"O mundo moral dos modernos é significativamente distinto do de civilizações procedentes." (Charles Taylor - As Fontes do Self).
A saber: "Criminalização do aborto não é baseada em evidências sobre a vida das mulheres.Conjur: 02 de agosto de 2018, 17h42 (por Ana Pompeu).
Poucos
temas testam tanto os limites da separação entre Direito e moral quanto
o aborto. E não poderia estar em outro foro além do Supremo Tribunal
Federal, destino de praticamente todos os temas importantes para a
sociedade brasileira dos últimos anos.
A
constitucionalidade da criminalização do aborto foi levada ao Supremo
por meio da ADPF 442. Entre estas sexta (3/8) e segunda-feira (6/8), o
tribunal promoverá audiências públicas para discutir o pedido feito na
petição inicial. São 40 inscritos, o que a transforma na audiência
pública com o maior número de participantes da história do tribunal.
Fora
dos muros e corredores do STF, Débora Diniz, professora da Faculdade de
Direito da UnB, fundadora e pesquisadora da Anis — Instituto de
Bioética e ativista dos direitos das mulheres, vem sofrendo ameaças por
suas posições. Uma das principais cabeças da ação que suscitou o debate, ela analisa que sofrer “uma reação de ódio e de rechaço ao processo democrático”.
Para
a pesquisadora, o contexto do Brasil e América Latina revela um
descompasso entre legislação e dia a dia. Ela enfatiza que, ao mesmo
tempo que somos uma região com umas das legislações sobre aborto mais
restritivas do mundo, somos também a região com as taxas mais altas de
aborto.
“Isso significa inclusive que o processo de
estabelecimento dessas leis não é um processo baseado nas evidências
sobre o que realmente impacta a vida das mulheres e meninas e altera as
relações e a realidade sobre aborto, mas baseado em dogmas morais que
atravancam um debate sério sobre saúde. É esse cenário que o Supremo
Tribunal Federal tem a oportunidade de enfrentar nesse momento”,
afirma, em entrevista à ConJur.
A
despeito desse quadro, a ação recebe críticas que apontam o Legislativo
como o poder com legitimidade para apreciar uma possível alteração.
Aqueles que sustentam essa posição se escoram no argumento do ativismo
judicial exacerbado. A pesquisadora rebate a discordância.
“Nesse
caso, o Supremo não é chamado a legislar, mas chamado a se pronunciar
sobre se uma legislação anterior à Constituição Federal está compatível
ou não com a própria Constituição. É simplesmente isso”, replica. Para
ela, ao contrário, é exatamente função da Corte Suprema avaliar a
garantia de direitos fundamentais.
Não é a primeira vez que o tema tem potencial de causar atrito entre os poderes. A arguição de descumprimento de preceito fundamental da Anis foi apresentada, juntamente com o PSOL, no Dia da Mulher, em 8 de março de 2017. A construção da ADPF ganhou força depois que a 1ª Turma
do STF, por maioria, entendeu que a interrupção da gravidez até o
terceiro mês de gestação não pode ser equiparada ao aborto, no fim de
2016.
Naquele momento, um dia após a decisão da Turma,
houve uma reação no Congresso. O presidente da Câmara dos Deputados,
Rodrigo Maia (DEM-RJ), anunciou uma comissão especial com o objetivo de
incluir na Constituição uma regra clara sobre aborto. “Sempre que o
Supremo legislar, nós vamos deliberar sobre o assunto”, disse Maia.
O
Código Penal de 1940 é o texto legal que rege o tema no Brasil. Desde
então, nenhuma alteração foi feita no âmbito legislativo. A única
mudança se deu por meio do próprio Supremo, em ação também capitaneada
por Débora Diniz. Em 2012 o Plenário do STF entendeu constitucional o
aborto em casos de anencefalia, por se tratar de uma condição
incompatível com a vida.
Prevaleceu a tese de que não
haveria ali uma vida a ser protegida e, portanto, obrigar uma mulher a
levar uma gestação em que ao final haveria um caixão e não um berço era
afrontar a sua dignidade e submetê-la à tortura. Para além disso, o
aborto é legal em casos de gravidez resultante de estupro e risco de
morte da gestante.
O objetivo é que o STF exclua dos
artigos 124 e 126 do Código Penal a interrupção da gestação induzida e
voluntária nas primeiras 12 semanas, “de modo a garantir às mulheres o
direito constitucional de interromper a gestação, de acordo com a
autonomia delas, sem necessidade de qualquer forma de permissão
específica do Estado, bem como garantir aos profissionais de saúde o
direito de realizar o procedimento”.
