domingo, 23 de dezembro de 2018

Compreensão Científica da Ética

O agraciado com o Prêmio Nobel de Física em 1933, Erwin Schrödinger (1887-1961), em "O que é vida?", escrevera:

"Acredito que podemos considerar como extremamente improvável que nossa compreensão do mundo represente qualquer estágio definitivo ou final, um máximo ou ótimo sob qualquer aspecto. [...].


Em todas as épocas e entre todos os povos, o histórico de todo código de ética (...) levado a sério tem sido, e é, uma autonegação (...). O ensino da ética assume sempre a forma de uma demanda, de um desafio, de um "tu deves", que de alguma forma se opõe à nossa vontade primitiva. Viria daí esse peculiar contraste entre "eu quero" e o "tu deves"? Não é absurdo que eu tenha a obrigação de abolir meus apetites primitivos, despojar-me do meu verdadeiro eu, ser diferente daquilo que realmente sou? De fato, em nossos dias, talvez mais que em outros tempos, ouvimos zombar desta exigência muitas vezes. "Sou o que sou, dêem espaço para minha individualidade! Livre desenvolvimento para os desejos que a natureza plantou em mim! Todas as obrigações que se opõem a mim nesse aspecto não têm sentido, são contos-do-vigário. Deus é Natureza, e podemos dar crédito à Natureza por ter-me formado como ela deseja que eu seja." Ouvimos tais slogans ocasionalmente. Não á fácil refutar sua obviedade direta e brutal. O imperativo de Kant é declaradamente irracional.

Mas, felizmente, o fundamento científico desses slogans é decrépito. Nossa compreensão do "devir" (...) dos organismos torna fácil entender que nossa vida consciente - não direi que deverá ser, mas que, de fato, é necessariamente uma luta contínua contra nosso ego primitivo. Pois nosso eu natural, nossa vontade primitiva com seus desejos inatos, é obviamente o correlato mental do legado material recebido de nossos ancestrais. Como espécie, estamos nos desenvolvendo e marchando na linha de frente das gerações; portanto, cada dia da vida de um homem representa uma pequena parte da evolução de nossa espécie, que ainda está em plena ação. É verdade que um único dia de vida de uma pessoa, ou mesmo a vida de qualquer indivíduo como um todo, não é mais que um minúsculo golpe do cinzel numa estátua nunca terminada. Mas a enorme evolução global que sofremos no passado também foi ocasionada por miríades de tais minúsculos entalhes. O material para essa transformação, a pressuposição para sua ocorrência, são, é claro, as mutações espontâneas hereditárias. Contudo, para uma seleção entre elas, o comportamento do portador da mutação, seus hábitos de vida, têm uma enorme importância e uma influência decisiva. De outra forma, a origem das espécies, as tendências ostensivamente direcionadas ao longo das quais caminha a seleção, não poderiam ser compreendidas mesmo nos longos espaços de tempo que, afinal, são limitados e cujos limites conhecemos muito bem.

E assim, a cada passo, a cada dia de nossa vida, por assim dizer, algo da forma que possuíamos até então deverá mudar, ser superado, ser excluído e substituído por algo novo. A resistência de nosso desejo primitivo é o correlato psíquico da resistência da forma já existente ao cinzel da transformação, pois nós mesmos somos o cinzel e a estátua, conquistadores e conquistados ao mesmo tempo - em uma verdadeira e contíua "autoconquista" (...).

Mas não seria absurdo sugerir que esse processo de evolução devesse cair direta e significativamente na consciência, considerando sua morosidade imoderada, não somente em comparação com a curta duração de uma vida individual, mas mesmo com as épocas históricas? Não passaria simplesmente despercebido?

Não. À luz de nossas considerações anteriores, não é assim. Elas culminam na consideração da consciência como algo associado a processos fisiológicos que ainda estão sendo transformados por interação mútua com um ambiente em transformação. Mas ainda, concluímos que só se tornaram conscientes aquelas modificações que ainda estão no estágio de treinamento, até que, num momento bem mais tardio, se transformem numa poesse hereditariamente fixada, bem treinada e inconsciente da espécie. Em resumo: a consciência é um fenômeno da zona de evolução. Este mundo ilumina a si mesmo somente naquele lugar ou somente enquanto se desenvolve, procria novas formas. Pontos de estagnação escapam da consciência; só podem aparecer em sua interação com pontos de evolução.

Se isso for aceito, segue-se que a consciência e a discordância com o próprio eu estão inseparavelmente  vinculadas, mesmo que devessem, por assim dizer, ser proporcionais entre si. Isso parece um paradoxo, mas os mais sábios de todos os tempos e todos os povos testemunharam-no e confirmaram-no. Homens e mulheres para os quais este mundo era iluminado por uma extraordinária e brilhante luz da consciência e que por sua vida e palavra, mais que outros, formaram e transformaram esse trabalho de arte a que denominamos humanidade, testemunharam pelo que disseram ou escreveram, ou mesmo por suas próprias vidas que, mais que outros, sofreram a dor cruciante da contradição íntima. Que isso sirva de consolo àquele que também sofre disso. Sem essa discórdia, jamais algo de permanente foi gerado.

Por favor, não me entendam mal. Sou cientista, não professor de moral. Não entendam com isso que desejo propor a ideia de que nossa espécie se desenvolva rumo a uma meta superior como um motivo eficiente para propagar o código de moral. Isso não seria possível, já que é uma meta não-egoísta, um motivo desinteressado e, portanto, para ser aceito, pressupõe já a virtude. Sinto-me tão incapaz quanto qualquer pessoa para explicar o "dever" do imperativo de Kant. A lei ética, na sua forma geral mais simples (sê altruísta) é claramente um fato, está lá e mesmo a grande maioria daqueles que não a obedecem, frequentemente concorda com ela. Considero sua enigmática existência como um indício de que nosso ser se encontra no início de uma transformação biológica, de uma atitude geral egoísta para uma altruísta, do homem ter como propósito o transformar-se em animal social. Para um egoísmo animal solitário, o egoísmo é uma virtude que tende a preservar e melhorar a espécie; em qualquer tido de comunidade, torna-se um vício destrutivo. Um animal que embarque na formação de sociedades, sem restringir em muito o egoísmo, perecerá. Formadores de sociedades filogeneticamente bem mais antigos, como as abelhas, as formigas e as térmitas, abandonaram completamente o egoísmo. Contudo, no estágio seguinte, o egoísmo nacional, ou simplesmente o nacionalismo, ainda está entre eles em pleno desenvolvimento. Uma abelha operária que, extraviada, vai até a colméia errada, é morta sem hesitação.

No homem, ao que parece, está acontecendo algo que não é infrequente. Acima da primeira modificação, indícios claros de uma segunda numa sentido semelhante são perceptíveis, muito antes que a primeira esteja próxima de ser realizada. Embora ainda sejamos extremamente egoístas, muitos de nós começam a enxergar que também o nacionalismo é um vício do qual é necessário desistir. Aqui, talvez, apareça algo muito estranho. A segunda etapa, a pacificação da luta entre os povos, pode ser facilitada pelo fato de a primeira etapa estar longe de ser concluída, de forma que os motivos egoístas ainda têm um forte apelo. Cada um de nós é ameaçado pelas novas e terríveis armas de agressão, sendo, portanto, induzido a ansiar pela paz entre as nações. Se fôssemos abelhas, formigas ou guerreiros lacedemônios, para quem não existe temor pessoal e covardia é a coisa mais vergonhosa do mundo, a guerra perduraria para sempre. Mas felizmente, somos apenas homens - e covardes.

