“Do ponto de vista da percepção,
vemos a invariância do sentido perceptivo em face da mutabilidade dos elementos
mais simples representados por subsentidos ou impressões sensíveis. No plano do
ato perceptivo, que nos leva a uma intuição direta do objeto, não há uma
decomposição do objeto e também não há referência a algo que não seja ele
mesmo. Assim, não há, nesse plano, explicitação consciente de sensações
isoladas, apercepção de agregados ou associação de sensações ou evocação atenta
de elementos da memória, pois nada disso encontramos na intuição perceptiva
direta (O papel da memória na percepção foi muito acentuado na psicologia
clássica. No entanto, trata-se precisamente de destacar o critério pelo qual se
seleciona a lembrança, visto ela não ter por si só a propriedade de se evocar
adequadamente para compor um objeto da percepção). Ver uma conduta é ter diante
de si formas físicas do corpo; movimentos singulares ou gestuais;
características sensíveis do revestimento do corpo e matizes; objetos sobre o
qual atua; entorno material; fundo especial; duração; mas, é preciso que se
note com ênfase, a conduta não é só isso. Não digo que vejo somente formas,
movimentos, fundo, cores, espaço, tempo, ambiente, mas sim, e principalmente,
um processo integrado como conjunto indissociável, um fato, um evento – a
conduta como unidade cultural, como objeto estrutural de sentido -, ao qual
aqueles elementos pertencem ou cuja composição integram organicamente. E mais,
a conduta, para ser efetivamente uma conduta e não um mero reflexo, faz
referência à instância da finalidade para a qual ela se dispõe como conduta.
Ela sempre se inclui em um todo cultural. Por isso, não vejo o ato ou a
atividade em si mesma, senão em um horizonte e em um contexto, mesmo por
suposição ou expectativa, nos quais os fatores de envolvimento cultural e valores
dessa conduta lhe dão igualmente a base para o sentido perceptivo. O ambiente
contextual e cultural da conduta faz parte do seu sentido. Por isso, seria ridícula
ou estranha a conduta de estar em trajes de banho em um velório! Ou a de uma
pessoa cozinhando com um chique chapéu de casamento! Ou a da pessoa estar
carregando um guarda-chuva aberto dentro de casa! A tendência não é percebê-la
com naturalidade ou apenas como natureza física. Por isso, haveria
inevitavelmente sua tematização mediante a indagação (já não mais de natureza
puramente sensitiva) do porquê de tal conduta estar ocorrendo. Perceber e
compreender o sentido de uma conduta é imergi-la em um contexto cultural.
[...]”.Pontua Alaôr Caffé Alves e foi assim que o STF decidiu: “Gerald Thomas consegue arquivar processo por atentado
ao pudor.
O Supremo Tribunal Federal concedeu, nesta
terça-feira (17/8), Habeas Corpus ao diretor teatral Gerald Thomas e determinou
o imediato trancamento da ação penal proposta contra ele no Juizado Especial
Criminal do Rio de Janeiro. Thomas foi acusado de praticar ato obsceno,
previsto no artigo 233 do Código Penal.
A denúncia foi feita depois de o diretor abaixar as
calças, mostrar as nádegas para a platéia e simular ato de masturbação ao
reagir a vaias durante a montagem da ópera Tristão e Isolda, no Teatro
Municipal do Rio de Janeiro, em 2003.
A decisão foi apertada -- houve empate no
julgamento. O ministro Carlos Velloso, relator, e a ministra Ellen Gracie
negaram o pedido, enquanto os ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello votaram
a favor de Thomas.
O presidente da Turma, Celso de Mello, agiu de
acordo com o Regimento Interno do STF que determina, no parágrafo 3º, do artigo
150 que, em casos de empate no julgamento de HC, prevalecerá a decisão mais
favorável ao paciente.
O ministro Joaquim Barbosa considerou que não teria
condições de votar porque não assistiu à sessão em que foi lido o relatório do
caso.
Um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes
suspendeu o julgamento em maio deste ano, depois de o ministro Carlos Velloso
indeferir o pedido.
Ele considerou que a conduta atribuída a Gerald
Thomas se ajustaria ao tipo inscrito do artigo 233 do Código Penal e que, para
a configuração do crime, não é necessária a intenção específica de ofender o
pudor público.
Liberdade
de expressão
No julgamento, o ministro Gilmar Mendes abriu
dissidência. Disse que, no caso, apesar de a manifestação do diretor teatral
ter sido deseducada e de mau gosto, tudo não passou de um protesto grosseiro
contra o público.
Segundo o ministro, quando simulou a masturbação,
Gerald Thomas não estava pretendendo mostrar qualquer prazer sexual, mas que as
vaias não lhe atingiam.
Segundo Gilmar Mendes, o contexto em que se
verificou o fato não pode ser esquecido, pois tratava-se de um momento seguinte
a uma apresentação teatral, depois de uma manifestação desfavorável do público,
às duas horas da manhã.