Os proponentes
argumentam que a proibição da prática viola preceitos da dignidade da
pessoa humana, da cidadania, da não discriminação, da inviolabilidade da
vida, da liberdade, da igualdade, da proibição de tortura ou tratamento
desumano ou degradante, da saúde e o planejamento familiar das mulheres
e os direitos sexuais e reprodutivos (decorrentes dos direitos à
liberdade e igualdade).
A ação que pretende descriminalizar o aborto teve o maior número de pedidos
de ingresso como amicus curiae da história da corte: foram 40 entidades
interessadas em apresentar posição sobre o assunto. Na convocação da
audiência pública, a relatora, ministra Rosa Weber, afirmou que os
pedidos de amici curiae serão analisados depois que a sociedade for
ouvida.
A própria audiência terá número elevado de participações, com 44 expositores,
com 20 minutos cada para argumentação, divididos em dois dias. Esse
número foi resultado da seleção feita pelo gabinete da ministra Rosa
Weber depois de terem recebido mais de 500 inscrições.
Leia a entrevista:
ConJur
— Há críticas que afirmam que o Judiciário não é o Poder com
legitimidade para tratar de temas como do aborto, pois seria inevitável o
ativismo. Como entende isso? O Supremo é o espaço para essa discussão?
Débora Diniz — Sim, o Supremo Tribunal Federal é o espaço
legítimo para a discussão sobre direitos fundamentais violados. Esse é o
seu papel em ações de controle de constitucionalidade, que é o caso da
ADPF 442. Nesse caso, o Supremo não é chamado a legislar, mas a se
pronunciar sobre se uma legislação anterior à Constituição Federal está
compatível com ela. É simplesmente isto: a possibilidade de interpretar a
adequação do Código Penal de 1940 de acordo com a Constituição Federal
e, inclusive, numa avaliação de garantia de direitos fundamentais, é uma
função regular da corte.
ConJur — A Anis teve e
tem atuação forte em questões como a do aborto e outras correlatas.
Desta vez, viraram notícia as ameaças que a senhora recebeu, inclusive
de morte. É a primeira vez que isso acontece?
Débora Diniz — Não. O episódio mais marcante foi justamente
quando a ADPF 54, que decidiu pela descriminalização do aborto em casos
de anencefalia do feto, estava em curso. É uma reação de ódio e de
rechaço ao processo democrático de debate sobre questões sensíveis. Mas
como da outra vez, o processo da corte se mostrará maior que as
intimidações.
ConJur — A regulamentação do
aborto no Brasil é o Código Penal e permanece a mesma desde 1940. A
única mudança foi a autorização para o aborto de fetos anencéfalos. Por
que a lei permanece tantos anos sem mudanças e se mantém restrita?
Débora Diniz — Vivemos num contexto de hegemonia
política muito hostil às mulheres, inclusive, compartilhado na América
Latina e no Caribe. Ao mesmo tempo que somos uma região com umas das
legislações sobre aborto mais restritivas do mundo, somos também a
região com as taxas mais altas de aborto. Isso significa inclusive que o
processo de estabelecimento dessas leis não é um processo baseado nas
evidências sobre o que realmente impacta a vida das mulheres e meninas e
altera as relações e a realidade sobre aborto, mas baseado em dogmas
morais que atravancam um debate sério sobre saúde. É esse cenário que o
Supremo tem a oportunidade de enfrentar nesse momento.
ConJur
— As decisões tomadas no referendo na Irlanda e depois pela Câmara dos
Deputados da Argentina sobre aborto têm reflexo na discussão feita por
aqui?
Débora Diniz — Sim, essas decisões têm um efeito claro.
Sobretudo a Argentina, pela proximidade de vizinhança. Como o Brasil e
outros países da América Latina e do Caribe, a Argentina é um país
entranhado na cultura patriarcal, um país onde, assim como no Brasil, há
certa confusão na separação entre religiões e Estado no cotidiano da
vida pública, que acredita no uso da lei penal para controlar as
decisões reprodutivas das mulheres. Mas notamos cada vez mais claramente
que existe um movimento que vem se fortalecendo em torno da discussão
dos direitos das mulheres em todo o mundo, uma luta global pelo
reconhecimento institucional dos direitos das mulheres tem se
intensificado, e Irlanda e Argentina são, sem dúvida, fontes de
esperança para luta brasileira também. Então certamente os debates têm
reflexo.
ConJur — Qual a expectativa para a audiência pública? Acredita que terá poder de mobilizar sociedade e os ministros?
Débora Diniz — Sim, já tem tido um poder importante de
movimentação do debate jurídico, e a expectativa é que haja também nesse
momento da audiência e a partir dela, uma qualificação maior da
discussão sobre a questão do aborto, com apresentação de dados corretos e
confiáveis, sobre o impacto da criminalização e dados de saúde pública,
inclusive de outros países quando descriminalizam o aborto. É preciso
destacar que a convocatória da audiência pública da ADPF 442 é um
momento de extrema importância, um momento em que o STF, mesmo diante de
um contexto de crise política no Brasil, assumiu uma atitude corajosa
afirmando que era a hora de debater sobre direito ao aborto na maior
corte de Justiça do país. Isso mostra seriedade da corte com debates
sensíveis de direitos humanos.
