sexta-feira, 30 de maio de 2014

Qual a Origem do Direito?

     Há um intenso fascínio pela questão original, o começo de quase tudo. Quer-se saber: a origem do universo; a origem da vida; e origem do Direito; e por aí se vai. Isso é bom. Só que a resposta não foi alcançada até hoje e pelo jeito nunca o será. É que a resposta esbarra na questão do limite do conhecimento humano. Com efeito: a ciência é um diálogo com a natureza. Esse diálogo pressupõe um mundo simétrico em relação ao tempo em que seria um mundo cognoscível. Tal medição prévia, porém, à criação dos conhecimentos, pressupõe a possibilidade de ser afetado pelo mundo, quer sejamos nós os afetados, quer sejam os nossos instrumentos. Daí, compreender a natureza sempre foi um dos grandes projetos do pensamento ocidental. 

     Estritamente falando, no caso específico do Direito, este não tem uma origem, seja no sentido de que está além de relações de causa e efeito; seja no sentido de que tanto o Direito, como a Política, surgiu, lentamente, em decorrência de necessidades práticas, ou seja: não existe, para o Direito e para a Política, uma data de fundação. Além do que ambos só existem, ainda, de modo relacional, daí o prefixo (di = dois). Onde, por hipótese, existisse apenas um homem; aí não existiria Direito nem Política. Aí, também, não haveria necessidade de regulamentação de nada; o homem seria absolutamente autônomo. O homem de Robson Crusoe não precisava de regras até que apareceu o nativo Sexta-feira.

     Uma das formas encontrada pelo homem para explicar a "origem" foi a figura do mito, cuja solução encontrada para esse problema, pelas várias culturas, é essencialmente religiosa. Mitos "são histórias que procuram viabilizar ou reafirmar sistemas de valores, que não só dão sentido à nossa existência como também servem de instrumento no estudo de uma determinada cultura". O poder de um mito não está em ele ser falso ou verdadeiro, mas em ser efetivo. Um exemplo trágico é o mito da supremacia ariana, usado pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial como plataforma de coesão da Alemanha. Outra forma adotada é o uso de metáforas, bem como o simbolismo, especialmente para a ciência que explora fenômenos alheios à nossa percepção sensorial, como por exemplo no mundo do muito pequeno e do muito rápido (o domínio da física atômica e subatômica). Isso explica por que mitos de determinadas culturas podem parecer completamente sem sentido em outras. E o que torno nocivo é a ignorância desses instrumentos culturais por parte daqueles que estão encarregados de tomadas de decisões.

     

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Democracia, Tempo, Determinismo, Natureza e Ciência

     Muitos países ocidentais têm que a Democracia é a melhor forma de governo. Isso parece se impor como dado de uma espécie de conhecimento cultural próximo ao senso comum. Todavia, adverte Jacques Rancière, em diversos trabalhos, como, começando por Platão e até pouco tempo atrás, que a Democracia foi associada ao governo da "plebe" ou "gentalha" e que ela foi assim considerada por séculos como o ato de deixar as decisões de governo em mãos da massa sem educação, o que não deixa de ser uma forma de visão pejorativa, infelizmente, reinante em diversos domínios dos saberes.

      Inobstante, há, por outro lado, esquemas mentais mais lúcidos. Assim é que, colhe-se, por paralelo, numa visão profunda de Ilya Prigogine (O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza - São Paulo: Editora Unesp, 1996, p.14/15), a descrição: "A questão do tempo e do determinismo não se limite às ciências, mas está no centro do pensamento ocidental desde a origem do que chamamos de racionalidade e que situamos na época pré-socrática. Como conceber a criatividade humana ou como pensar a ética num mundo determinista? Essa questão traduz uma tensão profunda no interior de nossa tradição, que se pretende, ao mesmo tempo, promotora de um saber objetivo e afirmação do ideal humanista de responsabilidade e de liberdade. A democracia e as ciências modernas são ambas herdeiras da mesma história, mas essa história levaria a uma contradição se as ciências fizessem triunfar uma concepção determinista da natureza, ao passo que a democracia encarna o ideal de uma sociedade livre. Considerarmo-nos estrangeiros à natureza implica um dualismo estranho à aventura das ciências, bem como à paixão de inteligibilidade própria do mundo ocidental. Esta paixão consiste, segundo Richard Tarnas, em "reencontrar sua unidade com as raízes de seu ser". Pensamos situar-nos hoje num ponto crucial dessa aventura, no ponto de partida de uma nova racionalidade que não mais identifica ciência e certeza, probabilidade e ignorância. [...] Toda inovação conceitual exige uma justificação precisa e deve delimitar as situações em que permite predições novas. [...] Embora este livro seja fruto de décadas de trabalho, estamos apenas no início deste capítulo da história de nosso diálogo com a natureza. Mas o tempo de vida de cada um de nós é limitado, e decidi apresentar os resultados como eles existem hoje. Não é à visita de um museu de arqueologia que o leitor está convidado, mas sim a uma excursão por uma ciência em evolução.".