"Difícil admitir, neste contexto, que a
conduta do paciente tivesse atingido o pudor do público. Um exame objetivo da
querela há de indicar que a discussão está integralmente inserida no contexto
da liberdade de expressão, ainda que inadequada ou deseducada", disse.
De acordo com o STF, o ministro salientou que a
sociedade moderna dispõe de mecanismos próprios e adequados a esse tipo de
situação, como a própria crítica, "prescindindo-se do eventual
enquadramento penal".
Já a ministra Ellen Gracie qualificou a conduta do
diretor como “pouco edificante e esteticamente questionável", e que ele
demonstrou desprezo pela opinião do público. "Figuras bem mais
qualificadas, como Victor Hugo, adotaram postura de humildade diante daqueles
que não compreenderam na época as inovações introduzidas nas suas
criações".
Último a votar, o ministro Celso de Mello
questionou se poderia se revestir como obsceno "um ato praticado no Teatro
Municipal do Rio de Janeiro, às duas horas da manhã, perante um público culto e
sofisticado".
Segundo ele, o conceito de obscenidade é variável
no tempo e no espaço e, tendo em vista o contexto em que a conduta ocorreu,
"tenderia a reconhecer que foi muito mais uma expressão, ainda que
grosseira, mas de sua própria liberdade de manifestação e reação às
vaias".
Ainda de acordo com Celso de Mello, quando a
doutrina discute a questão de obscenidade para efeito de configuração no artigo
233 do Código Penal, o ato obsceno real ou simulado deve ter uma conotação
sexual, transgredindo o sentimento de decência da coletividade.
"Isso ofenderia o pudor de coletividades
interioranas em nosso país, em determinadas regiões, mas não me parece que na cidade
do Rio de Janeiro, antiga capital federal, centro culturalmente evoluído, esse
ato possa ser reconhecido como impregnado de obscenidade", finalizou. HC
83.996, Min. Gilmar Mendes.”.
“Ao perceber um comportamento, por exemplo, de
comprar uma arma, não percebemos preliminarmente, em um processo ativo de
compreensão, as qualidades sensíveis desse comportamento pelas impressões
inarticuladas dos sense-data (=dados
dos sentidos), mas também que o objeto adquirido é ofensivo para a vida humana
ou animal; que a entrega da coisa se efetiva em uma loja e que, por isso, não
será normalmente adquirida por doação, e sim por compra; que o vendedor faz a
nota e lança um preço, fazendo-nos perceber a arma como mercadoria; que há um
entendimento entre vendedor e comprador constitutivo de um negócio; que a arma
está sendo adquirida com um propósito etc. Se uma criança de cinco anos percebe
o mesmo fato, é quase impossível ela ter essa mesma percepção, embora as
impressões (sense-data) dos sentidos
não variem substancialmente entre nós. Por outro lado, seria bem
incompreensível que víssemos uma criança de cinco anos, em uma loja, examinando
com um balconista uma arma de fogo e tivéssemos o sentido perceptivo de ser um
comportamento de compra e venda. Isso seria bem diferente se víssemos, em vez
da arma, um saco de guloseimas. Note-se ser praticamente impossível separar a
dimensão pragmática do objeto em relação à sua figuração percebida como sentido
perceptivo; o contexto cultural está presente. A arma cumpre uma função defensiva
ou ofensiva à vida que não pode deixar de ser instantaneamente percebida no
objeto na medida em que nossa cultura permita ter a experiência desse objeto.
Essa compreensão não existiria em um índio primitivo que não estivesse em
contato com a civilização do branco. Há, é certo, um nível de indeterminação
que pode nos confundir no ato de percepção: se a pessoa estivesse comprando uma
faca, não saberíamos por certo, se não tivéssemos experiência antecedentes
sobre ela, de suas intenções recônditas: se é para cortar algo (utilidade
inocente) ou para matar alguém (arma). Claro que, se a compra fosse de um
revólver, as intenções poderiam ser mais explícitas quer para a defesa quer
para o crime. Um silvícola não aculturado, como dissemos, pode não perceber
imediatamente um revólver como uma arma, por esta lhe ser estranha
culturalmente.Isso significa que o objeto percebido não é o real em si mesmo,
mas é precisamente o sentido perceptivo, aquele sentido que ao qual também
fazemos referência com a estrutura linguística disponível em situações
determinadas. Por essa senda, vê-se também que, nos atos perceptivos, não
percebemos a coisa em si, neutra, independente de sua organização de sentido,
em determinados níveis históricos e culturais da práxis social. Nesse sentido,
vemos com muita clareza a impossibilidade da separação entre sujeito e objeto,
mesmo na escala mais concreta de nossa experiência vital, representada pelo
contato empírico-sensorial com os seres e processos do mundo.” Conclui o autor.