ConJur — Boa
parte das entidades que vão se manifestar contra a proposta da ADPF é
ligada a igrejas. Que o peso que esse setor tem sobre definição dos
limites do aborto no Brasil? E dos direitos de mulheres?
Débora Diniz — Existe uma matriz política, que inclusive tem
raízes religiosas, que ainda tem muito poder dentro das instituições no
Brasil, e, neste momento em especial, de crise política e uma agravada
crise de representatividade, e de crise da atuação política legítima
pelos partidos, outras instituições e personagens acabam ocupando um
espaço importante na arena política, como é o caso das igrejas e
religiões. Isso tem sido especialmente verificado nesse momento de
crise, mas é nesse momento também que se verifica um fortalecimento do
debate de direitos humanos com uso de evidências confiáveis.
ConJur
— Alguns ministros do STF já se manifestaram sobre o tema em outras
decisões, como a própria relatora da ADPF, ministra Rosa Weber, os
ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Edson Fachin. Qual a sua
expectativa sobre como o Plenário vai se posicionar nesse caso?
Débora Diniz — A expectativa com relação à ADPF, embora esse
não seja ainda o momento da votação, é a de que a corte compreenda
também o caminho de coerência da jurisprudência que tem havido desde o
julgamento das pesquisas com células tronco, caminhando para o
julgamento da anencefalia, casos em que há uma interpretação sólida
sobre o que significa a proteção dos direitos fundamentais na questão do
aborto. Então a expectativa é que o Plenário siga a posição consolidada
em ações anteriores.
ConJur — A ministra Rosa
negou um pedido de interrupção de gravidez feito dentro da ADPF. Isso
sinaliza algum posicionamento que o tribunal vá tomar no mérito do
pedido?
Débora Diniz — Não. É importante entender que naquele
momento a ministra Rosa Weber não negou o pedido, mas, por uma questão
processual, ela avaliou que não era possível deliberar sobre o pedido
naquele momento e dentro do processo da ADPF. Então a decisão foi
processual, não houve decisão substantiva sobre o mérito do pedido de
Rebeca, por isso essa decisão não nos indica nada em termos de posição
nem da ministra, nem do STF.
ConJur — O que significaria, na prática, uma decisão do Supremo pela descriminalização?
Débora Diniz — É preciso entender que um efeito grave da
criminalização pode ser visto no casos em que o aborto já deveria ser
legal. Existe um obstáculo significativo para que as mulheres encontrem
acesso aos serviços, Mesmo na legalidade, elas são atendidas a partir
dos estigmas que vêm da criminalização. A consequência disso são
serviços escassos, equipes com pouco preparo, o tratamento às mulheres é
feito sob permanente suspeição. Os médicos que atuam nesses serviços
atuam na exceção, sob uma forte pressão e medo de serem
perseguidos. A lista é longa, e, com a descriminalização do aborto, os
estigmas associados à sexualidade, saúde e decisões reprodutivas das
mulheres serão reduzidos inclusive nos serviços de saúde. Isso implica
em mais qualidade nas políticas de saúde e no preparo dos serviços para
acolher as necessidades das mulheres.
ConJur —
No fim de 2016, a 1ª Turma do STF entendeu, por maioria, que a
interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação não pode ser
equiparada ao aborto. Há que se recorrer a estratégias narrativas para
tratar do aborto no Brasil? O marco da 12ª semana foi determinado tendo
essa decisão em vista? Naquele momento, o Supremo extrapolou sua
competência?
Débora Diniz — O marco da 12ª semana foi determinado por ser um
marco temporal de aborto legal seguido internacionalmente. Existem
algumas razões para isso: esse é o tempo gestacional em que grande parte
das mulheres em todo o mundo fazem aborto — mais de 90% das mulheres
nos Estados Unidos e Reino Unido, por exemplo, fazem aborto até a 13ª
semana. Além disso, realizar o aborto dentro desse período é um
procedimento muito seguro, com baixo risco de complicações e é também um
período muito anterior ao tempo mínimo necessário para que haja
viabilidade do feto para vida fora do útero. Naquele momento, o STF não
extrapolou sua competência, porque o que foi decidido, na verdade, foi o
pedido do Habeas Corpus contra a prisão preventiva das pessoas que
estavam sendo acusadas, mas houve também um posicionamento da 1ª Turma
com relação a uma questão mais ampla que era uma questão constitucional.
