesa “o idioma oficial da República Federativa do Brasil”.
- Não há como admitir o processamento da ação de habeas corpus se o impetrante deixa de atribuir à autoridade apontada como coatora a prática de ato concreto que evidencie a ocorrência de um específico comportamento abusivo ou revestido de ilegalidade.
- O exercício da clemência soberana do Estado não se estende, em nosso direito positivo, aos processos de extradição, eis que o objeto da indulgencia principis restringe-se, exclusivamente, ao plano dos ilícitos penais sujeitos à competência jurisdicional do Estado brasileiro. O Presidente da República – que constitui, nas situações referidas no art. 89 do Estatuto do Estrangeiro, o único árbitro da conveniência e oportunidade da entrega do extraditando ao Estado requerente – não pode ser constrangido a abster-se do exercício dessa prerrogativa institucional que se acha sujeita ao domínio específico de suas funções como Chefe de Estado.”
DIREITO E LINGUAGEM – Lição 7
(Manual de Introdução ao Estudo do Direito, Dimitri Dimoulis, 4ª ed., SP, RT, 2011, p. 133/143).

1.       As línguas do Direito
Todas as fontes do direito brasileiro são redigidas em idioma português. As aulas de direito são ministradas na mesma língua, que é também utilizada pela administração pública e pelos tribunais. Isso corresponde, aliás, a uma obrigação constitucional: “A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil” (art. 13, caput, da Constituição Federal).
Pode então parecer que o estudante de direito não deve se preocupar muito com questões de língua, já que domina o português. Essa aparência engana por completo. Em primeiro lugar, como já mencionamos na Introdução (Este livro de introdução ao direito foi construído a partir de minha experiência no ensino universitário. O Direito moderno é, muitas vezes, de difícil compreensão para os leigos e para aqueles que iniciam seu estudo. Tomemos como exemplo o art. 1.197, do Código Civil: “A posse direta, de pessoa que tem a coisa em seu poder, temporariamente, em virtude de direito pessoal, ou real, não anula a indireta, de quem aquela foi havida, podendo o possuidor direito defender a sua possa contra o indireto”. É evidente que a frase está escrita em bom português. Porém, não é compreensível por quem não tem conhecimentos jurídicos. Isso ocorre porque o mundo jurídico utiliza seus códigos de comunicação, que divergem dos ordinários. Com efeito, para entender o art. 1.197 é necessário saber o que significa “posse” e quais suas espécies do direito civil), muitos termos utilizados no direito são desconhecidos pela maioria da população. Basta consultar o índice no Código Civil na letra “A” para encontrar palavras como “acessão”, “adjunto”, “álveo”, “anticrese”, “aquestos” e “avulsão”.
Em segundo lugar, muitas palavras da língua ordinária adquirem significados particulares no direito. Exemplo: a palavra “ação” é utilizada no direito processual para indicar o direito de invocar a tutela jurisdicional e não para designar qualquer ato ou efeito de atuar, como no idioma comum.
Em terceiro lugar, o estilo de redação utilizado nos vários documentos jurídicos (linguagem jurídica ou linguagem forense) apresenta muitas particularidades e, para ser dominado e utilizado corretamente, pressupõe longos e pacientes exercícios. Todos os alunos de direito passam pela desagradável experiência de ler a decisão de um tribunal sem conseguir entender quase nada, justamente porque não estão acostumados com a linguagem forense.
Exemplo: “Esta Corte firmara entendimento no sentido de que o serventuário de serventia não oficializada era servidor público” (STF, RE 187.753-7/PR, j. 26.03.1999).
Assim sendo, não estranha o fato que muitas faculdades de direito incluam nas matérias da graduação aulas de “português jurídico” para introduzir os alunos a esse novo idioma com seu vocabulário e suas estruturas sintáticas particulares. [...].