As considerações e conclusões deste capítulo são, para mim, velhas conhecidas; remontam há mais de trinta anos. Nunca as perdi de vista, mas fiquei com muito medo de que elas pudessem ser rejeitadas com a desculpa de que parecem estar baseadas na "herança de caracteres adquiridos" ou, em outras palavras, no lamarckismo. Não estamos inclinados a aceitar essa visão. Contudo, mesmo rejeitando a herança dos caracteres adquiridos, ou, em outras palavras, aceitando a Teoria da Evolução de Darwin, achamos que o comportamento dos indivíduos de uma espécie tem uma influência muito significativa sobre a tendência da evolução, simulando, dessa forma, uma espécie de falso-lamarckismo. Isso é explicado e estabelecido de forma conclusiva pela autoridade de Julian Huxley (Evolução: A Moderna Síntese) (...), que, contudo foi escrito tendo em vista um problema ligeiramente diferente e não apenas o de emprestar sustentação às ideias explicitadas anteriormente.".

Com isso, digo o seguinte: as escolas são fundamentais para guiar o homem e muito menos importantes no que tange a propósitos políticos. E uma sólida base familiar é não menos importante para preparar o solo onde crescerá a semente que as escolas semearão.


domingo, 23 de setembro de 2018

IED 2018.2 (UMA ORDEM IMAGINADA: MITO)


1) Em 1776 a.C., a Babilônia era a maior cidade do mundo. O mais famoso rei da Babilônia foi Hamurabi. Ele instituiu o Código de Hamurabi, que depois de listar seus julgamentos, expressa: "Essas são as justas leis que Hamurabi, o rei sábio, estabeleceu e, por meio delas, conduziu a terra no caminho da verdade e da retidão [...] eu sou Hamurabi, rei nobre. Não me eximi da minha responsabilidade para com a humanidade, entregue a meus cuidados pelo rei Enlil, e de cuja condução deus Marduk me encarregou."

1.1) O Código de Hamurabi afirma que a ordem social babilônica tem origem em princípios universais e eternos de justiça ditados pelos deuses. O princípio de hierarquia é de suma importância. As futuras gerações prestaram atenção nele.

2) A Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), afirma: "Consideramos estas verdades evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais,  que são dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura de felicidade."

2.1) Como o Código de Hamurabi, o documento fundacional norte-americano promete que, se os humanos agirem de acordo com seus princípios sagrados, milhões deles serão capazes de cooperar de maneira eficaz, vivendo em paz e segurança em uma sociedade justa e próspera. Tanto um como outro, foram documentos de seu tempo e lugar. Os dois textos nos apresentam um dilema óbvio. Tanto o Código de Hamurabi quanto a Declaração de Independência dos Estados Unidos afirmam definir princípios universais e eternos de justiça, mas de acordo com os norte-americanos todas as pessoas são iguais e conforme os babilônios as pessoas são decididamente desiguais. Em que sentido todos os humanos são iguais uns aos outros? Para a biologia, as pessoas não foram "criadas"; elas evoluíram. E certamente não evoluíram para ser "iguais". A ideia de igualdade está intrinsecamente ligada à ideia de criação. A evolução se baseia na diferença, e não na igualdade. Cada pessoa carrega um código genético um pouco diferente e é exposta, desde o nascimento, a diferentes influências ambientais. Isso leva ao desenvolvimento de diferentes qualidades que carregam consigo diferentes chances de sobrevivência. Portanto, "são criados iguais" deveria ser traduzido como "evoluíram de forma diferente". Não existem direitos na biologia. Há apenas órgãos, habilidades e características.

3) A Constituição Brasileira (1988), em seu preâmbulo, expressa: "Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assmbleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das constrovérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL."; " Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distro Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."

3.1) Para CELSO RIBEIRO BASTOS, os preâmbulos têm a função de "facilitar o processo de absorção da Constituição pela comunidade. São palavras pelas quais o constituinte procura fincar a legitimidade do Texto. É um retrato da situação de um momento, o da promulgação da Constituição". Quanto a ser o preâmbulo parte da Constituição, responde o constitucionalista pátrio, sob o ponto de vista normativo e preceptivo, que a resposta somente pode ser negativa, pois, os "dizeres dele constantes não são dotados de força coercitiva". 

O magistério de RIBEIRO BASTOS é no sentido de afirmar que, inobstante, não sendo ato juridicamente irrelevante, tem função auxiliar de interpretação do Texto Constitucional, mas não se pode querer fazer prevalecer um preceito normativo do que dele consta, sobre o que compõe o articulado. O Preâmbulo da Constituição de 1988, nas palavras do autos, quer significar o seguinte: "compõe-se de duas partes: a primeira destinada a firmar a legitimidade formal, e a segunda, por sua vez, é como que compensatória da magreza e do esqueletismo da primeira, elencando objetivos a serem perseguidos pelo Estado brasileiro". 

A conclusão irrefutável é a de que RIBEIRO BASTOS coloca a redação do Preâmbulo da Constituição, como palavras e expressões redundantes, na medida em que são repetidas nos dispositivos constitucionais. Firma sua doutrina pela não força normativa dos preâmbulos constitucionais. Com a devida vênia, pode-se dizer que se trata de doutrina não aconselhável para uma iniciação ao estudo do direito material, pois, com tal posicionamento não recepciona os direitos individuais e fundamentais clássicos existentes no preâmbulo, nem tão pouco reconhece a materialidade dos modernos direitos sociais de caráter coletivo e difuso, ou supra-individual.

O pensamento de MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO reside na premissa da atribuição de uma ausência de força obrigatória do preâmbulo da Constituição Federal de 1988, pois, entende que se trata de um texto destinado a realizar uma indicação dos planos, objetivos e intenções do constituinte. Num estudo constitucional comparativo leciona que, "é inaplicável ao caso brasileiro a doutrina e a jurisprudência francesas que dão força obrigatória ao preâmbulo da Constituição de 1946 e ao da Constituição de 1958. Com efeito, o preâmbulo da Constituição de 1946, em especial, continha normas precisas e não meros princípios. Em conseqüência se podia entender, como se entendeu, que ele traduzisse normas obrigatórias". FERREIRA FILHO esboça a idéia de que o preâmbulo expressa, simplesmente, uma série de afirmações de princípios, que representam e devem ser assim interpretados como um ideal, e não como normas jurídico-constitucionais de aplicação e exigibilidade imediatas.

Na doutrina de JOSÉ CRETELLA JÚNIOR identifica-se um desprezo taxativo pela discussão envolve o preâmbulo constitucional, restringe-se a dissertar sobre a tradicional divisão doutrinária existente quanto a eficácia, o valor, ou a incidência das expressões jurídico-vocabulares lançadas pelos constituintes no preâmbulo. CRETELLA JÚNIOR conforma-se em lecionar que, "dividem-se as colocações em dois grupos distintos, o primeiro, acentuando a importância do Preâmbulo, ressaltando-lhe a relação com dispositivos do texto; o segundo, procurando minimizar a relação entre a peça vestibular e o próprio texto articulado. Na interpretação dos dispositivos constitucionais subseqüentes, os dizeres do Preâmbulo, se for o caso, se esclarecerem ou completarem o texto, devem ser levados em conta, para efeito de interpretação. Como o Preâmbulo é elemento integrante da Constituição, assim que promulgada, não há a menor dúvida de que a ele se deve recorrer, quando surgem problemas de hermenêutica, desde que, nessa peça vestibular ou introdutória, haja princípios que se relacionem de modo direto ou indireto com os dispositivos constitucionais questionados". 
Analisando os direitos: brasileiro e francês, o pensador das Arcadas expressa o entendimento de que na França a discussão tem sua relevância. Mas, no Brasil entende ser a discussão de uma inutilidade atroz. O autor disserta que, "na França, a discussão é importante, porque, por exemplo, nas Constituições de 1946 e 1958, os Preâmbulos, longos, se fundamentam nos princípios das Declarações de Direitos, mas, no Brasil, em que os Preâmbulos equivalem às invocações das epopéias clássicas ("E vós, Tágides minhas, dai-me ..."), não tendo relações com o texto, a não ser acidentais, qualquer polêmica será estéril e acadêmica".  Trata-se de uma doutrina de visão jurídico-material finita e limitada, não compreendendo o momento histórico do Direito como Ciência, e não apenas como sistema de normas. Não consegue enxergar a necessidade irrenunciável do Direito como instrumento provocador da realização sócio-material para os decênios.

