domingo, 29 de maio de 2016

A Intimidade exterior e interior

"CF, art. 5º [...] X - são invioláveis, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;".   
 
      Numa bela página, Paulo José da Costa Júnior (O Direito de Estar Só, São Paulo, RT, 2007) descreve: "O legislador caminha sempre com o passo trôpego. Avança com vagar. Mais lentamente que os fatos sociais, que evoluem vertiginosamente, reivindicando normas e providências. Surgem assim valores novos, que vão avante das leis, desprotegidos, a reclamar tutela. A tutela de renovação é ininterrupta. Assemelha-se ao trabalho penoso de Sísifo, no inferno, a rolar, montanha acima, enorme pedra que, uma vez chegada ao alto, tombava novamente no fundo do vale. Poder-se-ia mesmo dizer que os manuais envelhecem, já no prelo, enquanto estão sendo impressos, necessitando de imediata obra de atualização. Dentre esses novos valores, que estavam a merecer tutela pronta e urgente do direito, sobressai a intimidade: a necessidade de encontrar na solidão aquela paz e aquele equilíbrio, continuamente comprometidos pelo ritmo da vida moderna. No direito de manter-se a pessoa, querendo, isolada, subtraída ao alarde e à publicidade, fechada na sua intimidade, resguardada da curiosidade dos olhares e ouvidos ávidos. Poder-se-ia falar numa intimidade exterior e noutra interior. Aquela, como a intimidade de que o homem haveria de desfrutar, abstraindo-se da multidão que o engloba. Insulando-se em meio a ela. E alheando-se, mesmo em companhia. A intimidade interior, que muitas vezes não implica solidão, já que o homem pode trazer para sua companhia os fantasmas que mais lhe apeteçam, é aquela de que o indivíduo goza materialmente, apartado de seus semelhantes. A intimidade exterior, portanto, é aquela de natureza psíquica. O homem a estabelece no burburinho da multidão. Ensimesmando-se em pleno tumulto coletivo. Decretando-se alheio, impenetrável às solicitações dos que o rodeiam. Presente e ausente. Rodeado e só. (A respeito, Ivette Senise Ferreira, em artigo intitulado "A intimidade e o Direito Penal - RBCCrim, v.5, São Paulo, p. 96-106, destaca que, modernamente, a intimidade consubstancia-se não apenas em isolamento, mas em conduta de 'resguardo das interferências alheias, de não ser o indivíduo importunado pela curiosidade ou pela indiscrição, de poder desfrutar a sua paz de espírito e ver respeitados os atributos de sua personalidade, frente aos outros indivíduos, ou ao Estado'"). A intimidade interior reveste-se de natureza física e material. O indivíduo afasta-se da multidão. Recolhe-se ao seu castelo. Desce às profundezas de sua alma e sai em busca de seu ser. Nada impede que o solitário físico venha a manter contato com a vida social, por intermédio dos meios de comunicação de que disponha. Ou mesmo trazendo para junto dele, na sua fantasia, o diálogo silente dos vivos e dos mortos.(Machado de Assis, nas sua Memórias póstumas de Brás Cubas - cap. 99 -, também vislumbra a intimidade psíquica, em plena multidão: 'O voluptuoso e esquisito é insular-se o homem no meio de um mar de gestos e de palavras, de nervos e paixões, decretar-se alheado, inacessível, ausente'). Há os que entendem que a proteção da vida privada foi judicialmente acolhida, pela primeira vez, em França, no julgado do Tribunal Civil do Sena, de 16 de junho de 1858. O fato consistiu em a irmã de uma artista ter encarregado dois artistas de desenhá-la, em seu leito de moribunda. O desenho foi abusivamente exposto e colocado à venda num estabelecimento comercial. O Tribunal determinou a apreensão do desenho e de suas várias provas fotográficas. Da decisão constou que, por maior que seja uma artista, por histórico que seja um grande homem, tem sua vida privada distinta da pública, seu lar