2.       Elementos de linguística
A linguagem é a mais valiosa e versátil ferramenta da humanidade. Serve para comunicar, para transmitir informações, emoções, ordens, para intimidar e para se divertir. Em sua maior parte, os contatos entre os seres humanos são feitos mediante a utilização de idiomas naturais, de forma oral ou escrita. Mesmo os nossos pensamentos e até os nossos sonhos são feitos por meio da utilização da linguagem.
Para que a língua possa servir como instrumento de comunicação, o destinatário (auditório) deve entender o locutor (ou autor). Muitos tiveram a experiência desesperadora de tentar pedir informações em um país estrangeiro, cujo idioma lhes era desconhecido. O essencial da linguagem é se fazer entender. A linguística analisa os mecanismos que permitem a comunicação por meio da língua. Por que, por exemplo, quando alguém pede uma faca, o seu interlocutor lhe dá uma faca e não um garfo ou um travesseiro?
Desde crianças aprendemos que há determinadas palavras que devem ser utilizadas para indicar certos objetos ou situações. O objeto utilizado para cortar a carne chama-se “faca” e se uma criança o chamar de “fraca” ou de “espada” os adultos  vão corrigir, até que aprenda a palavra certa. Da mesma forma, a criança aprende que, agradecer alguém, a expressão certa é “muito obrigado” e não “pouco obrigado” ou “muito ligado”.
Essa forma de aprendizagem nos faz crer que existe uma correspondência natural entre palavras, objetos e situações. A palavra faca corresponde a determinados objetos metálicos, a palavra garfo a outros e assim por diante. Essa é a visão naturalista da linguagem. Mas as aparências enganam. Basta pensar que, para os alemães, as palavras “faca” e “garfo” não fazem o menor sentido e o correto é usar, respectivamente, as palavras Messer e Gabel que, por sua vez, não fazem sentido em português!
Além disso, a mesma palavra pode ser utilizada de variadas formas e com sentidos que mudam no tempo e no espaço. O melhor exemplo para isso é o próprio termo “direito”, cujo significado gera as intermináveis controvérsias [...].
Podemos, assim, concluir que o sentido de uma palavra depende de convenções sociais e da situação concreta na qual está sendo empregada. Não existem correspondências naturais entre as palavras e o mundo, nem certezas absolutas. Basta pensar que o dicionário (Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro. Objetiva, 2001, p. 2.158-2.159) atribui à palavra “pé” 28 significados diferentes e indica 91 expressões que utilizam a palavra, inclusive de forma que não se relaciona com seus próprios significados (“em pé de igualdade”, “pé quente”).
Por essas razões, a linguística moderna considera que a comunicação humana, realizada principalmente por meio da linguagem, é um assunto de convenção, decorre de um “jogo” ao qual participamos todos. Adota-se, assim, a visão convencionalista da linguagem (Struchiner, 2002, p. 11-32). Há correspondência entre a palavra “faca” e determinados objetos metálicos não porque isso seja “natural”, mas porque milhões de pessoas durante séculos adotam essa convenção. Se, amanhã, a maioria dos brasileiros decidir chamar o mesmo objeto de “baruapó”, será criada uma nova convenção.
“Aquilo que deve ser estudado são, então, os fatores que criam a transformam o significado das palavras e as circunstâncias que lhes dão sentido, permitindo, por exemplo, entender se o locutor entende com a palavra “pé” uma parte do corpo humano, uma planta, à parte inferior de uma página, a situação de um negócio etc.
A comunicação humana é feita por meio de signos. “Signo, em termos bem simples, é algo que significa alguma coisa para alguém” (Guerra Filho, 2001, p. 103). Signo pode ser uma palavra, um grito, um sinal de mão, a marca de um produto, um som e qualquer outro sinal, verbal ou não, que permite a comunicação.
Os signos são quase sempre polissêmicos, isto é, possuem vários significados. Uma coisa é dizer “comer abacaxi”, outra doisa “descascar um abacaxi” em seu significado metafórico. Mesmo quando um termo possui um único significado podem surgir dúvidas sobre os objetos e situações às quais se refere. Todos sabem o que significa “frio”, mas é impossível definir a partir de qual limite de temperatura, umidade, velocidade do vento etc. começa o frio. Nesses casos temos o fenômeno da vagueza da linguagem.