ConJur — Como a punição ao aborto funciona no Brasil? Mulheres são presas?
Débora Diniz — O efeito da lei penal extrapola, e muito, os
procedimento de persecução criminal, de prisão e de se tornar ré em
processo penal. Mais ainda se considerarmos quem são atingidas por essa
criminalização, que são as mulheres mais vulneráveis. Ou seja: mulheres
de todas as classes sociais fazem aborto, mas só as meninas mais pobres,
negras, indígenas, dependentes do SUS enfrentam o risco real de ser
presas.
O mais cruel da lei penal no caso brasileiro é
que ela tem um efeito anterior a qualquer movimentação do sistema
punitivo. A lei penal já tem um efeito quando as mulheres precisam
procurar por conta própria os métodos clandestinos e precisam colocar
suas vidas em risco. São efeitos, inclusive, inadmissíveis pelo próprio
sistema penal brasileiro. O Brasil faz parte do conjunto de países que
veda o tratamento cruel, desumano e degradante, veda a tortura e veda a
pena de morte. Mas as mulheres, buscando um método clandestino de
aborto, muitas vezes encontram justamente o destino da tortura ou mesmo
da morte.
ConJur — A Pesquisa Nacional do
Aborto, da Anis, revela que um número alto de mulheres, de diferentes
perfis, abortam no país. Por que, então, é uma discussão tão penosa?
Débora Diniz — A PNA revela que aproximadamente 500 mil
mulheres abortam por ano no Brasil. Isso significa mais de 1,3 mil por
dia, 57 por hora e quase uma mulher por minuto. A pesquisa mostrou que
uma em cada cinco mulheres até os 40 anos já fez um aborto no país — ou
seja, todos nós, mesmo que não saibamos, conhecemos uma mulher que já
fez aborto. Elas são mulheres comuns, têm filhos, têm religião. A
discussão se torna tão difícil porque ela não é colocada nos termos
corretos sobre o impacto da criminalização na vida e na saúde das
mulheres. Ao contrário: é colocada como uma questão de posições morais
inconciliáveis que não têm relação, inclusive, com a possibilidade de
fazer com que abortos não ocorram. Os números nos mostram que,
independentemente da lei penal, uma mulher que precisa interromper uma
gestação vai interromper uma gestação. Assim, o único efeito real da
criminalização é fazer com que essa mulher faça esse aborto em condições
degradantes, perigosas à sua saúde, podendo morrer, podendo deixar sua
família desamparada, podendo deixar seus filhos desamparados.
ConJur — Acredita que essa inocuidade da lei terá peso na decisão do Supremo?
Débora Diniz — Sim, esse é um ponto crucial a que a
corte precisa estar atenta, compreendendo que, no Brasil, como em vários
outros países, o direito penal é a ultima ratio do
Estado. Isso significa que a lei penal só pode ser utilizada para a
proteção de um bem jurídico quando outras estratégias menos lesivas a
direitos fundamentais tenham falhado. Não é o que acontece com o
aborto. E a experiência de outros países mostra que existem medidas
menos graves, menos violadoras de direitos fundamentais, mais eficazes
para prevenir gestações indesejadas e, por consequência, prevenir
abortos.
ConJur — Pode citar algumas dessas experiências?
Débora Diniz — Investimento em educação sexual, em políticas
integrais de acesso a contraceptivos, de capacitação de profissionais
para que recebam as mulheres no serviço de saúde sem estigma, sem
julgamento, e assim poder cuidar delas e de suas necessidades.
ConJur — A ADPF 442 é a ação com mais pedidos de ingresso como amicus curiae da história do Supremo. A própria audiência pública recebeu centenas de pedidos de participação. O que isso significa?
Débora Diniz — Isso é um sinal muito importante. Primeiro, que a
sociedade civil está mostrando que quer debater esse assunto, que quer
se engajar nesse tema a partir de uma ótica de direitos, com suporte em
dados confiáveis, em evidências empíricas e na experiência das
mulheres. Algo muito importante desse movimento é justamente que a
sociedade civil está reconhecendo a corte como um locus
democrático para esse debate. Esse é um dos maiores sinais de que o
Supremo é também o local onde debates sensíveis sobre direitos podem
acontecer, e até o momento são 40 amici curiae, sendo que 29 são favoráveis à procedência da ação e 11 são contrários.
ConJur — A Anis está preparada para o caso de o Supremo declarar constitucional a criminalização do aborto?
Débora Diniz — Sim, a Anis está preparada para qualquer
resultado dessa ação. Qualquer que seja o fim desse julgamento, que
ainda não tem data para acontecer, vai fazer parte de uma luta maior do
movimento de mulheres pelos direitos sexuais e reprodutivos, que não se
iniciou na ADPF e nem terminará nela.".