segunda-feira, 16 de outubro de 2017

A Arte de Ler



A Arte de Ler
1)      “Os limites da minha linguagem significam os limites do mundo.” (Ludwig Wittgenstein);
2)      “Algumas palavras escondem outras.” (William Shakespeare).

Certa vez, o escritor e filósofo francês Voltaire disse: “Lê-se muito pouco. E, entre os que desejam se instruir, a maioria lê muito mal.” Voltaire talvez repensasse essa afirmação se soubesse que essa maioria que “lê muito mal” simplesmente o faz por não saber como ler.

Isso quer dizer que a leitura nada mais é do que técnica? Sim, e não apenas uma, mas um conjunto delas — é o que afirma Émile Faguet, autor de A arte de ler, que chega às livrarias com o selo da editora Casa da Palavra, traduzido por Adriana Lisboa.

Escrito no início do século XX, o livro permanece atual quase 100 anos após sua primeira publicação (1911), principalmente quando se leva em conta o excesso de informação dos dias atuais, em que a otimização da leitura se faz oportuna. “A arte de ler é a arte de pensar com um pouco de ajuda”, disse Faguet. Dessa forma, o autor sugere o primeiro passo para um melhor aproveitamento de qualquer livro: identificar os objetivos da leitura e os diferentes tipos de livros, bem como suas particularidades.

Estas breves notas visam ajudar os estudantes e estudar melhor. A base do estudo é a leitura atenta e ativa de livros adequados, complementada pelo esclarecimento e discurso oral. Por isso, vamos ver: l) o que são livros adequados; 2) o que é a leitura atenta e ativa; 3) o que é o esclarecimento e discurso oral – e como estes diversos elementos relacionam e enriquecem mutuamente.

l. Saber que não se sabe
Em geral, uma dificuldade séria nossa é sermos incapazes de distinguir o que sabemos do que não sabemos e o que compreendemos do que não compreendemos. Habituados a repetir ideias à toa, sem uma genuína compreensão, não temos consciência do que não sabemos. Ora, sem esta consciência, nós não só não procuramos ajuda dos professores e colegas, como não sabemos o que precisamos fazer por nós mesmos para colmatar as nossas lacunas de compreensão.
Para que tenhamos consciência do que não sabemos ou do que não compreendemos temos de ser honestos conosco mesmos. Isso significa fazer uma pergunta muito simples: “O que quer esta parte do livro realmente dizer?” Fazer esta pergunta muito honesta, a cada parte que temos, permite-nos descobrir quando não estamos lendo um texto adequado para o estudo do nosso conhecimento. Num texto adequado ao estado do nosso conhecimento poderá haver dois ou três aspectos de pormenor que não compreendemos. Porém, se lemos um livro e não compreendemos quase nada, isso significa que temos de procurar outro livro que nos explique o que precisamos de saber para podermos compreender o primeiro. Ou seja, temos de procurar bibliografia adequada aos nossos conhecimentos. Responder de modo honesto à pergunta acima é mais difícil do que parece. Nós nos habituamos de tal modo a repetir palavras e expressões sem qualquer compreensão real que consideramos erradamente saber responder à pergunta acima. Isto porque confundimos uma resposta adequada à pergunta com duas respostas inadequadas.
A primeira resposta inadequada é a repetição do que lemos, aproximadamente pelas mesmas palavras. Que isto não resulta de uma compreensão genuína torna-se manifesto se formos honestos e nos perguntarmos se realmente entendemos o livro ou se estamos apenas a repetir mais ou menos as palavras. Repetir mais ou menos as palavras de um livro não é uma atividade com interesse cognitivo. É uma tarefa que uma máquina pode ser programada para fazer. Parafrasear livros é uma tarefa intelectualmente inane que, além de não contribuir para a nossa formação intelectual e humana, contribui para a nossa deformação – dando-nos a ilusão de que compreendemos quando na verdade não compreendemos.
A segunda resposta inadequada é falar à toa de coisas que não têm qualquer relação relevante com o que está no livro. Isto acontece quando nós não conseguimos explicar corretamente o que está no livro e o professor não quer uma mera paráfrase. Contudo, falar à toa não é explicar com rigor o que está no livro; é apenas conversa sem sentido.
Quando levamos a sério a nossa formação intelectual e humana não queremos parafrasear o que estudamos nem falar isso à toa. O que queremos, ao invés, é a correta e rigorosa compreensão do que estudamos. A compreensão correta e rigorosa do que estudamos manifesta-se na formulação e expressão precisa das ideias estudadas. A formulação e expressão rigorosa das ideias estudadas é uma competência muito diferente da mera paráfrase acéfala ou do falar à toa. A competência para formular e exprimir com rigor as ideias estuadas é um trabalho que envolve inteligência, deliberação e escolha da nossa parte. Não se trata de falar à toa do que nos vem à cabeça ao ler aquele livro, nem repetir sem pensar o que lemos e antes disso manifestar da maneira mais rigorosa possível a maneira como entendemos as ideias estudadas.