separado da cena e do fórum. Podem desejar morrer na obscuridade, quando ou porque viveram no triunfo. Foi, entretanto, nos Estado Unidos, em fins do século passado, que se sentiu, pela vez primeira, a ameaça que se fazia ao direito que o homem tem de ser deixado a sós (the right to be let alone ou the right of on individual to live a life of reclusion and anonimity). Àquela época, em Boston, a imprensa local preocupava-se sobremaneira em divulgar os mexericos do salão da Srª Samuel D. Warren, elegante dama, filha de um senador da República e esposa de prestigioso advogado, que terminou por escrever pequena obra a respeito do assunto, em parceria com seu companheiro de banca, L. D. Brandeis, que depois veio a ser um dos mais famosos juízes da Suprema Corte. Foi apresentado, em 1902, à Corte Americana o primeiro caso de violação do direito à intimidade, que o rejeitou por quatro votos contra três. A opinião pública americana, porém, colocou-se por inteiro ao lado dos juízes vencidos, e a Suprema Corte acabou por reconhecer o direito à intimidade. Hoje, a quase-totalidade dos Estados americanos o proclama. E o Amercan Law Institute, na sua codificação oficiosa de delitos e quase-delitos civis, acolheu, em seu art. 867, a tutela à intimidade. É forçoso reconhecer: nos Estados Unidos, onde impera o sistema da common law, com maior facilidade o direito se adapta às conquistas e às exigências, sempre mutáveis, da vida moderna. No início da década de 1970, os vizinhos de determinada pessoa, residente na Califórnia, Estados Unidos, ao revolverem sua lata de lixo, suspeitaram de que lá houvesse vestígios de tóxicos, pelo que solicitaram a intervenção da polícia. De fato, após o exame dos detritos, verificou-se que se tratava de substâncias entorpecentes. Com base na prova colhida e na lei, o juiz criminal condenou os viciados. A Suprema Corte da Califórnia, porém, entendendo que a lata de lixo constitui um apêndice da economia doméstica, reformou a sentença condenatória, pois a prova que a lastreava havia ofendido privacy alheia. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal, por razões similares, absolveu da prática de crime contra o IAPAS (hoje, extinto), porque as provas foram obtidas na gravação de fitas clandestinas, que reproduziram determinadas conversações telefônicas, ofendendo a privatividade alheia. (Anote-se: a expressão exata, em bom vernáculo, é privatividade, que vem de privativo. E não privacidade, que é péssimo português e bom anglicismo - vem de privacy.).". Esta obra traz importantes conceitos e desdobramentos relacionados com o direito à intimidade. Explora o assunto de maneira abrangente, expondo inclusive fatos reais de invasão da privatividade de algumas celebridades. O autor contrata as esferas da vida privada ou particular, retratando as diferenças entre a esfera da intimidade e a esfera do segredo; diferenças importantes para a tutela penal. Há considerações, inclusive, às limitações do direito à intimidade e a sua relação com o direito à honra, abordando-se o tema sob o foco da possibilidade da extinção da lesão à intimidade da pessoa, em caso de morte, e quanto à pessoa jurídica ser titular do direito à intimidade. O autor apresenta a tutela da intimidade no direito comparado, a seguir, adentra no embate entre o direito à intimidade e à liberdade de pensamento, especialmente em duas de suas ramificações de maior importância, a liberdade de informar e de ser informado. Neste âmbito, analisa a exceção da verdade e o direito de resposta. Também trata da disciplina dada às interceptações telefônicas em nosso País e, finalmente, do abuso da informática, da violação da intimidade por meios eletrônicos e do combate aos crimes informáticos com os instrumentos legais que existem hoje.