Extremamente difícil é realizar uma afirmação quanto ao posicionamento doutrinário de PONTES DE MIRANDA, apesar do pensador alagoano examinar cada expressão usada no preâmbulo da Constituição de 1946, restringe-se a afirmar que eles têm o papel de dizer alguma coisa acerca de "qual o poder estatal, isto é, o poder de construir e reconstruir o Estado". Advertindo, porém, que, ainda quando os preceitos constitucionais aprofundem os traços gerais lançados no preâmbulo, "isso de modo nenhum autoriza a que se ponham de lado, na interpretação dos textos constitucionais, os dizeres do Preâmbulo. Todo Preâmbulo anuncia; não precisa anunciar tudo, nem, anunciando, restringe".  A mesma constatação pode se obter nos comentários à Constituição de 1967. 

Na lição de JOSÉ AFONSO DA SILVA, as normas do Preâmbulo da Constituição – assim como as das disposições transitórias –, são classificadas quanto a sua eficácia, como normas de aplicabilidade da Constituição. Chega, até mesmo, a fazer referência (CARL FRIEDRICH, CARL SCHMITT, VEDEL, GARCIA-PALAYO) às posições a favor da força normativa do preâmbulo constitucional. Para AFONSO DA SILVA, os preâmbulos constitucionais valem como orientação para a interpretação e aplicação das normas constitucionais. Leciona o autor que, "têm, pois, eficácia interpretativa e integrativa; mas, se matem uma declaração de direitos políticos e sociais do homem, valem como regra de princípio programático, pelo menos, sendo que a jurisprudência francesa, como anota LIET-VEAUX, lhes dá valor de lei, uma espécie de lei supletiva". 

O entendimento doutrinário esboçado por DALMO DE ABREU DALLARI acerca do preâmbulo constitucional, quando menciona que é objetivo assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, é no sentido de que "é muito importante notar que o Preâmbulo fala em assegurar o exercício dos direitos, o que tem significação mais concreta do que uma simples declaração dos direitos, sem preocupação com seu exercício". Portanto, define na sua doutrina humanista o ilustre professor das Arcadas que, "o Preâmbulo da atual Constituição brasileira é bem adequado a uma Constituição democrática, segundo as modernas concepções. Ele ressalta que a Constituição foi elaborada por processo democrático, mas acrescenta que a Constituição é um instrumento para a consecução de objetivos fundamentais da pessoa humana e de toda a Humanidade. Um dado final que tem grande importância é que na obra de vários constitucionalistas brasileiros contemporâneos, assim como na jurisprudência, já é referido o Preâmbulo como norma constitucional, de eficácia jurídica plena e condicionante da interpretação e da aplicação das normas constitucionais e de todas as normas que integram o sistema jurídico brasileiro". 

Já na doutrina de MAURÍCIO ANTONIO RIBEIRO LOPES  constata-se que estão consagrados no Preâmbulo da Constituição de 1988, diversos valores fundamentais ou superiores da Constituição. Valores fundamentais estes que não podem ser interpretados como palavras e expressões redundantes, ou vazias, ou mesmo como normas constitucionais programáticas que nunca se realizam. Caso assim fossem, poder-se-iam chamar-se taxativamente de normas programáticas para um futuro inatingível. A lição do representante das Arcadas é no sentido de que o preâmbulo tem natureza jurídica e exigibilidade imediata, detentor de força normativa, norma constitucional exeqüível em si mesma.
A síntese que se pode realizar do ensinamento de RIBEIRO LOPES pode ser assim esboçada numa citação contundente quando afirma que, "os valores incorporados pela Constituição a seu contexto têm, é evidente, a natureza de valores políticos. Políticos na sua proveniência e que se objetivando em normas passaram a ser jurídicos e como tal exigíveis, pois trazem as propriedades de validez e eficácia inerentes a estas. A circunstância de se situarem no plano constitucional – o plano mais elevado do ordenamento jurídico –, que é a sua sede logicamente adequada, impõe a conseqüência da exigibilidade imediata. Não há, por isso, possibilidade lógico-jurídica de fazer depender os seus efeitos de normas de integração como se sustenta às vezes, ora na doutrina, ora no campo da jurisprudência dos tribunais". 

4) Os pássaros voam não porque têm o direito de voar, mas porque têm asas. E não é verdade que esses órgãos, habilidades e características são "inalienáveis", Muitos deles passam por mutações constantes e podem muito bem se perder completamente com o tempo. O avestruz é uma ave que perdeu a capacidade de voar. Portanto, "direitos inalienáveis" deveria ser traduzido como "características mutáveis". E quais são as características que evoluíram nos humanos? "Vida", certamente. Mas "liberdade"? Isso não existe na biologia. Assim como igualdade, direitos e empresas de responsabilidade limitada, a liberdade é algo que as pessoas inventaram e que só existe em nossa imaginação. De uma perspectiva biológica, não faz sentido dizer que os humanos em sociedades democráticas são livres, ao passo que os humanos em sociedades ditatoriais não o são. E quanto a "felicidade"? Até o momento as pesquisas biológicas foram incapazes de propor uma definição clara de felicidade ou uma maneira de medi-la objetivamente. A maioria dos estudos biológicos reconhece apenas a existência de prazer, que é mais facilmente definido e medido. Portanto, "a vida, a liberdade e a procura da felicidade" deveria ser traduzido como "a vida e a procura de prazer".  Os defensores da igualdade e dos direitos humanos talvez fiquem escandalizados com essa linha de raciocínio. Sua reação provavelmente será: "Nós sabemos que as pessoas não são iguais biologicamente! Mas se acreditarmos que somos todos iguais em essência, isso nos permitirá criar uma sociedade estável e próspera". Não se deve desenvolver nenhum argumento contra isso. É exatamente o que pode dizer com "ordem imaginada". 

5) Convém observar que o Direito não existe senão para regular o convívio, isto é, para regular relações intersubjetivas ou impessoais. Assim, têm-se duas ideias correlatas: a de Direito, como conjunto de normas jurídicas e a de relação jurídica, como relação interpessoal por ele regulada. Que seu objeto é o Direito positivo (ou direito posto), mas considerado o Direito positivo de um Estado determinado, num dado momento histórico-cultural, ou como direito em certo ponto do espaço-tempo, com suas peculiaridades histórico-sócio-culturais. Que o Direito-objeto, além de estudado e descrito pela ciência, é normativo. Já a ciência que o estuda e descreve, no entanto, não é normativa, porém descritiva, como ensina o jurista Eros Roberto Grau. E denomina-se a parte teórica de sistemática jurídica, enquanto à prática empresta-se a denominação de técnica jurídica.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