Os linguistas insistem na importância das circunstâncias da comunicação para que o auditório possa compreender aquilo que está sendo dito. Para tanto é muitas vezes citado o exemplo do pedido no restaurante (por exemplo, Bechillon, 1997, p. 175-176). Se o cliente pedir “picanha com arroz, por favor” e o garçom lhe entregar uma tonelada de carne crua acompanhada de vinte sacos de arroz, qualquer pessoa sensata dirá que o pedido não foi atendido, mesmo se o garçom realmente entregou “picanha com arroz”. Nenhum cliente tem o cuidado de especificar que quer um prato com 285 gramas de picanha mal passada acompanhada de arroz branco cozido, de acordo com os costumes culinários brasileiros. Mas todos entendem essas especificações implícitas da comunicação, já que, nos restaurantes brasileiros, “picanha com arroz” é sempre servida dessa forma. Se o mesmo cliente quisesse comprar uma tonelada de picanha e arroz cru procuraria uma loja de atacado, e não um restaurante.
Disso resulta que a linguagem, como conjunto de letras, palavras e frases, nunca é clara. As palavras adquirem seu significado pelo contexto da comunicação: “Aquilo que uma frase diz, disto é, aquilo que dá a entender aos outros depende da forma de sua utilização comum” (Koch, 1977, p. 39). A palavra “abacaxi”, como qualquer outra, não tem um significado fixo: seu entendimento depende do como está sendo usada em determinadas situações e adquire um significado só graças ao uso constante. A frase “descascar um abacaxi” ganhou um significado metafórico, porque milhões de pessoas, por muito tempo, a empregam para indicar dificuldades e não porque descascar um abacaxi é realmente a coisa mais difícil do mundo!
O meio para manifestar e veicular significados é o discurso (ou texto). O discurso é uma combinação de elementos que fazem parte de um sistema de signos. O locutor deve seguir as regras do sistema de comunicação, que foram fixadas pelo uso constante, para se fazer entender. Essas regras indicam como e onde pode ser utilizada determinada palavra e quais relações lógicas deve manter com as demais para que o seu sentido seja “claro”. Quanto mais cuidado tiver o locutor na escolha de suas expressões, maiores são as chances de que ele se faça entender de forma correspondente às suas intenções. Quem comete erros, utiliza expressões genéricas, ambivalentes ou “fora do lugar”, aumenta as probabilidades de mal-entendidos.
Mesmo assim, o entendimento não depende exclusivamente das intenções, do cuidado e do preparo do locutor. Os destinatários do texto (auditório) são os verdadeiros intérpretes do discurso. O auditório pode cometer erros de entendimento porque escutou mal, porque desconhece o exato sentido dos termos empregados ou porque não compreende a estrutura da frase.
Ainda que a comunicação seja tecnicamente perfeita, o sentido dado ao discurso depende das intenções, dos preconceitos e das ideologias do auditório. Por isso, afirma-se que a comunicação linguística é marcada por problemas, confusões e interpretações múltiplas. Não há comunicação natural ou automática. A comunicação é um “processo de atribuição de sentido”, que depende tanto do locutor como do auditório.
Segundo os ensinamentos do linguista Charles Morris, podemos realizar três abordagens da linguagem (Sgarbi, 2007, p.36). Primeiro, a abordagem sintática. Trata-se das relações que devem existir entre os signos para que estes adquiram um sentido (sintaxe e gramática), permitindo que os outros os entendam. A frase “eu gosto de você” é gramaticalmente correta e entende-se facilmente. A frase “eu gosto para você” cria certa perplexidade porque desvia das regras sintáticas. O interlocutor deve corrigi-la mentalmente, entendendo “de” no lugar de “para”. Finalmente, a frase “eu gostavam indo gelo” não é compreensível: todas as palavras existem em português, mas a sua combinação desrespeita por completo as regras sintáticas.