domingo, 22 de maio de 2016

O Princípio da Responsabilidade em Hans Jonas

VITALINO CANAS (Introdução às decisões de provimento do Tribunal Constitucional, 2ª edição, Lisboa, 1994) adverte: “[...] a atitude mais correta não é a de, perante um precipitar da realidade que se pretende conhecer, procurar adaptar a fenômenos novos conceitos criados a pensar numa outra realidade. Novas exigências postulam novos institutos.”. Assim é que, em outro domínio, ainda assim, implicativo, a crítica de HANS JONAS (O Princípio da Responsabilidade – ensaio de uma ética para a civilização tecnológica – RJ, Contraponto, 2006), está voltada para a sobrevivência física e espiritual da humanidade, como tema central. A partir de um ponto de vista ontológico, ele retoma as questões sobre a relação entre Ser e dever, causa e finalidade, natureza e valor. Busca ultrapassar o subjetivismo dos valores para fundamentar no Ser o dever do homem moderno. Certas transformações em nossas capacidades, ele diz, acarretam uma mudança na natureza do agir humano. E, já que a ética tem a ver com o agir, a natureza modificada do agir humano também impõe uma modificação na ética. A natureza qualitativamente nova de muitas das nossas ações descortinou uma dimensão inteiramente nova, não prevista nas perspectivas e nos cânones da ética tradicional. A técnica moderna introduziu ações de uma tal ordem inédita de grandeza, com tais novos objetos e consequências que a moldura da ética antiga não consegue mais enquadrá-la. No pensamento tradicional, a presença do homem no mundo era um dado primário e indiscutível, de onde partia toda ideia de dever referente à condução humana. Agora, essa presença tornou-se, ela mesma, um objeto de dever, o dever de conservar o mundo e preservar as condições dessa presença. A descoberta da vulnerabilidade da natureza provocada pela intervenção técnica do homem fez que surgisse a ciência do meio ambiente, a ecologia. Essa situação modificou completamente a representação do ser humano para consigo mesmo, como fator causal no complexo sistema das coisas. Ao promover essa modificação na ação da natureza humana, algo inteiramente novo passa a fazer parte da responsabilidade humana, ou seja, toda biosfera do Planeta. Impõe-se, assim, pensar em uma nova teoria ética para nortear a ação humana nessa nova realidade. Faz-se necessário refletir que, pela educação ambiental, amparada por novos conceitos éticos, será possível transformar o comportamento humano, que deve se esvair dos valores enraizados da ética tradicional e colocar a responsabilidade para com as gerações futuras e com a natureza como fator crucial na manutenção da vida no Planeta. Por fim, faz-se mister reafirmar a importante contribuição deixada pelo filósofo Jonas sobre a ética da responsabilidade, pois somente por meio desses novos conceitos éticos será possível pensar uma nova educação ambiental, que norteie a ação humana de forma que o homem passe a agir com calma, prudência e responsabilidade para, dessa maneira, ser possível trilhar os caminhos de um novo modelo político, econômico e educacional que restabeleça o equilíbrio tanto ecológico quanto social, nas palavras de FABIO ANTÔNIO GABRIEL e outros (4) (Ensaio entre Filosofia & Educação, RJ, Multifoco, 2016, 1ª edição). Já que educar vai além do processo ensino-aprendizagem, por isso, é fundamental refletir sobre educação para que o processo educacional seja realmente capaz de conduzir o ser humano a realizar ações conscientes e autônomas na sociedade, capaz de conscientizar e de libertar o ser humano das correntes da reprodução cognitiva que restringem ou anulam a liberdade do atuar, capaz de fazê-lo construir sua autonomia e, com ela, agir lúcida e eticamente, a fim de modificar o seu meio social e o próprio contexto histórico, conquistando a dignidade individual e social e de toda a humanidade. Eis que a educação não pode ser mero meio de reprodução de pensamentos. Educar é motivar à reflexão, é motivar à práxis de busca, à curiosidade, à criatividade, ao espírito investigador ou, poeticamente, despertar a insaciedade, a fome         de
criatividade, ao espírito investigador ou, poeticamente, despertar a insaciedade, a fome de conhecer.