     Pois bem, disso tudo fica a inferência de que tudo está interligado: natureza, forma de governo, política, direito, tempo, movimento, espaço, etc.  E assim, a solução da crise, pela qual estamos atravessando, passa por uma nova forma de visão a considerar de que há interligação de tudo em tudo, necessariamente, ou seja: não há setores estanques, ainda que, para fins didáticos, seja oportuno algumas divisões momentâneas.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Ser Edificante

     Quando se trata de Método ou Metologia, o essencial consiste na escolha das premissas, como a lógica comprova. É que partindo-se de premissas falsas o resultado será um produto falso, o que é evidente. E a própria sabedoria alerta que quando um cego conduz outro cego, ambos acabam no buraco.

      Pois bem, é de supor que todos gostariam de ser edificantes, promotores do bem, no sentido de que o espírito de servir à boa causa está posto à prova com nossas limitações, a superá-las. Com efeito, José Ortega y Gasset, em carta escrita ao discípulo, Julian Marías, no momento de transmissão da liderança da Escola de Madrid, descrevera: "O grande drama da vida talvez esteja em sua própria construção, fazer com ela, como o grito desesperado de São Paulo ao pronunciar "o homem tem que ser edificante", cruel exigência ou maravilhoso favor. Nessa situação ganha a imaginação a princípio. Mas só a princípio, já que ao efetivar-se o sonho, perdemos parte dessa grande mãe criativa, que tantas vezes se oculta na realidade que o mundo insiste em chamar de verdade. Construímo-nos exatamente como o novelista constrói seus personagens. Somos novelistas de nós mesmos e se não o fôssemos, jamais poderíamos entender qualquer obra literária ou poética. Quem não percebe o autor de sua vida, não aprecia a arte que lhe inspira e nem admira a natureza que o espelha. O lamentável é que, na maioria das vezes, compre-nos eleger um só e único caminho dentre os muitos que poderão chegar e atender aos apelos da vocação. São programas de vida e, não necessariamente, o projeto vital. Passam na fantasia mas nem sempre refletem o desejo. Ao escolher alguns, excluímos os demais, onde poderá haver justamente o ponto central. Pode acontecer, e geralmente acontece, que a multiplicidade dos dotes desoriente e perturbe o projeto vital, o chamamento sagrado do fogo interior. Como Goethe que viveu inseguro do seu Eu, devido à natural exuberância de suas aptidões. Quantos mais eu vi assim. Tamanha aptidão em confronto com uma vontade duvidosa! E uma vida de tal forma ambígua, flutuando ao sabor do acaso, sem maior determinação interna, torna-se vida em disponibilidade. Goethe queria permanecer eternamente em disponibilidade. Difícil questão: até que linha divisória a disponibilidade é o livre ser, a passagem para o novo, e até que ponto torna-se desperdício. Tudo indica que Fernando Pessoa, esse grande entre os maiores, tenha sido um caso análogo. [...]. Aqui, neste momento, Julian, penso se estou disponível, se sempre estive e tremo de pavor ao questionar se a disponibilidade já não cabe num homem tão envolvido! Enfim, se me fiz ou se me perdi. Neste inverno madrilenho, ao final da vida, é o meu drama e meu encanto. Ter Goethe e Pessoa como fantasmas e santos do meu sonho e do meu dia".

     Disso tudo, é lícito inferir que para ter um plano de vida racional e, portanto edificante, deveríamos recordar que, ainda que correspondam a impulsos e inclinações que podem fazer-se sentir com anterioridade a qualquer consideração inteligente sobre o que merece a pena buscar, os aspectos básicos do bem estar humano somente são realizáveis por quem dirige, atende e controla os seus instintos, inclinações e impulsos, de maneira inteligente.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Distinção entre Vida e vida

     Segundo Jeanne Marie Gagnebin, dentro da vasta obra de Giorgio Agamben (Filósofo e Jurista), o livro "O que resta de Auschwitz", (Editora Boitempo, São Paulo, 2008), ocupa lugar intermediário e singular. Publicado em 1998, retoma a problemática de Homo sacer (1995) e de Mezzi senza fine (1996), em particular a distinção entre vida nua (zoè) e forma de vida, propriamente humana (bios), desde a elaboração dessa distinção por Aristóteles até a transformação, na época moderna, da política em biolítica (na esteira das reflexões de Michel Foucault). O nome "Auschwitz" não é simplesmente o símbolo do horror e da crueldade inéditos que marcaram a História contemporânea com uma mancha indelével; "Auschwitz" também é a prova, por assim dizer, sempre viva de que o nomos (a lei, a norma) do espaço político contemporâneo - portanto, não só do espaço político específico do regime nazista - não é mais a bela (e idealizada) construção da cidade comum (pólis), mas sim o campo de concentração:

     O campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a tornar-se regra [...]. Na medida em que os seus habitantes foram despojados de todo estatuto e reduzidos integralmente à vida nua, o campo é também o mais absoluto espaço biopolítico jamais realizado, no qual o poder não tem diante de si senão a pura vida sem qualquer mediação.