A segunda abordagem é a semântica. Cada um dos signos tem seus significados particulares porque se refere a determinados objetos ou situações. Os dicionários são a fonte de consulta mais comum para constatar os vários significados de uma palavra. Em nosso exemplo, o verbo “gostar” deve ser usado para indicar determinados sentimentos (amar, estimar, preferir, achar agradável etc.). Sua utilização para indicar sentimentos como a indiferença, o ciúme ou o ódio não permite que o auditório compreenda o locutor.
A terceira abordagem é a pragmática. Estuda as condições e situações nas quais uma expressão pode ser utilizada de forma adequada, bem como as circunstâncias reais que dão sentido ao discurso. A frase “eu gosto de você” é sintaticamente correta e possui um significado bastante claro. Não deve, porém, ser utilizada em determinadas situações porque quebra convenções e expectativas sociais. Um advogado não deveria, por exemplo, endereçá-la a um juiz durante uma audiência, porque a intimidade que indica a frase não se ajusta às regras e finalidades da comunicação forense. Além disso, o exato significado da frase depende da situação em que é utilizada. Se for empregada entre dois amigos assume um significado bastante diferente da mesma frase utilizada na conversa entre dois namorados.
No âmbito da interpretação jurídica interessa principalmente a abordagem semântica, já que o objetivo do intérprete é entender o significado das normas jurídicas. Mas, para tanto, o intérprete deve também levar em consideração o aspecto sintático das normas e, em menor medida, o aspecto pragmático.”.

Os linguistas demonstram que as línguas faladas e escritas, que se denominam “naturais” ou “ordinárias”, não permitem exprimir-se de forma clara e unívoca. Há quatro situações que criam problemas na comunicação (Koch, 1977, p. 41-55):
*Polissemia. Como constatamos no exemplo das palavras “pé” e “abacaxi”, a polissemia verifica-se quando uma palavra ou expressão pode ser utilizada em vários contextos com significados diferentes e incompatíveis entre si, cabendo ao auditório decidir qual é o sentido que deve ser atribuído no contexto concreto.
*Ambiguidade sintática. Muitas vezes, o modo de construção de uma frase permite vários entendimentos incompatíveis entre si, sendo possível que o auditório entenda algo diferente daquilo que quis dizer o locutor. Exemplo: lendo a frase “gasolina e álcool a preço promocional” não podemos ter certeza se a promoção refere-se a ambos os produtos ou somente ao álcool.
*Vagueza. Caracterizamos assim os termos que não permitem ao auditório decidir com certeza sobre o alcance de seu significado, isto é, saber se a sua utilização é procedente ou não no caso concreto. Exemplo: o cliente diz ao vendedor que o produto é “caro”. O vendedor pode discordar porque o termo “caro” permite interpretações subjetivas. Em tais casos, é necessário precisar os termos. Se o cliente disser “o produto é caro, porque o encontrei em outra loja 10% mais barato”, o vendedor dificilmente poderá discordar. A vagueza pode ser de maior ou menor alcance, mas sempre existe nas línguas naturais. Mesmo uma constatação clara e objetiva como “a capa do livro é azul” permite controvérsias, se, por exemplo, a capa tiver pontinhas pretas ou se o azul for muito esverdeado (O emprego de termos vagos pode colocar o auditório diante de três situações (Koch, 1977, p. 43) a) sabe-se com certeza que o termo foi bem utilizado, já que algumas capas de livros são, sem dúvida, azuis (“candidato aprovado”); b) sabe-se com certeza que a utilização do termo está errada: a capa preta nunca pode ser qualificada de azul (“candidato reprovado”); c) o problema está nos “candidatos duvidosos”: as capas de uma tonalidade azul que se aproxima de outra cor não permite decidir com certeza se a utilização do termo é adequada. Os “candidatos duvidosos” indicam os problemas da vagueza). Em muitos casos, a vagueza é causada pela combinação de termos razoavelmente claros. Sabemos o que é “valor” e o que significa “brasileiro”. Mas quais são os “valores brasileiros”?
