domingo, 23 de dezembro de 2018

Compreensão Científica da Ética

O agraciado com o Prêmio Nobel de Física em 1933, Erwin Schrödinger (1887-1961), em "O que é vida?", escrevera:

"Acredito que podemos considerar como extremamente improvável que nossa compreensão do mundo represente qualquer estágio definitivo ou final, um máximo ou ótimo sob qualquer aspecto. [...].


Em todas as épocas e entre todos os povos, o histórico de todo código de ética (...) levado a sério tem sido, e é, uma autonegação (...). O ensino da ética assume sempre a forma de uma demanda, de um desafio, de um "tu deves", que de alguma forma se opõe à nossa vontade primitiva. Viria daí esse peculiar contraste entre "eu quero" e o "tu deves"? Não é absurdo que eu tenha a obrigação de abolir meus apetites primitivos, despojar-me do meu verdadeiro eu, ser diferente daquilo que realmente sou? De fato, em nossos dias, talvez mais que em outros tempos, ouvimos zombar desta exigência muitas vezes. "Sou o que sou, dêem espaço para minha individualidade! Livre desenvolvimento para os desejos que a natureza plantou em mim! Todas as obrigações que se opõem a mim nesse aspecto não têm sentido, são contos-do-vigário. Deus é Natureza, e podemos dar crédito à Natureza por ter-me formado como ela deseja que eu seja." Ouvimos tais slogans ocasionalmente. Não á fácil refutar sua obviedade direta e brutal. O imperativo de Kant é declaradamente irracional.

Mas, felizmente, o fundamento científico desses slogans é decrépito. Nossa compreensão do "devir" (...) dos organismos torna fácil entender que nossa vida consciente - não direi que deverá ser, mas que, de fato, é necessariamente uma luta contínua contra nosso ego primitivo. Pois nosso eu natural, nossa vontade primitiva com seus desejos inatos, é obviamente o correlato mental do legado material recebido de nossos ancestrais. Como espécie, estamos nos desenvolvendo e marchando na linha de frente das gerações; portanto, cada dia da vida de um homem representa uma pequena parte da evolução de nossa espécie, que ainda está em plena ação. É verdade que um único dia de vida de uma pessoa, ou mesmo a vida de qualquer indivíduo como um todo, não é mais que um minúsculo golpe do cinzel numa estátua nunca terminada. Mas a enorme evolução global que sofremos no passado também foi ocasionada por miríades de tais minúsculos entalhes. O material para essa transformação, a pressuposição para sua ocorrência, são, é claro, as mutações espontâneas hereditárias. Contudo, para uma seleção entre elas, o comportamento do portador da mutação, seus hábitos de vida, têm uma enorme importância e uma influência decisiva. De outra forma, a origem das espécies, as tendências ostensivamente direcionadas ao longo das quais caminha a seleção, não poderiam ser compreendidas mesmo nos longos espaços de tempo que, afinal, são limitados e cujos limites conhecemos muito bem.

E assim, a cada passo, a cada dia de nossa vida, por assim dizer, algo da forma que possuíamos até então deverá mudar, ser superado, ser excluído e substituído por algo novo. A resistência de nosso desejo primitivo é o correlato psíquico da resistência da forma já existente ao cinzel da transformação, pois nós mesmos somos o cinzel e a estátua, conquistadores e conquistados ao mesmo tempo - em uma verdadeira e contíua "autoconquista" (...).

Mas não seria absurdo sugerir que esse processo de evolução devesse cair direta e significativamente na consciência, considerando sua morosidade imoderada, não somente em comparação com a curta duração de uma vida individual, mas mesmo com as épocas históricas? Não passaria simplesmente despercebido?

Não. À luz de nossas considerações anteriores, não é assim. Elas culminam na consideração da consciência como algo associado a processos fisiológicos que ainda estão sendo transformados por interação mútua com um ambiente em transformação. Mas ainda, concluímos que só se tornaram conscientes aquelas modificações que ainda estão no estágio de treinamento, até que, num momento bem mais tardio, se transformem numa poesse hereditariamente fixada, bem treinada e inconsciente da espécie. Em resumo: a consciência é um fenômeno da zona de evolução. Este mundo ilumina a si mesmo somente naquele lugar ou somente enquanto se desenvolve, procria novas formas. Pontos de estagnação escapam da consciência; só podem aparecer em sua interação com pontos de evolução.