2. Leitura atenta e ativa (Leitura expressiva ou Informativa)
A leitura atenta é o que nos permite formular com rigor as ideias estudadas. Porém, é crucial distinguir a formulação rigorosa do que estudamos, da nossa reflexão ativa sobre o que estamos estudando. A primeira tarefa é descritiva; a segunda não o é. A primeira tarefa descreve apenas o que pensa o autor que estamos estudando. Esta tarefa pode ser muitíssimo mal feita, caso em que é uma mera paráfrase ou um discurso à toa; mesmo que seja muitíssimo bem feita, é meramente descritiva. Tudo o que se obtém é uma descrição rigorosa do pensamento do autor.
A segunda tarefa é a finalidade da primeira, num trabalho de excelência. Não basta compreender rigorosamente o pensamento do autor; é também preciso aprender a discuti-lo. Isto significa levantar objeções e contraexemplos às ideias estudadas.
Numa concepção inadequada do estudo espera-se que nós sejamos primeiro capaz de descrever de maneira absolutamente correta o pensamento de um autor, só estando autorizado a discuti-lo depois disso. Porém, esta não é a maneira humana normal de aprender. O resultado deste tipo de trabalho é formar repetidores incapazes de avaliarem por si mesmos as ideias que repetem.
Num trabalho de excelência, os dois aspectos alimentam-se mutuamente. Fazer uma objeção tola a uma ideia estudada é uma excelente maneira de descobrir, com a ajuda dos professores e colegas, que não a entendemos adequadamente. É uma excelente maneira de descobrir que precisamos de compreender melhor a ideia estudada. Sem esta liberdade para errar, nós entenderemos igualmente mal as ideias estudadas e como nos limitamos a parafraseá-las, nem o professor nem nós mesmos nos apercebemos disso.
Por outro lado, fazer uma objeção inteligente a uma ideia estudada é a melhor expressão da completa compreensão da mesma.
Assim, a leitura atenta de um livro permite a compreensão correta das ideias do autor, que se manifesta na sua formulação rigorosa. Essa leitura atenta alimenta e é alimentada pela leitura ativa. Esta consiste em perguntar a cada passo que razões temos para aceitar ou rejeitar as ideias que estamos estudando. A combinação harmoniosa das duas leituras constitui o núcleo do que é estudar adequadamente um texto.
Também há diferença entre leitura expressiva e leitura informativa. Esta seria a leitura do conteúdo de uma bula (tome de 6 em 6 horas), de manual de eletrodoméstico (ligue na tomada de 110 ou 220). Já a leitura expressiva, que é a que mais nos interessa, constitui a leitura que requer interpretação.
Eis as perguntas centrais a fazer na leitura atenta de um livro ou texto:
a)      Quais são as ideias centrais?
b)      Quais são as ideias secundárias que alimentam as centrais?
c)      Como se relacionam exatamente os dois tipos de ideias?
d)     Que razões apresenta o autor a favor de suas ideias?
Numa leitura atenta precisamos de distinguir as diferentes partes do que estamos estudando e como elas se relacionam entre si. Numa leitura inadequada as diversas ideias que lemos surgem apenas em aleatória sucessão, sem qualquer hierarquia, organização e estrutura. Para que tenhamos uma compreensão adequada do que lemos, não basta soletrar e depois fazer listas das coisas que encontramos ao ler. É preciso distinguir cuidadosamente as diferentes partes do que lemos. Umas partes são as ideias defendidas. Outras são as ideias usadas para defender essas. Uma ideia é principal, outra resulta dessa e é secundária. Além disso, o que lemos está muitas vezes adequadamente dividido em secções, capítulos ou partes. Se os que estamos lendo está adequadamente escrito, essas diversas partes abordam ideias diferentes e têm diferentes papéis. Numa leitura atenta, damos muita atenção a todos estes aspectos.
Vejamos dois instrumentos lógicos elementares que nos permitem distinguir diferentes partes de um texto. O primeiro são os indicadores de premissa e conclusão. Estes indicadores são expressões da língua portuguesa que indicam a presença, respectivamente, de premissas e conclusão. Distinguir umas das outras é crucial para a compreensão adequada de um texto.
Indicadores de premissa                                         Indicadores de conclusão
a) porque...                                                                logo...
b) pois...                                                                    portanto...
c) dado que...                                                           por isso...
d) visto que...                                                          por conseguinte...