*Dificuldade de avaliação. Quando são empregados termos que indicam características psicológicas do indivíduo, não temos somente o problema da vagueza, mas também o problema da comprovação. Como ter certeza se uma pessoa merece a qualificação de “honesta”, “fiel” ou “inteligente”?
Podemos distinguir quatro formas de utilização da linguagem.
*Uso emotivo, quando o locutor transmite sentimentos e emoções (“foi um rio que passou em minha vida e meu coração se deixou levar” – Paulinho da Viola).
*Uso performativo que permite realizar algo através da pronúncia de certas palavras. Quem diz “peço perdão” realiza o ato de pedir perdão com a simples pronúncia dessas palavras, não sendo necessário fazer mais nada.
*Uso prescritivo, que emite ordens, procurando influenciar o comportamento dos demais (“abra a janela”). Essa é forma de utilização da linguagem que mais interessa no direito.
No caso das prescrições, o elemento crucial é a presença do verbo deôntico que deixa clara a intenção de emitir uma ordem (proibir, permitir ou obrigar). O verbo deôntico pode ser utilizado de maneira implícita (“não fume” ou “apaga o cigarro” significa: “é proibido fumar”). Não há, porém, uso prescritivo da linguagem sem a presença (ou suposição) do verbo deôntico.
Como sabemos, as normas jurídicas fazem uso prescritivo da linguagem (“é proibido estacionar”), enquanto o intérprete do direito faz um uso descrito da linguagem (“a lei proíbe o estacionamento”).
3.       A Linguagem jurídica
O ponto de partida é a tese de que a linguagem jurídica se diferencia dos idiomas naturais. A linguagem jurídica é um idioma técnico ou artificial, utilizado e entendido pelo grupo socioprofissional dos operadores jurídicos. Da mesma forma que um físico ou matemático redige uma monografia em português empregando uma terminologia bastante específica, o operador do direito utiliza o português de forma particular.
O estudo aprofundado da linguagem jurídica é realizado no âmbito da linguística jurídica, desenvolvida em extensos tratados (Cornu, 2000). Esses trabalhos estudam com detalhes a estrutura do vocabulário jurídico, suas particularidades gramaticais e sintáticas e as espécies de enunciados jurídicos. Limitar-nos-emos aqui a indicar duas características centrais da linguagem jurídica.
3.1. Linguagem de poder
O direito é um idioma de poder. Não é utilizado para a simples comunicação humana, isto é, para passar informações, instruir ou divertir. O direito emite mandamentos, ou seja, utiliza a ferramenta da linguagem para influenciar o comportamento das pessoas, convencendo-as de se comportarem da forma que este determina (“faça”, “não faça”). Esse é o uso prescritivo da linguagem que indica que o direito é um meio de exercício do poder.
A natureza prescritiva da linguagem jurídica deve ser levada em consideração para interpretar corretamente as normas jurídicas. Vejamos dois exemplos:
*”Não pode” significa “pode”. Um escrivão do tribunal informa no dia audiência: “o juiz não pode comparecer hoje porque sofreu um acidente e está internado”. O art. 211 do Código Civil prevê: “Se a decadência for convencional, a parte a quem aproveita pode alega-la em qualquer grau de jurisdição, mas o juiz não pode suprir a alegação”. Do ponto de vista sintático, as duas frases são idênticas. Indicam aquilo que uma pessoa (o juiz) não pode fazer. Do ponto de vista pragmático apresentam, porém, uma grande diferença.
A primeira frase descreve aquilo que aconteceu indicando a impossibilidade de comparecimento do juiz, que realmente “não pode” locomover-se e atuar profissionalmente. A segunda frase só pode ser entendida se a traduzirmos em termos prescritivos, isto é, em termos de dever ser. O art. 211 do Código Civil não informa sobre a impossibilidade de o juiz levar em consideração a decadência por iniciativa própria, isto é, sem alegação do interessado. Sabe-se que o juiz pode fazê-lo e ordena-se que que não o faça. O intérprete do direito entende o verbo “não pode” como “pode, mas não deve fazê-lo”.