domingo, 15 de maio de 2016

A formação das línguas indo-européias

     "CF, art. 13. A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil.".
    Ao apresentar o resultado da pesquisa sobre a formação das línguas indo-européias, Émile Benveniste (O Vocabulário das Instituições Indo-Eropéias, Campinas, SP, Editora UNICAMP, 1995, II Volumes), em prefácio, escrevera: "A obra que aqui se apresenta em seu primeiro volume traz um título explícito. Ela resulta de pesquisa cujo objeto abrange uma parcela considerável do vocabulário indo-europeu. Mas a natureza dos termos nesse vocabulário, o método aplicado e a análise proposta demandam alguns esclarecimentos. Entre as línguas do mundo, as da família indo-européia se prestam às investigações mais extensas no tempo e no espaço, às mais variadas e mais aprofundadas, pelo fato de que essas línguas se estenderem da Ásia Central ao Atlântico, têm uma idade comprovada de quase quatro milênios, estão ligadas a culturas de níveis diferentes, mas muito antigas e algumas delas das mais ricas que já existiram, e, por fim, várias dessas línguas produziram uma literatura abundante e de grande valor. Por esse fato também, elas constituíram por muito tempo objeto exclusivo da análise linguística. O indo-europeu se define como uma família de línguas oriundas de uma língua comum e que se diferenciaram por separação gradual. É, portanto, um imenso acontecimento global que tomamos em seu conjunto, porque ele se decompõe no decorrer dos séculos numa série de histórias distintas, cada qual referente a uma língua particular. O admirável, na medida em que as fases dessas migrações e implantações continuam desconhecidas a nós, é que possamos designar com segurança os povos que fizeram parte da comunidade inicial e reconhecê-los, à exclusão de todos os demais, como indo-europeus. A razão disso é a língua, e apenas a língua. A noção de indo-europeu vale, primeiramente, como noção linguística e, se podemos estendê-la a outros aspectos da cultura, será também a partir da língua. O conceito de parentesco genético não possui um sentido tão preciso e uma justificação tão clara em nenhum outro domínio linguístico. Encontramos no indo-europeu o próprio modelo das relações de correspondência que delimitam uma família de línguas e permitem reconstruir seus estados anteriores, até a unidade original. Desde um século, o estudo comparativo das línguas indo-européias tem seguido em duas direções de sentidos opostos, mas complementares. De um lado, procede-se a reconstruções fundadas nos elementos, simples ou complexos, que, entre as línguas diferentes, são passíveis de comparação e podem contribuir para restituir o protótipo comum, sejam eles, fonemas, palavras inteiras, desinências flexionais etc. Colocam-se assim modelos que, por sua vez, servem para novas reconstruções. De outro lado, num procedimento em sentido oposto, parte-se de uma forma indo-européia bem estabelecida para seguir as formas dela derivadas, as vias da diferenciação, os conjuntos novos assim resultantes. Os elementos herdados da língua comum se encontram incorporados a estruturas independentes, que são as de línguas particulares; a partir daí, eles se transformam e adquirem valores novos no seio das oposições que se criam e que são por eles determinadas. Cumpre, pois, estudar de um lado as possibilidades de reconstrução, que unificam vastas séries de correspondências e revelam a estrutura dos dados comuns, de outro lado o desenvolvimento das línguas particulares, pois aí está o campo fértil, aí germinam as inovações que transformam o sistema antigo. É entre esses dois pólos que se move o comparatista, e seu esforço visa precisamente distinguir as conversações e as inovações, explicar as identidades e também as discordâncias. Às condições gerais impostas pelo princípio da comparação entre línguas comam-se as particularidades próprias ao domínio lexical, no qual se inclui o presente estudo. [...]". 
     A importância da divulgação desse discurso está em que durante os últimos trinta anos, uma das áreas acadêmicas que mais têm crescido é a dos estudos sobre a tradução. A tradução revela-se uma vertente promissoras àqueles que estão se formando nas universidades e pretendem buscar alternativas dentro da área em que se formarem e o Direito desponta como uma das importantes. Assim, seguindo o discurso de Wagner Lenhardt (Liberdade e Propriedade A inerente e verdadeira relação entre Direito de Propriedade e Liberdade - UFJF - Centro de Pesquisas Estratégicas "Paulo Soares de Sousa"), "a) A idéia de manter a população no campo é uma sentença de miséria. Está muito claro que o campo não tem condições de gerar riqueza suficiente para trazer o progresso e o desenvolvimento econômico almejados pela modernidade. Prova disso são os países desenvolvidos. Atualmente, uma parcela residual das populações dessas nações vive no campo. Mais, a representatividade do setor primário no PIB é extremamente baixa nessas sociedades, o que obviamente significa a impossibilidade de manter um grande número de pessoas com uma renda elevada. O fato concreto é que o futuro da humanidade está no ambiente urbano, principalmente, no setor de serviços e no trabalho intelectual. Tentar contrariar essa tendência só tornará possível um objetivo: a manutenção da miséria nos países em desenvolvimento.". Então, para quem já está investindo tempo e recursos na formação universitária, a atenção a essa advertência parece salutar. E mais, ninguém tornar-se-á intelectual de verdade, com boa produção, se não considerar seriamente a profundidade do que deseja construir.