UMA BREVE HISTÓRIA DO PENSAMENTO JURÍDICO


Segundo Alysson Leandro Mascaro (Introdução ao Estudo do Direito, 3ª edição, São Paulo, Atlas, 2012, p. 1/2): "A primeira dificuldade para delimitar o conceito de direito reside no fato de que, em geral, o jurista quer partir de suas próprias definições e de ideias abstratas e vagas para, apenas depois, encontrar uma realidade que se adapte às suas teorias. Mas o procedimento deve ser justamente o contrário. É preciso investigar fenômenos concretos e, a partir deles, alcançar uma concepção teórica posterior. 
Para entendermos o fenômeno jurídico, é preciso, acima de tudo, utilizar-se da ferramenta da história. Sem ela, as definições sobre o direito serão vagas e sem lastro concreto.
Durante muito tempo, chamou-se por direito aquilo que hoje chamaríamos por religião, ou mesmo por política. Quem dirá que os Dez Mandamentos da Bíblia são um monumento jurídico? Mas quem poderá dizer que são um conjunto de normas só religiosas e não jurídicas? Na verdade, em sociedades do passado, como a hebreia, não há algo que especificamente seja chamado por direito e que seja totalmente distinto da religião, por exemplo.
Somente quando se chegou aos tempos modernos - quando começou a separação teórica entre direito, política e religião, por exemplo - é que foi possível entender que não houve, naqueles tempos passados, um direito tomado de modo específico.
Mas essa indistinção dos tempos passados não foi algo que aconteceu apenas com o direito. Entre a moral e a religião também se deu o mesmo. O iluminismo, um movimento filosófico do século XVIII, demonstrou que seria possível compreender a moral independentemente da religião. Para os iluministas, poderia haver uma moral racional válida para todos os homens, universal e superior, independente da religião de cada qual. Mas para os povos do passado essa separação seria muito dificil. Moral e religião estavam misturadas. Só os tempos modernos, devido a certas condições e estruturas sociais, como a organização capitalista, deram especificidade à religião, à moral, à política, à economia e também ao direito.
Assim sendo, é o presente que nos ajuda a entender as dificuldades do passado. Se hoje o jurista considera o direito a partir das normas jurídicas estatais, com uma série de ferramentas, temas e consequências próprias, no passado tudo isso poderia ser objeto da religião, sem que houvesse uma definição dos campos específicos.
Comparado ao passado, o direito ganha especificidade apenas no capitalismo, a partir da Idade Moderna. Se no passado o direito era inespecífico, misturado à moral e à religião, no presente ele se revela como algo distinto, um fenômeno singularizado. Mas, mesmo assim, a questão ainda permanece, posta agora em outro, patamar, mais profundo. Se é somente nos tempos modernos que o direito passa a ser um fenômeno específico, então o que identifica em si o direito de nosso tempo, a fim de que seja distinguido de todos os demais fenômenos sociais?
Resposta: A qualidade de direito.
Propugnemos um entendimento do direito a partir da soma de duas perspectivas de identificação. É preciso compreender as coisas que são quantitativamente jurídicas e aquilo que qualitativamente as torna como tais; O direito cobre muitos assuntos - homicídio, roubo, compra e venda, tributos, proteção ao trabalhador. Mas, além de se referir a muitos temas, o direito lida de modo específico com esses próprios temas. Por isso, é a qualidade de direito o grande identificador do fenômeno jurídico moderno. Quando se diz que o manejo do solo pode ser um tema jurídico, isso não quer dizer que a agricultura tenha que ser necessariamente regulada juridicamente. O direito, se também chega às questões agrícolas, o faz por vias distintas daquelas que são as tradicionais de um agrônomo.
Como muitas coisas podem ser jurídicas - a propriedade, as relações de trabalho, a atividade mercantil, os costumes, a educação, a legislação aérea, a previdência social, o direito administrativo -, não é pelo assunto de que trata o direito que se o identifica. Se muitos assuntos podem ou não podem ser considerados jurídicos, o passo científico mais decisivo para compreender o direito não é, então, entender quais temas são jurídicos (a sua identificação quantitativa), mas, sim, quais mecanismos e estruturas dão especificidade ao direito perante qualquer assunto (a sua identificação qualitativa).
A religião pode falar sobre tudo, disciplinar muitas condutas. O direito pode também legislar sobre as mesmas condutas. Mas o direito procede de um modo e a religião de outro. São estruturas distintas, que se relacionam diferentemente com os objetos. Não são objetos nem temas específicos que identificam o direito, e sim determinados tipos de relação desses objetos e temas com outras certas situações sociais. Todos os assuntos podem ser jurídicos quando haja estruturas jurídicas que os qualifiquem.
No passado, não havia uma qualificação dos assuntos como estritamente jurídicos ou religiosos, porque seus mandos se intercambiavam e se confundiam. Somente num certo tempo histórico essa especificidade apareceu, a partir de determinadas relações sociais e econômicas. Nesse momento, deu-se a transformação qualitativa do fenêomeno jurídico. Tal transformação se deu com o capitalismo. Como este modo de produção apareceu apenas muito modernamente, pode-se dizer que os instrumentos do direito apenas nos tempos mais próximos da história ganharam especificidade. Ao se ver a inespecificidade do direito nos modos de produção do passado, resta clara a ligação específica que há entre o direito e o capitalismo.
Em modos de produção primitivos, pré-capitalistas, o direito era muito similar a uma ação ocasional, artesanal. Davam-se soluções para casos quaisquer de acordo com o poder, a força e as habilidades individuais daquele que mandava, e tais soluções não se repetiam em outros casos parecidos. No capitalismo o procedimento é diverso. O comércio, a exploração do trabalho mediante salário, a mercantilização das relações sociais, tudo iddo deu margem a um tratamento do direito como uma esfera social específica, eminentemente técnica, independente da vontade ocasional das partes ou do julgador.
Com o capitalismo, o direito passa a ocupar específico no todo da vida social. Essa instância jurídica é o local no qual um ente aparentemente distante de todos os indivíduos, o Estado, se institucionaliza e passa a regular uma pluralidade de comportamentos, atos e relações sociais.
No escravagismo e no feudalismo, que são anteriores ao capitalismo, não há especificamente uma instância jurídica. Não há uma qualidade de relações que seja só jurídica em meio ao todo da vida social. A religião ordena, regula e manda, e da mesma maneira o rei, o senhor feudal ou o senhor de escravo. Se pensássemos que a totalidade das relações sociais fosse um edifício de vários andares, não há um andar específico para o direito. No capitalismo, passa a havê-lo. E, no edifício das relações sociais capitalistas, o direito é o andar mais próximo e contíguo ao pavimento do Estado.
É possível afirmar, então, que passa a haver uma específica manifestação social que se identifica como direito a partir do capitalismo. E esse fenômeno jurídico é tão peculiar ao capitalismo que aquilo que se chamar como direito pré-capitalista tarnar-se-á praticamente irreconhecível em face do atual direito. Quando com os olhos de juristas de hoje olhamos o direito da Bíblia, por exemplo, não o reconhecemos como tendo a mesma estrutura jurídica presente. De fato, ele é outro, diretamente misturado com a religião, e o nosso moderno, capitalista, não.