*”É” significa “deve ser”. Em um livro de geografia está escrito: “Brasília é a Capital Federal”. O art. 18, § 1º, da Constituição Federal prevê: “Brasília é a Capital Federal”. As duas frases são idênticas, mas também divergem totalmente em seu significado. A primeira frase informa qual é a capital do país. Se, amanhã, Salvador voltasse a ser a capital do Brasil, os redatores do livro deveriam atualizá-lo. Quando, porém, a Constituição utiliza o verbo “é” não quer informar os leitores sobre a capital do país; emite implicitamente uma ordem, proibindo que qualquer outra cidade seja proclamada como capital. Nesse caso, o verbo “é” tem o sentido de: “deve ser, e eventual decisão de mudar a capital será inconstitucional”.
Esses exemplos indicam que sem levar em consideração a natureza prescritiva da linguagem jurídica enquanto idioma de exercício de poder não é possível entender a estrutura de suas normas, ou seja, o sentido do direito em vigor.
3.2. Linguagem técnica
Poucos são os documentos jurídicos e os textos de doutrina de fácil compreensão e de estilo agradável. Isso não é devido à incapacidade literária de quem trabalha na área do direito, mas a exigências do sistema jurídico. A linguagem jurídica não é utilizada para informar e muito menos para agradar o público. Seu objetivo é formular com precisão, brevidade, clareza e certeza determinadas prescrições e, no caso da doutrina, expor de forma sistemática os regulamentos e os conceitos jurídicos.
O discurso jurídico utiliza modos de expressão técnicos, concisos, repetitivos e “secos”, no intuito de evitar os problemas das linguagens naturais indicados no item 2, desta Lição. Quanto mais rigorosa for a linguagem jurídica, menor será o espaço deixado à polissemia, à ambiguidade sintática, à vagueza e às avaliações subjetivas e maiores serão as garantias para a segurança jurídica. Em outras palavras, a tecnicidade e o rigor da linguagem jurídica objetivam minimizar os problemas da comunicação, permitir ao locutor transmitir de forma fiel sua vontade e diminuir os espaços de interpretação subjetiva por parte do auditório, isto é, dos aplicadores do direito (Bergel, 2001, p. 297;  Pettoruti e Scatolini, 2005, p. 137-139).
Exemplo: o legislador que deseja regulamentar a taxa de juros pode escolher expressões mais ou menos vagas. Pode estabelecer um valor (10% ao ano), remeter a índices econômicos (inferior ao dobro da inflação) ou fazer indicação vaga (taxa de juros razoável). A escolha não é questão de preferência literária; depende da vontade do legislador de controlar efetivamente os juros ou de deixa-los à discrição do mercado e do Poder Judiciário, utilizando para tanto termos vagos e ambíguos.
Da mesma forma, o operador do direito recorre ao rigor da linguagem técnica para se fazer entender e para evitar que o adversário no processo se aproveite das ambiguidades e vaguezas da linguagem para atribuir a determinadas alegações o sentido que mais lhe favorece. O leigo pode, por exemplo, considerar que queixa, denúncia e “notícia-crime” são sinônimos. Mas a comunicação forense só é satisfatória se todos conhecerem o significado técnico de cada um dos termos e os usarem de forma correta.
Estas colocações indicam qual é o ideal de construção da linguagem jurídica. Na prática, porém, as formas de redação dos documentos estão distantes desse ideal.