e) devido a ...                                                          implica que...
f) a razão é que...                                                   daí que...
g) admitindo que...                                               segue-se que...
h) sabendo-se que...                                           infere-se que...
i) supondo que...                                                consequentemente...
Os indicadores de premissa assinalam a presença posterior de uma premissa; a conclusão, contudo, tanto pode surgir antes como depois. Já os indicadores de conclusão assinalam a presença posterior de uma conclusão; a premissa ou premissas, tanto pode surgir antes como depois.
Detectar raciocínios nos textos e distingui-los das afirmações não tem grande relevância se não tivermos instrumentos lógicos, ainda que elementos, para avaliar raciocínios, distinguindo os bons dos maus.
O segundo instrumento lógico que nos ajuda a ler atentamente é a consciência do papel lógico desempenhado por algumas palavras cruciais: “não”, “se”, “ou”, “e”, “todos”, “alguns”, “nenhum”, “possível”, “necessário”, “contingente”. Só um domínio da lógica permite avaliar plenamente o significado das afirmações em que ocorrem estas palavras. Contudo, estar atento a elas e ao papel que desempenham, mesmo que não se saiba lógica, já é um importante passo em frente. O importante é ter consciência de que os textos não são apenas uma amálgama de palavras; diferentes palavras e expressões desempenham diferentes papéis, tal como diferentes partes do texto. E precisamos de perguntar a cada passo que relação tem uma dada parte com outras partes e com o todo.
Quanto à leitura ativa, resulta de responder às seguintes perguntas:
e)      As ideias do autor são plausíveis? Porquê?
f)       Quais das ideias do autor são menos plausíveis e porquê?
g)      As razões apresentadas pelo autor a favor das suas ideias são boas? Porquê?
h)      Somos capazes de levantar objeções e imaginar contraexemplos às ideias do autor? Quais?
A leitura ativa só é plenamente possível quando se domina pelo menos alguns instrumentos lógicos elementares. Estes permitem detectar raciocínios e distinguir estes das meras afirmações; permitem também analisar os raciocínios para ver se são cogentes. Daí a importância de estudar pelo menos os elementos centrais da lógica informal e formal. Sem isso, é quase impossível fazer boa leitura e interpretação de textos.
4. Esclarecimento e discussão orais
A leitura atenta, expressiva e ativa dos livros é o núcleo sem o qual o estudo sério não é procedente. Este estudo enriquece e é enriquecido pelo esclarecimento e discussão orais, que passamos a explicar em seguida. Porém, é bom ver desde já que na ausência de uma leitura atenta e ativa, a parte oral do estudo se torna uma mera conversa sem sentido destituída de interesse formativo. Para este trabalho (coletivo) tenha sucesso, seja produtivo, exige-se que todos tenham lido, ainda que seja uma leitura de reconhecimento. Caso contrário, ele não funcionará como esperado.
Que sentido faz uma fala de maneira vaga e desordenada se é possível fazê-lo de maneira rigorosa e ordenada? Na verdade, é uma das muitas maneiras de tornar difícil e improdutivo o trabalho. A parte oral existe e é crucial e precisa estar apoiada na leitura atenta e ativa dos envolvidos. Ela é então dedicada exclusivamente ao esclarecimento das leituras e à discussão ativa. Aí o professor ajuda a esclarecer e a discutir; não expõe o que já está mais bem exposto por escrito. O esclarecimento oral das leituras e a sua discussão oral ativa permitem duas coisas importantes ao estudantes (todos os envolvidos). Primeiro, compreender mais profundamente as leituras. Erros de compreensão e compreensões inadequadas ou incompletas vêm à superfície no esclarecimento oral das ideias estudadas. Segundo, ganhar a autonomia intelectual para avaliar ativamente as ideias estudadas, ao invés de nos limitarmos a compreendê-las. Objeções e contraexemplos que não nos ocorrem na nossa leitura pessoal ativa, ocorreram a outro colega , que as formula perante o grupo.
5. O exercício da escrita
A leitura expressiva (atenta e ativa) e o esclarecimento e discussão oral visam uma formação intelectual adequada, ainda que elementar e mínima. A manifestação mais óbvia de uma formação intelectual adequada é a capacidade para redigir textos rigorosos e cognitivamente relevantes. Uma das desvantagens do trabalho quase exclusivamente oral é não tirar o estudante da mentalidade oral em que já está mergulhado, mentalidade em que nunca se distingue bem a expressão rigorosa de ideias sofisticadas da mera simulação que ocorre no discurso sem sentido e na paráfrase acéfala. A capacidade para escrever de maneira rigorosa, articulada e organizada não é uma mera exigência escolar. Cultivar esta capacidade aumenta a nossa inteligência porque aumenta a nossa capacidade para pensar de maneira sofisticada.