Essa transformação histórica qualitativa, que é oriunda dos movimentos mais básicos da atividade capitalista, foi a responsável pela especificidade do direito em face dos demais fenômenos sociais. É o capitalismo que dá ao direito a condição de fenômeno distinto do mando do senhor feudal, do mando da igreja, da crença em ordens sagradas. O capitalismo dá especificidade ao direito.
No capitalismo, inaugura-se um mundo de instituições que sustentam práticas específicas de explorações. A célula mínima de tais estruturas de exploração é a mercadoria. Uns vendem e outros compram. A transação comercial somente se sustenta se comprador e vendedor forem considerados sujeitos de direito, isto é, pessoas capazes de se vincularem por meio de um contrato no qual trocam direitos e deveres. A mercadoria acarreta determinados institutos reputados estritamente por jurídicos. Não é a religião nem a moral que os sustenta. Daí surge especificamente o direito. Seus institutos são resultantes diretos das transações mercantis, porque a garantem. Entender o direito a partir do movimento mais simples deo capitalismo - as trocas mercantis - é captar o ponto que dá a qualificação específica ao direito moderno.".
Para Stéphane Rials, "Michel Villey (A Formação do Pensamento Jurídico Moderno, 2ª ed. Martins Fontes, 2009, p. XVV), aponta com frequência o jogo dos interesses de classe. [...] A passagem do "feudalismo" (...) para o "capitalismo" (...) talvez atraia menos sua atenção que o declínio da classe cultural clerical (...) e o desenvolvimento - decerto vinculado à modificação das relações econômicas - de uma classe cultural laica. (...) "Cabe-nos, portanto, consderar esse novo mundo cultural que o século XVI suscitou, portador de uma nova concepção da filosofia e do direito. Por que tão nova? Podemos responder que ele nasce de uma nova classe social. Não mais do clero [...]. Doravante, a conjuntura econômico-política permite que os burgueses enriquecidos e alguns nobres libertos de sua antiga tarefa militar constituam um outro tipo de elite culta.
E o resultado da pesquisa de Yuval Noah Harari (Uma Breve História da Humanidade, 30 ed., Porto Alegre-RS, L&PM, 2017), mais profunda, nos informa que: "Por volta de 10.000 a.C., antes da transição para a agricultura, a Terra era o lar de 5 a 8 milhões de caçadores-coletores nômades. No século I, restavam apenas de l a 2 milhoões de caçadores-coletores (principalmente na Austrália, na América e na África), mas os 250 milhões de agricultores no mundo fizeram com que esse número continuasse diminuindo.
A grande maioria dos agricultores vivia em assentamentos permanentes; apenas alguns eram pastores nômades. Os assentamentos permanentes faziam com que o terreno da maioria dos povos fosse drasticamente reduzido. [...].
Enquanto o espaço agrícola se reduziu, o tempo agrícola se expandiu. Os caçadores-coletores normalmente não perdiam muito tempo pensando no mês ou no verão seguinte. Os agricultores viajavam, em sua imaginação, anos e décadas no futuro.
Os caçadores-coletores desconsideravam o futuro porque viviam do que havia disponível e somente com dificuldade conseguiam conservar alimentos ou acumular bens. É claro que eles faziam alguns planos. [...] As alianças sociais e as rivalidades políticas eram negócios de longo prazo. Muitas vezes se levava anos para retribuir um favor ou vingar uma ofensa. No entanto, na economia de subsistência da caça e da coleta, havia um limite óbvio a tal planejamento de longo prazo. Paradoxalmente, isso poupava os caçadores-coletores de muitas ansiedades. Não fazia sentido se preocupar com coisas que eles não podiam controlar. [...].
Em consequência, desde o advento da agricultura as preocupações com o futuro se tornaram atores importantes no teatro da mente humana. 
O estresse representado pela agricultura teve consequências importantes. Foi a base dos sistemas políticos e sociais de grande escala. Infelizmente, mesmo trabalhando duro, os camponeses quase nunca alcançaram a segurança econômica futura que tanto ansiavam. Em toda parte, brotaram governantes e elites, vivendo do excedente dos camponeses e deixando-os com o mínimo para a sobrevivência. 
Esses excedentes de alimento confiscados alimentaram a política, a guerra, a arte e a filosofia. Construíram palácios, fortes, monumentos e templos. Até o fim da era moderna, mais de 90% dos humanos eram camponeses que se levantavam todas as manhãs para trabalhar a terra com o suor da fronte. Os excedentes que produziam alimentavam a ínfima minoria das elites - reis, oficiais do governo, soldados, padres, artistas e pensadores -, que enchem os livros de história. A história é o que algumas poucas pessoas fizeram enquanto todas as outras estavam arando campos e carregando baldes de água. [...].
O punhado de milênios separando a Revolução Agrícola do surgimento de cidades, reinos e impérios não foi tempo suficiente para possibilitar o desenvolvimento de um instinto de cooperação em massa. [...].
Os mitos, como se veio a saber, são mais influentes do que qualquer um poderia ter imaginado. Quando a Revolução Agrícola criou oportunidades para a criação de cidades populosas e impérios poderosos, as pessoas inventaram histórias sobre grandes deuses, pátrias-mães e empresas de capital aberto para fornecer os elos sociais necessários. Enquanto a evolução humana estava rastejando no seu usual ritmo de tartaruga, a imaginação humana estava construindo redes impressionantes de cooperação em massa, diferentes de qualquer outra já vista. 
Por volta de 8.500 a.C., os maiores assentamentos do mundo eram vilarejos como Jericó e outros. Em 3.100 a.C, todo o vale do baixo Nilo estava unido no primeiro reino egípcio. Por volta de 2.250 a.C., Sargão, o Grande, construiu o primeiro império, o Acadino. Entre 1.000 e 500 a.C., apareceram os primeiros megaimpérios no Oriente Médio: o Império Assírio, o Império Babilônico e o Império Persa. Eles governavam muitos milhões de súditos e comandavam dezenas de milhares de soldados. [...].
Todas essas redes de cooperação - das cidades da antiga Mesopotâmia aos impérios Qin e Romano - foram "ordens imaginadas". As normas sociais que as sustentavam não se baseavam em instintos arraigados nem em relações pessoais, e sim na crença em mitos partilhados.
Como os mitos podem sustentar impérios inteiros? Examinemos dois dos mitos mais conhecidos da história: o Código de Hamurabi, de aproximadamente 1.776 a.C., que serviu como um manual de cooperação para centenas de milhares de babilônicos na Antiguidade, pois o mais famoso rei babilônico chamava-se Hamurabi, sua fama se deve principalmente ao texto que recebe seu nome: o Código de Hamurabi. Este foi uma coleção de de leis e decisões judiciais cujo objetivo era apresentar Hamurabi como modelo de rei justo, servir de base para um sistema juridico mais uniforme em todo o Império Babilônico e ensinar às gerações futuras o que é justiça e como age um rei justo. As gerações futuras prestaram atenção. A elite intelectual e burocrática da antiga Mesopotâmia canonizou o texto, e escribas aprendizes continuaram a copiá-lo muito depois de Hamurabi morrer e de seu império cair em ruina. O código de Hamurabi é, portanto uma boa fonte para entender o antigo ideal de ordem social dos mesopotâmios; e a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776, que ainda serve como um manual de cooperação para centenas de milhões de norte-americanos.". Eis aí uma breve narrativa a respeito da formação do pensamento jurídico que atualmente estamos aprimorando.