Em primeiro lugar, o estudo das fontes do direito revela que, muitas vezes, os autores não se exprimem de forma satisfatória. A leitura do próprio texto constitucional revela uma série de flutuações na terminologia (termos diferentes são usados para indicar a mesma competência (Isso ocorre com os numerosos termos utilizados no texto constitucional para designar as mesmas categorias de direitos fundamentais), de repetições inúteis (Exemplo: as múltiplas referências à justiça social), de erros conceituais (Exemplo: o direito à associação profissional encontra-se entre os direitos sociais, apesar de ser um clássico de defesa, semelhante ao direito de associação) e de termos vagos e ambíguos (Isso ocorre no caso das normas programáticas). Essas imperfeições dificultam a compreensão e aplicação do texto.
Em segundo lugar, muitos textos normativos utilizam uma linguagem de difícil compreensão para os cidadãos, apesar de ser possível utilizar formulações mais acessíveis. É interessante que na França foi editada em 2009 a Lei 526 “para simplificação e melhor compreensão do direito e a facilitação dos procedimentos; no Brasil temos a Lei Complementar nº 95, de 26/02/1998 e o Decreto n. 4.176/2002, que dispõe e regulamenta a técnica legislativa sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal. A lei modificou centenas de dispositivos legais para facilitar sua compreensão e aplicação, tendo em particular eliminado termos jurídicos incompreensíveis.
Em terceiro lugar, a leitura de peças processuais demonstra que os operadores jurídicos utilizam um estilo retórico, repetitivo, repleto de argumentos de autoridade e, na realidade, vazio de conteúdo, que dificulta indevidamente a compreensão, ignorando as exigências do rigor jurídico.
Exemplo: “Na linha evolutiva de sua extensão, extingue-se temporariamente o ius puniendi do Estado, que passa ao patamar da dispensabilidade, enquanto durar o bom comportamento do beneficiado. Esse é o ponto revitalizador da aplicação do instituto condicionador de natureza normativa (TACrimSP, SER 1.317.317-1, 1ª CCrim, Boletim IBCrim, Jurisprudência 122/676,2003).
Observamos, finalmente, que a tecnicização da linguagem jurídica não decorre só da preocupação de clareza e, por consequência, de segurança jurídica. Com todo toda linguagem de “iniciados”, a linguagem jurídica é um instrumento de poder, manuseado pelos operadores jurídicos que conseguem, assim, adquirir um prestígio social (“o Doutor fala bonito”) e manter o monopólio de acesso ao sistema de justiça. O resultado é distanciar a população do universo jurídico e manter as vantagens sociais dos operadores do direito.
Isso não significa que os operadores do direito devem abandonar a terminologia técnica e usar expressões coloquiais, que sempre causam confusões e incertezas. Mas não deve servir de pretexto para a retórica e o “fechamento” do sistema jurídico. Os operadores do direito possuem o dever de popularizar o conhecimento jurídico e, principalmente, de explicar às partes do processo, com palavras simples, o andamento das causas que os interessam.
[...] Por um lado, o operador do direito deve aplicar aquilo que as leis ordenam. Por outro lado, não deve se esquecer da realidade na qual está inserido tanto ele como a própria lei. Radbruch convida o operador a ser lúcido, mesmo se o preço a pagar é perder a falsa inocência e a tranquilidade de espírito. Pelo menos até que o direito e a sociedade mudem...”.
[...] O ser humano aprende com esforço e comete sempre erros. Devemos começar estudando, mesmo sem entender tudo, para depois tentar de novo, errando e acertando mais. De maneira imperceptível adquirimos o domínio de uma matéria. Quem se formou em direito sabe que os ensinamentos dos livros de introdução ao direito, que lhe pareciam tão difíceis e complexos no primeiro ano de faculdade, foram gradualmente assimilados, até que os conceitos “inacessíveis” tornaram-se perfeitamente familiares. Para superar os problemas de entendimento, o estudante deve encontrar a coragem de dizer “não entendi” e de procurar os professores pedindo explicações. Ao contrário das universidades autoritárias do passado, onde os professores “pontificavam” e os alunos ouviam (ou dormiam), os professores de hoje ficam felizes com as intervenções dos alunos, porque isso lhes permite melhorar o próprio desempenho e transmitir o conhecimento de forma mais eficaz (...).”.   

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