domingo, 8 de maio de 2016

De onde vêm as palavras e a ideia de ordem e de justiça

     "De onde menos se espera, dali mesmo é que não sai nada." (Aparício Torelly, Barão de Itararé 1895-1971). 
     Dentre tantos, dois autores que se ocuparam desse tema: Deonísio da Silveira (De onde vêm as palavras)  e Émile Benveniste (O vocabulário das instituições indo-européias). O primeiro é brasileiro. O segundo é francês. Para Deonísio: "No princípio, era o verbo", diz o Evangelho de São João. E Osman Lins, escritor que muito lutou pela dignidade de seu ofício, escreveu: "a palavra sagra os reis, exorciza os possessos, efetiva os encantamentos. Capaz de muitos usos, é também a bala dos desarmados e o bicho que corrói as carcaças podres". E Carlos Drummond de Andrade: "lutar com palavras/ é a luta mais vã/ entanto lutamos/ mal rompe a manhã". E Fernando Pessoa: "a palavra é, uma só unidade, três coisas distintas - o sentido que tem, os sentidos que evoca, e o rítmo que envolve esse sentido e estes sentidos". As palavras têm mistérios e são cheias de sutis complexidades. Diz-se que umas dão azar; outras, sorte. Este é um livro sobre palavras, frases famosas e curiosidades da Língua Portuguesa, de nossa e de outras literaturas. De onde vieram essas palavras, como as formaram, como mudaram de sentido, em que circunstâncias foram pronunciadas frases que depois se tornaram célebres. Apesar de ter exigido muita pesquisa e as origens aqui dadas estarem baseadas em fontes científicas pertinentes, esta não é um livro de etimologia no sentido tradicional. [...]". De Benveniste, na avaliação de Rosa Maria de Andrade Nery (Introdução ao Pensamento Jurídico e à Teoria Geral do Direito Privado), tem-se: "Análise extraordinária dos termos thémis e diké nos é dada por Benveniste ao buscar a raiz comum de termos que remontam às raízes de línguas indo-européias. O conceito de ordem aparece junto a tudo que se refere ao homem e ao mundo, como fundamento moral e religioso de toda a sociedade. Da análise sequencial da evolução das palavras nascidas desse conceito de ordem chega-se ao latim ritus (ordenamento, rito), ao grego artús (ordenamento), que se tornaram raízes de numerosas variedades lexicais de aspectos religiosos, jurídicos e técnicos ligados ao conceito de ordem. Essa ideia de ordem, como de algo que decorre da necessidade de estabelecimento de sistema firmemente posto para a segurança das relações morais e religiosas das pessoas em sociedade, permite, a partir de termos de outras línguas, compreender a extensão dessa sabedoria. Por exemplo, o que se passou em sânscrito védico como o termo dharma (neutro dharman = lei), que também gerou outras ideias: a) dha = pôr = estabelecimento, sede, local; b) dhe - pôr de maneira criativa, colocar, estabelecer na existência, que deu em latim facio e em grego títhémi (Thémis designa o direito familiar e se opõe a diké, que é o direito entre as famílias da tribo. A thémis é o apanágio de basiléus, que é de origem celeste, e o plural thémistes indica o conjunto dessas prescrições, código inspirado pelos deuses, leis não escritas, compilações de ditos, de decretos, pronunciamentos por oráculos, que fixam na consciência do juiz (no caso, o chefe da família) a conduta a seguir sempre que estiver em jogo a ordem do génos). Tudo isso para significar que a ideia de lei, como derivada dessa raiz indo-européia, transfere para nós o sentido de que lei é aquilo que se mantém firmemente, o que está estabelecido solidamente. Segundo belíssima explicação de Benveniste, houve a transição de "mostrar" para "dizer". Mostrar pela palavra, não pelo gesto: ensinar. O autor parte do sentido do termo Thémis, que deriva de dhé (pôr, colocar, estabelecer na existência), e Diké, que deriva de deik, dis (do sânscrito, direção, região). Depois demonstra que tais palavras são oriundas da mesma raiz que gerou dis em iraniano; dico-dixem em latim; deíknumi em grego (mostrar). Deik + ius = iudex. Deik é um ato de fala. Iu-dex = mostrar com autoridade. Em latim dicere: somente o juiz podia dicere ius. O pretor podia do, dico, addico = dar, enunciar regras, adjudicar. Deik é uma fórmula, para mostrar o que deve ser (=decisão judiciária), para proporcionar as coisas, com equilíbrio e moderação. Assim, Aristóteles, em outras passagens de sua Ética a Nicômaco: a) a ação justa é um meio-termo entre o agir injustamente e o ser tratado injustamente, pois no primeiro caso se tem demais e no outro se tem muito pouco; b) a justiça se relaciona com o próximo e se manifesta na distribuição de funções elevadas de governo, ou de dinheiro, ou de outras coisas, que devem ser divididas entre os cidadãos; c) o princípio da justiça distributiva, portanto, é a conjunção do primeiro termo de uma proporção com o terceiro, e do segundo com o quarto, e o justo nesta acepção é o meio-termo entre dois extremos desproporcionais, já que o proporcional é um meio-termo, e o justo é o proporcional. Kelsen também criticou essa proposta aristotélica. Para ele a autêntica função da teoria do mesotes não é determinar a essência da justiça, mas reforçar a vigência do ordenamento social existente, estabelecido pela moral e pelos direitos positivos.". 
     Ao divulgar esses autores para utilização pelos estudiosos de Direito, permito-me a expectativa de que venham a contribuir para uma retomada ou avançar naquilo que já se iniciou do efetivo alcance universalista, científico e, sobretudo, humanista, do saber jurídico. Deixo, agora, a tarefa da busca, da pesquisa, do estudo aos interessados para aprofundamento do tema.