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

A Moral, A Religião e o Direito

"O mundo moral dos modernos é significativamente distinto do de civilizações procedentes." (Charles Taylor - As Fontes do Self).

A saber: "Criminalização do aborto não é baseada em evidências sobre a vida das mulheres.Conjur: 02 de agosto de 2018, 17h42 (por Ana Pompeu).


Poucos temas testam tanto os limites da separação entre Direito e moral quanto o aborto. E não poderia estar em outro foro além do Supremo Tribunal Federal, destino de praticamente todos os temas importantes para a sociedade brasileira dos últimos anos.
A constitucionalidade da criminalização do aborto foi levada ao Supremo por meio da ADPF 442. Entre estas sexta (3/8) e segunda-feira (6/8), o tribunal promoverá audiências públicas para discutir o pedido feito na petição inicial. São 40 inscritos, o que a transforma na audiência pública com o maior número de participantes da história do tribunal. 
Fora dos muros e corredores do STF, Débora Diniz, professora da Faculdade de Direito da UnB, fundadora e pesquisadora da Anis — Instituto de Bioética e ativista dos direitos das mulheres, vem sofrendo ameaças por suas posições. Uma das principais cabeças da ação que suscitou o debate, ela analisa que sofrer “uma reação de ódio e de rechaço ao processo democrático”.
Para a pesquisadora, o contexto do Brasil e América Latina revela um descompasso entre legislação e dia a dia. Ela enfatiza que, ao mesmo tempo que somos uma região com umas das legislações sobre aborto mais restritivas do mundo, somos também a região com as taxas mais altas de aborto.
“Isso significa inclusive que o processo de estabelecimento dessas leis não é um processo baseado nas evidências sobre o que realmente impacta a vida das mulheres e meninas e altera as relações e a realidade sobre aborto, mas baseado em dogmas morais que atravancam um debate sério sobre saúde. É esse cenário que o Supremo Tribunal Federal tem a oportunidade de enfrentar nesse momento”, afirma, em entrevista à ConJur.
A despeito desse quadro, a ação recebe críticas que apontam o Legislativo como o poder com legitimidade para apreciar uma possível alteração. Aqueles que sustentam essa posição se escoram no argumento do ativismo judicial exacerbado. A pesquisadora rebate a discordância.
“Nesse caso, o Supremo não é chamado a legislar, mas chamado a se pronunciar sobre se uma legislação anterior à Constituição Federal está compatível ou não com a própria Constituição. É simplesmente isso”, replica. Para ela, ao contrário, é exatamente função da Corte Suprema avaliar a garantia de direitos fundamentais.
Não é a primeira vez que o tema tem potencial de causar atrito entre os poderes. A arguição de descumprimento de preceito fundamental da Anis foi apresentada, juntamente com o PSOL, no Dia da Mulher, em 8 de março de 2017. A construção da ADPF ganhou força depois que a 1ª Turma do STF, por maioria, entendeu que a interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação não pode ser equiparada ao aborto, no fim de 2016.
Naquele momento, um dia após a decisão da Turma, houve uma reação no Congresso. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), anunciou uma comissão especial com o objetivo de incluir na Constituição uma regra clara sobre aborto. “Sempre que o Supremo legislar, nós vamos deliberar sobre o assunto”, disse Maia.
O Código Penal de 1940 é o texto legal que rege o tema no Brasil. Desde então, nenhuma alteração foi feita no âmbito legislativo. A única mudança se deu por meio do próprio Supremo, em ação também capitaneada por Débora Diniz. Em 2012 o Plenário do STF entendeu constitucional o aborto em casos de anencefalia, por se tratar de uma condição incompatível com a vida.
Prevaleceu a tese de que não haveria ali uma vida a ser protegida e, portanto, obrigar uma mulher a levar uma gestação em que ao final haveria um caixão e não um berço era afrontar a sua dignidade e submetê-la à tortura. Para além disso, o aborto é legal em casos de gravidez resultante de estupro e risco de morte da gestante.
O objetivo é que o STF exclua dos artigos 124 e 126 do Código Penal a interrupção da gestação induzida e voluntária nas primeiras 12 semanas, “de modo a garantir às mulheres o direito constitucional de interromper a gestação, de acordo com a autonomia delas, sem necessidade de qualquer forma de permissão específica do Estado, bem como garantir aos profissionais de saúde o direito de realizar o procedimento”.
Os proponentes argumentam que a proibição da prática viola preceitos da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da não discriminação, da inviolabilidade da vida, da liberdade, da igualdade, da proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, da saúde e o planejamento familiar das mulheres e os direitos sexuais e reprodutivos (decorrentes dos direitos à liberdade e igualdade).
A ação que pretende descriminalizar o aborto teve o maior número de pedidos de ingresso como amicus curiae da história da corte: foram 40 entidades interessadas em apresentar posição sobre o assunto. Na convocação da audiência pública, a relatora, ministra Rosa Weber, afirmou que os pedidos de amici curiae serão analisados depois que a sociedade for ouvida.
A própria audiência terá número elevado de participações, com 44 expositores, com 20 minutos cada para argumentação, divididos em dois dias. Esse número foi resultado da seleção feita pelo gabinete da ministra Rosa Weber depois de terem recebido mais de 500 inscrições
Leia a entrevista:
ConJur — Há críticas que afirmam que o Judiciário não é o Poder com legitimidade para tratar de temas como do aborto, pois seria inevitável o ativismo. Como entende isso? O Supremo é o espaço para essa discussão?
Débora Diniz — Sim, o Supremo Tribunal Federal é o espaço legítimo para a discussão sobre direitos fundamentais violados. Esse é o seu papel em ações de controle de constitucionalidade, que é o caso da ADPF 442. Nesse caso, o Supremo não é chamado a legislar, mas a se pronunciar sobre se uma legislação anterior à Constituição Federal está compatível com ela. É simplesmente isto: a possibilidade de interpretar a adequação do Código Penal de 1940 de acordo com a Constituição Federal e, inclusive, numa avaliação de garantia de direitos fundamentais, é uma função regular da corte.

ConJur — A Anis teve e tem atuação forte em questões como a do aborto e outras correlatas. Desta vez, viraram notícia as ameaças que a senhora recebeu, inclusive de morte. É a primeira vez que isso acontece?
Débora Diniz — Não. O episódio mais marcante foi justamente quando a ADPF 54, que decidiu pela descriminalização do aborto em casos de anencefalia do feto, estava em curso. É uma reação de ódio e de rechaço ao processo democrático de debate sobre questões sensíveis. Mas como da outra vez, o processo da corte se mostrará maior que as intimidações.

ConJur — A regulamentação do aborto no Brasil é o Código Penal e permanece a mesma desde 1940. A única mudança foi a autorização para o aborto de fetos anencéfalos. Por que a lei permanece tantos anos sem mudanças e se mantém restrita?
Débora Diniz — Vivemos num contexto de hegemonia política muito hostil às mulheres, inclusive, compartilhado na América Latina e no Caribe. Ao mesmo tempo que somos uma região com umas das legislações sobre aborto mais restritivas do mundo, somos também a região com as taxas mais altas de aborto. Isso significa inclusive que o processo de estabelecimento dessas leis não é um processo baseado nas evidências sobre o que realmente impacta a vida das mulheres e meninas e altera as relações e a realidade sobre aborto, mas baseado em dogmas morais que atravancam um debate sério sobre saúde. É esse cenário que o Supremo tem a oportunidade de enfrentar nesse momento.

ConJur — As decisões tomadas no referendo na Irlanda e depois pela Câmara dos Deputados da Argentina sobre aborto têm reflexo na discussão feita por aqui?
Débora Diniz — Sim, essas decisões têm um efeito claro. Sobretudo a Argentina, pela proximidade de vizinhança. Como o Brasil e outros países da América Latina e do Caribe, a Argentina é um país entranhado na cultura patriarcal, um país onde, assim como no Brasil, há certa confusão na separação entre religiões e Estado no cotidiano da vida pública, que acredita no uso da lei penal para controlar as decisões reprodutivas das mulheres. Mas notamos cada vez mais claramente que existe um movimento que vem se fortalecendo em torno da discussão dos direitos das mulheres em todo o mundo, uma luta global pelo reconhecimento institucional dos direitos das mulheres tem se intensificado, e Irlanda e Argentina são, sem dúvida, fontes de esperança para luta brasileira também. Então certamente os debates têm reflexo.

ConJur — Qual a expectativa para a audiência pública? Acredita que terá poder de mobilizar sociedade e os ministros?
Débora Diniz — Sim, já tem tido um poder importante de movimentação do debate jurídico, e a expectativa é que haja também nesse momento da audiência e a partir dela, uma qualificação maior da discussão sobre a questão do aborto, com apresentação de dados corretos e confiáveis, sobre o impacto da criminalização e dados de saúde pública, inclusive de outros países quando descriminalizam o aborto. É preciso destacar que a convocatória da audiência pública da ADPF 442 é um momento de extrema importância, um momento em que o STF, mesmo diante de um contexto de crise política no Brasil, assumiu uma atitude corajosa afirmando que era a hora de debater sobre direito ao aborto na maior corte de Justiça do país. Isso mostra seriedade da corte com debates sensíveis de direitos humanos.