     Como toda linguagem humana repousa sobre essa separação entre phonè e logos, entre linguagem e voz, assim também toda vida política em comum, todo bios, repousa sobre o abismo da zoè, dessa vida nua que nos assemelha aos bichos. O que Auschwitz nos legou também é aexigência, profundamente nova para o pensamento filosófico e, em particular, para a ética, de não nos esquecer nem da infância nem da vida nua: em vez de recalcar essa existência sem fala e sem forma, sem comunicação e sem sociabilidade, saber acolher essa indigência primeva que habita nossas construções discursivas e políticas, que só podem permanecer incompletas.

     E segundo Michel Maffesoli, em entrevista concedida ao IHU-Unisinos (23/04/2014), "A política moderna não tem mais sentido". Como descrevera: "Há uma transfiguração da política, ou seja, ela assume outra forma, outra figura" (...) "A política tal como se caracterizava essencialmente em termos de projeto racional não existe mais. Ao contrário disso, há um ressurgimento do emocional". Maffesoli disse que desde os anos 1980 assiste-se ao fim da modernidade e ao início da pós-modernidade. Apesar de ser "sempre difícil falar em pós-", o sociólogo francês chama a atenção para a existência não de um pensamento linear, mas de ciclos ou épocas que retornam. "Temos dificuldade de pensar que possa haver ciclos. Minha hipótese é de que os ciclos retornam, ou as épocas retornam. (...) Por um movimento de pêndulo, que nos remete justamente aos ciclos, percebemos que o importante hoje é o ventre, isto é o emocional, as emoções, e não o racional.". Disso tudo, diante da crise pela qual estamos imersos, é possível inferir com John Mitchell Finnis que: "A autoridade (e, por conseguinte a responsabilidade de governar) em uma comunidade tem de ser exercida por aqueles que que de fato podem resolver eficazmente os problemas de coordenação desta comunidade. Este princípio não é a última palavra sobre as exigências da razoabilidade prática relativa à atribuição ou ao reconhecimento da autoridade; porém, é a primeira e a mais fundamental. (in Adrian Sgarbi). De modo que quem pensa poder atuar nessa tarefa deverá ter em mente essas alterações, sob pena de continuar a tratar das questões políticas com olhar já defasado e daí realmente não encontrará solução aos problemas atuais, apenas alimentando a crise pensando em debelá-la.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Axiomas e Postulados

     Na Antiguidade Clássica, era habitual distinguir axiomas e postulados. Axiomas (expressões de alta densidade) seriam "verdades gerais", independentes do tema em foco, aplicáveis em quaisquer casos. De outra parte, postulados seriam "verdades temáticas", ou seja, verdades específicas, aplicáveis em circunstâncias determinadas e limitadas. Em tempos modernos, mostrou-se que muitas "verdades" julgadas incontestáveis eram, surpreendentemente, inaplicáveis em certos domínios. Por exemplo, o axioma: "o todo é maior que as soma das suas partes", mostra-se falso quando se consideram conjuntos infinitos.

     Com efeito, no domínio da persuasão, a expressão: "Navegar é preciso, viver não é preciso" (Navigare necesse est, vivere non est necesse), foi trabalhada por poetas, artistas, políticos, educadores, cientistas, jornalistas, etc. Entretanto, essa expressão fora cunhada com o objetivo de abastecer Roma, por Pompeu (106-48 a.C), no ano 70 a.C., como conta Plutarco, na sua Vida de Pompeu. Pompeu era um bravo. Roma sofria crise de abastecimento e começava a faltar trigo no império. Pompeu armou suas naus - e foi buscar trigo onde houvesse. Com os porões abarrotados, ele se preparou para a travessia do Norte da África até Óstia, o porto que então servia à capital do mundo. Armou-se uma tempestade e os marinheiros temeram enfrentar as ondas do "mare mostrum", que em geral era sereno, mas quando engrossava trazia a cólera dos mansos ensandecidos. Foi então que Pompeu gritou para os remadores: "Navigare necesse est, vivere non necesse". Roma não morreu de fome - e deve-se a façanha ao impacto de uma frase. 

     Pois bem: expressões como essas, costumam inspirar interesses diversos, sem perder a essência e quando adotadas fora do contexto próprio, costumam causar problemas importantes. Sendo assim, segundo Leôncio Martins Rodrigues (Professor de Ciência Política, in O ESP, 12-08-04, p. A2), trata-se de um lema particularmente apreciado pela intelectualidade jovem, como símbolo do heroísmo, da ousadia, da coragem, da vontade, de saber fazer a hora e de não temer a morte. Por instigar a audácia de avançar, a supremacia da vontade, a capacidade de se opor aos fatores adversos e o desprezo pela morte, a divisa tem sido evocada no campo político sem que os que a utilizam, especialmente quando são de esquerda, se deem conta da armadilha ideológica no apelo desafiador da morte. Por isso, conclui, se navegar é preciso, cumpre estar atendo para os escolhos ideológicos.