domingo, 1 de maio de 2016

O Trabalho em Rui Barbosa: Oração aos Moços

     A mensagem de Rui Barbosa, sobre o trabalho, desenvolvido na Oração aos Moços, é densa e convidativa. Ele termina o texto: "Assim o queira Deus.". Quando inicia, diz: "Não quis Deus que os meus cinquenta anos de consagração ao direito viessem receber no templo do seu ensino em São Paulo o selo de uma grande bênção, associando-se hoje com a vossa admissão ao nosso sacerdócio, na solenidade imponente dos votos em que o ides esposar. Em verdade vos digo, jovens amigos meus, que o criador desta existência declinante com essas carreiras nascentes agora, o seu coincidir num ponto de interseção tão magnificamente celebrado, era mais do que eu merecia; e, negando-me a divina bondade num momento de tamanha ventura, não me negou o a que eu não devia ter tido a inconsciência de aspirar. Mas, recusando-me o privilégio de um dia tão grande, ainda me consentiu o encanto de vos falar, de conversar convosco, presente entre vós em espírito; o que é, também, estar presente em verdade. Assim que não me ides ouvir de longe, como a quem se sente arredado por centenas de quilômetros, mas de ao pé, de em meio a vós, como a quem está debaixo do mesmo teto e à beira do mesmo lar, em colóquio de irmãos, ou junto dos mesmos altares, sob os mesmos campanários, elevando ao Criador as mesmas orações, e professando o mesmo credo. Direis que isto de me achar assistindo, assim, entre os de quem me vejo separado por distância tão vasta, seria dar-se, ou supor que se está dando, no meio de nós, um verdadeiro milagre? Será. Milagre do maior dos taumaturgos. Milagre de quem respira entre milagres. Milagre de um santo, que cada qual tem no sacrário do seu peito. Milagre do coração, que os sabe chover sobre a criatura humana, como o firmamento chove nos campos mais áridos e tristes e orvalhava das noites, que se esvai, com os sonhos de antemanhã, ao cair das primeiras frechas de oiro do disco solar. Embora o relismo dos adágios teime no contrário, toleram-me o arrôjo de afrontar uma vez a sabedoria dos provérbios. Eu me abalanço a lhes dizer e redizer de não. Não é certo, como corre mundo, ou, pelo menos, muita e muitíssimas vezes não é verdade, como se espalha fama, que <longe da vista, longe do coração>. O gênio dos anexins, aí, vai longe de andar certo. Esse prolóquio tem mais malícia que ciência, mais epigrama que justiça, mais engenho que filosofia. Vezes sem conto, quando se está mais fora da vista dos olhos, então (e por isso mesmo) é que mais à vista do coração estamos; não só bem à sua vista, senão bem dentro nele. Não, filhos meus (deixai-me experimentar, uma vez que seja, convosco, este suavíssimo nome); não: o coração não é tão frívolo, tão exterior, tão carnal, quanto se cuida. Há, nele, mais que um assombro