ConJur — Boa parte das entidades que vão se manifestar contra a proposta da ADPF é ligada a igrejas. Que o peso que esse setor tem sobre definição dos limites do aborto no Brasil? E dos direitos de mulheres?
Débora Diniz — Existe uma matriz política, que inclusive tem raízes religiosas, que ainda tem muito poder dentro das instituições no Brasil, e, neste momento em especial, de crise política e uma agravada crise de representatividade, e de crise da atuação política legítima pelos partidos, outras instituições e personagens acabam ocupando um espaço importante na arena política, como é o caso das igrejas e religiões. Isso tem sido especialmente verificado nesse momento de crise, mas é nesse momento também que se verifica um fortalecimento do debate de direitos humanos com uso de evidências confiáveis.

ConJur — Alguns ministros do STF já se manifestaram sobre o tema em outras decisões, como a própria relatora da ADPF, ministra Rosa Weber, os ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Edson Fachin. Qual a sua expectativa sobre como o Plenário vai se posicionar nesse caso?
Débora Diniz — A expectativa com relação à ADPF, embora esse não seja ainda o momento da votação, é a de que a corte compreenda também o caminho de coerência da jurisprudência que tem havido desde o julgamento das pesquisas com células tronco, caminhando para o julgamento da anencefalia, casos em que há uma interpretação sólida sobre o que significa a proteção dos direitos fundamentais na questão do aborto. Então a expectativa é que o Plenário siga a posição consolidada em ações anteriores.

ConJur — A ministra Rosa negou um pedido de interrupção de gravidez feito dentro da ADPF. Isso sinaliza algum posicionamento que o tribunal vá tomar no mérito do pedido?
Débora Diniz — Não. É importante entender que naquele momento a ministra Rosa Weber não negou o pedido, mas, por uma questão processual, ela avaliou que não era possível deliberar sobre o pedido naquele momento e dentro do processo da ADPF. Então a decisão foi processual, não houve decisão substantiva sobre o mérito do pedido de Rebeca, por isso essa decisão não nos indica nada em termos de posição nem da ministra, nem do STF.

ConJur — O que significaria, na prática, uma decisão do Supremo pela descriminalização?
Débora Diniz — É preciso entender que um efeito grave da criminalização pode ser visto no casos em que o aborto já deveria ser legal. Existe um obstáculo significativo para que as mulheres encontrem acesso aos serviços, Mesmo na legalidade, elas são atendidas a partir dos estigmas que vêm da criminalização. A consequência disso são serviços escassos, equipes com pouco preparo, o tratamento às mulheres é feito sob permanente suspeição. Os médicos que atuam nesses serviços atuam na exceção, sob uma forte pressão e medo de serem perseguidos. A lista é longa, e, com a descriminalização do aborto, os estigmas associados à sexualidade, saúde e decisões reprodutivas das mulheres serão reduzidos inclusive nos serviços de saúde. Isso implica em mais qualidade nas políticas de saúde e no preparo dos serviços para acolher as necessidades das mulheres.

ConJur — No fim de 2016, a 1ª Turma do STF entendeu, por maioria, que a interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação não pode ser equiparada ao aborto. Há que se recorrer a estratégias narrativas para tratar do aborto no Brasil? O marco da 12ª semana foi determinado tendo essa decisão em vista? Naquele momento, o Supremo extrapolou sua competência?
Débora Diniz — O marco da 12ª semana foi determinado por ser um marco temporal de aborto legal seguido internacionalmente. Existem algumas razões para isso: esse é o tempo gestacional em que grande parte das mulheres em todo o mundo fazem aborto — mais de 90% das mulheres nos Estados Unidos e Reino Unido, por exemplo, fazem aborto até a 13ª semana. Além disso, realizar o aborto dentro desse período é um procedimento muito seguro, com baixo risco de complicações e é também um período muito anterior ao tempo mínimo necessário para que haja viabilidade do feto para vida fora do útero. Naquele momento, o STF não extrapolou sua competência, porque o que foi decidido, na verdade, foi o pedido do Habeas Corpus contra a prisão preventiva das pessoas que estavam sendo acusadas, mas houve também um posicionamento da 1ª Turma com relação a uma questão mais ampla que era uma questão constitucional.

ConJur — Como a punição ao aborto funciona no Brasil? Mulheres são presas?
Débora Diniz — O efeito da lei penal extrapola, e muito, os procedimento de persecução criminal, de prisão e de se tornar ré em processo penal. Mais ainda se considerarmos quem são atingidas por essa criminalização, que são as mulheres mais vulneráveis. Ou seja: mulheres de todas as classes sociais fazem aborto, mas só as meninas mais pobres, negras, indígenas, dependentes do SUS enfrentam o risco real de ser presas.

O mais cruel da lei penal no caso brasileiro é que ela tem um efeito anterior a qualquer movimentação do sistema punitivo. A lei penal já tem um efeito quando as mulheres precisam procurar por conta própria os métodos clandestinos e precisam colocar suas vidas em risco. São efeitos, inclusive, inadmissíveis pelo próprio sistema penal brasileiro. O Brasil faz parte do conjunto de países que veda o tratamento cruel, desumano e degradante, veda a tortura e veda a pena de morte. Mas as mulheres, buscando um método clandestino de aborto, muitas vezes encontram justamente o destino da tortura ou mesmo da morte.
ConJur — A Pesquisa Nacional do Aborto, da Anis, revela que um número alto de mulheres, de diferentes perfis, abortam no país. Por que, então, é uma discussão tão penosa?
Débora Diniz — A PNA revela que aproximadamente 500 mil mulheres abortam por ano no Brasil. Isso significa mais de 1,3 mil por dia, 57 por hora e quase uma mulher por minuto. A pesquisa mostrou que uma em cada cinco mulheres até os 40 anos já fez um aborto no país — ou seja, todos nós, mesmo que não saibamos, conhecemos uma mulher que já fez aborto. Elas são mulheres comuns, têm filhos, têm religião. A discussão se torna tão difícil porque ela não é colocada nos termos corretos sobre o impacto da criminalização na vida e na saúde das mulheres. Ao contrário: é colocada como uma questão de posições morais inconciliáveis que não têm relação, inclusive, com a possibilidade de fazer com que abortos não ocorram. Os números nos mostram que, independentemente da lei penal, uma mulher que precisa interromper uma gestação vai interromper uma gestação. Assim, o único efeito real da criminalização é fazer com que essa mulher faça esse aborto em condições degradantes, perigosas à sua saúde, podendo morrer, podendo deixar sua família desamparada, podendo deixar seus filhos desamparados.

ConJur — Acredita que essa inocuidade da lei terá peso na decisão do Supremo?
Débora Diniz — Sim, esse é um ponto crucial a que a corte precisa estar atenta, compreendendo que, no Brasil, como em vários outros países, o direito penal é a ultima ratio do Estado. Isso significa que a lei penal só pode ser utilizada para a proteção de um bem jurídico quando outras estratégias menos lesivas a direitos fundamentais tenham falhado. Não é o que acontece com o aborto. E a experiência de outros países mostra que existem medidas menos graves, menos violadoras de direitos fundamentais, mais eficazes para prevenir gestações indesejadas e, por consequência, prevenir abortos.

ConJur — Pode citar algumas dessas experiências?
Débora Diniz — Investimento em educação sexual, em políticas integrais de acesso a contraceptivos, de capacitação de profissionais para que recebam as mulheres no serviço de saúde sem estigma, sem julgamento, e assim poder cuidar delas e de suas necessidades. 