O exercício da escrita pode e deve começar com a própria leitura ativa e atenta dos textos, culminando na produção de ensaios. O exercício mais básico de escrita é a descrição rigorosa e não a paráfrase, das ideias que estamos lendo. Na sua forma mais simples, este exercício consiste em ler atentamente um dado texto para, no dia seguinte, e sem quaisquer apontamentos, explicarmos com rigor, num texto da nossa autoria, as ideias centrais e respectiva articulação do texto que lemos. Depois, comparamos o que escrevemos com o texto estudado e vemos muito claramente as nossas próprias deficiências de compreensão. E, em caso de dúvida, pedimos ajuda aos colegas e ao professor.
A leitura atenta e ativa, por um lado, e o esclarecimento e discussão oral, por outro, permitem então a redação de ensaios plenamente autônomos em que discutimos ou descrevemos ideias de maneira rigorosa e autônoma. Repare-se que um ensaio destes pode ser meramente descritivo - descrição rigorosa de ideias sofisticadas -, porque não é uma mera paráfrase de palavras e ideias, é em si um trabalho cognitivamente muitíssimo relevante.
6. Planejamento
Montar um planejamento e transformá-lo num projeto significa definir as metas e os passos para atingi-las. Com esta ideia, adotando a lógica do planejamento estratégico e do gerenciamento de projetos aplicadas à preparação para desenvolver estudos – qualquer que seja – torna-se fundamental a definição de objetivos e metas, o estabelecimento de ações necessárias à execução, o levantamento das etapas a serem superadas, identificação dos recursos disponíveis e a sua alocação. Nesses termos, definir metas é fundamental. Trata-se do primeiro passo. Uma das características que distinguem o ser humano dos outros animais na capacidade de definição de metas.
7. O Ambiente adequado
Estudar só ou em grupo exigem cuidados diferentes. Quando se estuda só ou em grupo a capacidade de concentração, via de regra, varia. Quanto a concentração, trata-se de condição fundamental para que o conhecimento seja assimilado de forma adequada e eficiente. Ela tem relação com o nível de atenção e foco dispensado numa determinada atividade intelectual. Ela pode ser automática ou voluntária. Quanto aos fatores endógenos, um fator fundamental para a busca de concentração consiste no grau de vontade para o estudo.
O ideal é ter um ambiente adequado para estudos (sala de estudos, biblioteca, iluminação própria, higienizada, livre de ruídos (a música, da Ennya, por exemplo, pode ajudar alguns). Roupa confortável, temperatura adequada, mesa, cadeira, etc. Uma das preocupações da psicologia do trabalho consiste na identificação dos fatores ou causas que levam o ser humano a trabalhar, ou seja, o enfrentamento da pergunta acerca do que o homem busca no trabalho. A resposta a esta questão depende do perfil de cada pessoa, considerando o que entende como essencial, importante e transitório, acidental.
O outro lado da questão está relacionado com as condições físicas, emocionais e mentais. Aqui diz respeito a uma alimentação adequada, sono reparador e estado emocional equilibrado.
8. Finalização
Segundo Confúcio, “Uma jornada de mil léguas começa com um simples passo.”E para Joel Baker, “Visão sem ação é só um sonho...”.
As indicações e esclarecimentos anteriores são meros guias incompletos. Mesmo assim, já é um bom começo. Podem e devem ser violados sempre que se revelarem obstáculos a uma formação intelectual genuína. Um dos maiores obstáculos à formação intelectual de excelência é a ideia ingênua de que tudo se resolve com meia dúzia de receitas mecânicas simples. O que nos permite ter uma formação intelectual de excelência é precisamente a permanente invenção de maneiras melhores e mais eficientes de aprendermos com o mundo, com ou outros e conosco mesmo. É a famosa advertência constante do Oráculo de Delfos: “Conheça-te a ti mesmo.”, da qual Sócrates fazia seu mantra. Conhecer ai próprio é o fundamento dos fundamentos para uma vida boa, significativa, longa e feliz, ou seja: ter o mundo aos pés.

(Este texto tem finalidade exclusivamente didática; decorre de muitas adaptações e viézes).

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