fisiológico: um prodígio moral. É o órgão da fé, o órgão da esperança, o órgão do ideal. Vê, por isso, com olhos d'alma, o que não vêem os do corpo. Vê ao longe, vê em ausência, vê no invisível, e até no infinito vê. Onde pára o cérebro de ver, outorgou-lhe o Senhor que ainda veja; e não se sabe até onde. Até onde chegam as vibrações do sentimento, até onde se perdem os surtos da poesia, até onde se somem os vôos da crença: até Deus mesmo, inviso como os panoramas íntimos do coração, mas presente ao céu e à terra, a todos nós presente, enquanto nos palpite, incorrupto, no seio, o músculo da vida e da nobreza e da bondade humana. Quando ele já não estende o raio visual pelo horizonte do invisível, quando sua visão tem por limite a do nervo ótico, é que o coração, já esclerótico, ou degenerescente, e saturado nos resíduos de uma vida gasta no mal, apenas oscila mecanicamente no interior do arcabouço, como pendula de relógio abandonado, que grita, com as derradeiras pancadas, os vermes e a poeira da caixa. Dele se retirou a centelha divina. Até ontem lhe banhava ela de luz todo esse espaço, que nos distancia do incomensurável desconhecido, e lançava entre este e nós uma ponte de astros. Agora, apagados esses luzeiros, que inundavam de radiosa claridade, lá se foram, com o extinto cintilar das estrelas, as entreabertas do dia eterno, deixando-nos, tão-somente, entre o longínquo mistério daquele termo e o aniquilamento da nossa miséria desamparada, as trevas de outro éter, como esse que se diz encher de escuridão o vago mistério do espaço. Entre vós, porém, moços que me estais escutando, ainda brilha em toda a sua rutilência o clarão da lâmpada sagrada, ainda arde em toda a sua energia o centro de calor, a que se aquece a essência d'alma. Vossa coração, pois, ainda estará incontaminado; e Deus assim o preserve. [...].".
     É assim mesmo que se expressa aquele que confia no espírito jovial. Eis que das virtudes quase não se fala mais. Isso não significa que não precisemos mais delas, nem nos autoriza a renunciar a elas. É melhor ensinar as virtudes, dizia Spinoza, do que condenar os vícios. É melhor a alegria do que a tristeza, melhor a admiração do que o desprezo, melhor o exemplo do que a vergonha. Não se trata de dar lições de moral, e sim de ajudar cada um a se tornar seu próprio mestre, como convém, e seu único juiz. Com que objetivo? Para ser mais humano, mais forte, mais doce. Virtude é poder, é excelência. As virtudes não nossos valores morais, encarnados, tanto quanto pudermos, vividos, em ato. Sempre singulares, como cada um de nós, sempre plurais, como as fraquezas que elas combatem ou corrigem. Não há bem em si: o bem não existe, está por ser feito, é o que chamamos virtudes. E o trabalho as representa em maior profundidade por que em ato. O discurso só é estéril.