ConJur — A ADPF 442 é a ação com mais pedidos de ingresso como amicus curiae da história do Supremo. A própria audiência pública recebeu centenas de pedidos de participação. O que isso significa?
Débora Diniz — Isso é um sinal muito importante. Primeiro, que a sociedade civil está mostrando que quer debater esse assunto, que quer se engajar nesse tema a partir de uma ótica de direitos, com suporte em dados confiáveis, em evidências empíricas e na experiência das mulheres. Algo muito importante desse movimento é justamente que a sociedade civil está reconhecendo a corte como um locus democrático para esse debate. Esse é um dos maiores sinais de que o Supremo é também o local onde debates sensíveis sobre direitos podem acontecer, e até o momento são 40 amici curiae, sendo que 29 são favoráveis à procedência da ação e 11 são contrários.

ConJur — A Anis está preparada para o caso de o Supremo declarar constitucional a criminalização do aborto?
Débora Diniz — Sim, a Anis está preparada para qualquer resultado dessa ação. Qualquer que seja o fim desse julgamento, que ainda não tem data para acontecer, vai fazer parte de uma luta maior do movimento de mulheres pelos direitos sexuais e reprodutivos, que não se iniciou na ADPF e nem terminará nela.".

domingo, 10 de junho de 2018

Desiderata e Carta ao Jovem Cientista


Desiderata

Desiderata, do latim "coisas desejadas" é um poema que foi encontrado num livro da igreja de Saint Paul. em Baltimore, nos EUA. Muitos o atribuíram a um autor anônimo, e a data de sua publicação é igualmente considerada por muitos como o ano de 1692. Na realidade, se trata de um poema do escritor e advogado americano Max Ehrmann (1872-1945), e que foi escrito em 1927. O motivo da confusão é que em 1956 o poema foi inserido numa compilação de textos devocionais pelo reverendo que na época presidia a igreja de Saint Paul.  1692 é, em realidade, o ano de fundação desta igreja. Isso tudo. entretanto, não retira a grandiosidade do poema:

placidamente por entre o barulho e a pressa e lembre-se da paz que pode haver no silêncio.


Tanto quanto possível, sem sacrificar seus princípios, conviva bem com todas as pessoas.

Diga a sua verdade calma e claramente e ouça os outros, mesmo os estúpidos e ignorantes, pois eles também têm sua história. Evite as pessoas vulgares e agressivas. elas são um tormento para o espírito.

Se você se comparar aos outros, pode tomar-se  vaidoso  ou  amargo, porque  sempre existirão pessoas superiores e inferiores a você.

Usufrua suas conquistas, assim como seus planos. Manter-se interessado em sua própria carreira, mesmo que humilde, é um bem verdadeiro na sorte incerta dos tempos.

Tenha cautela em seus negócios, pois o mundo é cheio de artif1cios, mas não deixe isso te cegar à virtude que existe. Muitos lutam por ideais nobres e por toda parte a vida é cheia de heroísmo.

Seja você mesmo. Sobretudo, não finja afeições.

Não seja cínico sobre o amor, porque, apesar de toda aridez e desencantamento, ele é tão perene quanto a relva.

Aceite gentilmente o conselho dos anos, renunciando com benevolência às coisas da juventude.

Alimente a força do espírito para ter proteção em u m súbito infortúnio. Mas não se torture com temores imaginários. Muitos medos nascem da solidão e do cansaço.

Adote uma disciplina sadia, mas não seja exigente demais. Seja gentil consigo mesmo.

Você é filho do Universo, assim como as árvores e as estrelas

Você é filho do Universo, assim como as árvores e as estrelas. Você tem o direito de estar aqui.

E mesmo que não lhe pareça claro, o Uni verso. com certeza. está evoluindo como deveria.


Portanto, esteja em paz com Deus, não importa como você O conceba.

E, quaisquer que sejam as suas lutas e aspirações no ruidoso tumulto da vida. mantenha a paz em sua alma.

Apesar de todas as falsidades, maldades e sonhos desfeitos. este ainda é u m belo mundo. Alegre-se. Empenhe-se em ser feliz!

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Ciência/Pesquisa: Carta aos Jovens

O russo Ivan Pavlov, Prêmio Nobel de Fisiologia/Medicina, certa feita escreveu uma carta aos jovens interessados pela pesquisa e pela ciência. A meu ver, não jovens no sentido cronológico, mas também para todos aqueles que, independentemente da idade, estão a se iniciar no universo da pesquisa científica. Até porque, de resto, idade cronológica, por vezes, não atesta maturidade. Mas, o que realçou Pavlov aos jovens iniciantes em pesquisa/ciência? Falou de premissas básicas que, mutatis mutandis, com as mediações contextuais, têm muito a dizer contemporaneamente. Uma expressão russa da carta, tanto em língua portuguesa como inglesa, está traduzida como paixão. Possivelmente, pelo que estou informado, não tem a ver com a paixão no sentido tradicional da nossa "raiz linguística" (que pode resultar até em sofrimento), mas diz respeito, sim, a 'entusiasmo comprometido com algo'. Reproduzo, a seguir, a versão da carta em língua portuguesa e inglesa - o cotejamento, entre as duas versões, pode revelar diferenças.


   Carta aos Jovens


Por Ivan Pavlov

O que desejaria eu aos jovens de minha Pátria, consagrados   à   ciência? Antes de tudo - constância. Nunca posso falar sem emoção sobre essa importante condição para o trabalho científico. Constância, constância e constância!
Desde o início de seus trabalhos habituem-se a uma rigorosa constância na acumulação do conhecimento.
Aprendam o ABC da Ciência antes de tentar galgar seu cume. Nunca acreditem no que se segue sem assimilar o que vem antes. Nunca tente dissimular sua falta de conhecimento, ainda que com suposições e hipóteses audaciosas. Como se alegra nossa vista com o jogo de cores dessa bolha de sabão - no entanto, ela, inevitavelmente, arrebenta e nada fica, além da confusão.
Acostume-se à discrição e à paciência. Aprendam o trabalho árduo da ciência. Estudem, comparem , acumulem fatos.
Ao contrário das asas perfeitas dos pássaros, a ciência nunca conseguirá alçar voo, nem se sustentar no espaço. Fatos - esta é a atmosfera do cientista. Sem eles, nunca poderemos voar. Sem eles, nossa teoria não passa de um esforço vazio.
Porém, estudem, experimentem, observem, esforcem-se para não abandonar os fatos à superfície. Não se transformem em arquivistas de fatos. Tentem penetrar no ministério de sua origem e, com perseverança, procurem as leis que os governam.
Em segundo lugar - sejam modestos. Nunca pensem que sabem tudo. E não se tenham em alta conta; possam ter sempre a coragem de dizer: sou ignorante. Não deixe que o orgulho os domine. Por causa dele, poderão obstinar-se quando for necessário concordar por causa dele, renunciarão ao conselho saudável e ao auxílio amigo; por causa dele , perderão a medida da objetividade .
No grupo que me foi dado dirigir. todos formavam uma mesma atmosfera. Estávamos todos atrelados a uma única tarefa e cada um agia segundo sua capacidade e possibilidades. Dificilmente era possível distinguir você próprio do resto do grupo. Mas dessa comunidade tirávamos proveito.
Em terceiro lugar - a paixão. Lembre-se de que a ciência exige que as pessoas se dediquem a ela durante a vida inteira. E se tivessem duas vidas, ainda assim não seria suficiente. A ciência demanda dos indivíduos grande tensão e forte paixão.
Sejam apaixonados por sua ciência e por suas pesquisas.
Nossa Pátria abre um vasto horizonte para os cientistas e é preciso reconhecer - a ciência generosamente nos introduz na vida de nosso país. Prossigam com o máximo de generosidade!
O que dizer sobre a situação de nossos jovens cientistas? Eis que aqui tudo é claro. A vocês muito foi dado, mas de vocês muito se exige. E para os jovens, assim como para s, a questão de honra é ser digno de uma esperança maior, aquela que é depositada na ciência de nossa pátria.


Tradução : Annibal Villela , in CASTRO, C. de M. A prática da pesquisa. São Paulo: McGraW­ Hill do Brasil, 1977