Se isso for aceito, segue-se que a consciência e a discordância com o próprio eu estão inseparavelmente  vinculadas, mesmo que devessem, por assim dizer, ser proporcionais entre si. Isso parece um paradoxo, mas os mais sábios de todos os tempos e todos os povos testemunharam-no e confirmaram-no. Homens e mulheres para os quais este mundo era iluminado por uma extraordinária e brilhante luz da consciência e que por sua vida e palavra, mais que outros, formaram e transformaram esse trabalho de arte a que denominamos humanidade, testemunharam pelo que disseram ou escreveram, ou mesmo por suas próprias vidas que, mais que outros, sofreram a dor cruciante da contradição íntima. Que isso sirva de consolo àquele que também sofre disso. Sem essa discórdia, jamais algo de permanente foi gerado.

Por favor, não me entendam mal. Sou cientista, não professor de moral. Não entendam com isso que desejo propor a ideia de que nossa espécie se desenvolva rumo a uma meta superior como um motivo eficiente para propagar o código de moral. Isso não seria possível, já que é uma meta não-egoísta, um motivo desinteressado e, portanto, para ser aceito, pressupõe já a virtude. Sinto-me tão incapaz quanto qualquer pessoa para explicar o "dever" do imperativo de Kant. A lei ética, na sua forma geral mais simples (sê altruísta) é claramente um fato, está lá e mesmo a grande maioria daqueles que não a obedecem, frequentemente concorda com ela. Considero sua enigmática existência como um indício de que nosso ser se encontra no início de uma transformação biológica, de uma atitude geral egoísta para uma altruísta, do homem ter como propósito o transformar-se em animal social. Para um egoísmo animal solitário, o egoísmo é uma virtude que tende a preservar e melhorar a espécie; em qualquer tido de comunidade, torna-se um vício destrutivo. Um animal que embarque na formação de sociedades, sem restringir em muito o egoísmo, perecerá. Formadores de sociedades filogeneticamente bem mais antigos, como as abelhas, as formigas e as térmitas, abandonaram completamente o egoísmo. Contudo, no estágio seguinte, o egoísmo nacional, ou simplesmente o nacionalismo, ainda está entre eles em pleno desenvolvimento. Uma abelha operária que, extraviada, vai até a colméia errada, é morta sem hesitação.

No homem, ao que parece, está acontecendo algo que não é infrequente. Acima da primeira modificação, indícios claros de uma segunda numa sentido semelhante são perceptíveis, muito antes que a primeira esteja próxima de ser realizada. Embora ainda sejamos extremamente egoístas, muitos de nós começam a enxergar que também o nacionalismo é um vício do qual é necessário desistir. Aqui, talvez, apareça algo muito estranho. A segunda etapa, a pacificação da luta entre os povos, pode ser facilitada pelo fato de a primeira etapa estar longe de ser concluída, de forma que os motivos egoístas ainda têm um forte apelo. Cada um de nós é ameaçado pelas novas e terríveis armas de agressão, sendo, portanto, induzido a ansiar pela paz entre as nações. Se fôssemos abelhas, formigas ou guerreiros lacedemônios, para quem não existe temor pessoal e covardia é a coisa mais vergonhosa do mundo, a guerra perduraria para sempre. Mas felizmente, somos apenas homens - e covardes.

As considerações e conclusões deste capítulo são, para mim, velhas conhecidas; remontam há mais de trinta anos. Nunca as perdi de vista, mas fiquei com muito medo de que elas pudessem ser rejeitadas com a desculpa de que parecem estar baseadas na "herança de caracteres adquiridos" ou, em outras palavras, no lamarckismo. Não estamos inclinados a aceitar essa visão. Contudo, mesmo rejeitando a herança dos caracteres adquiridos, ou, em outras palavras, aceitando a Teoria da Evolução de Darwin, achamos que o comportamento dos indivíduos de uma espécie tem uma influência muito significativa sobre a tendência da evolução, simulando, dessa forma, uma espécie de falso-lamarckismo. Isso é explicado e estabelecido de forma conclusiva pela autoridade de Julian Huxley (Evolução: A Moderna Síntese) (...), que, contudo foi escrito tendo em vista um problema ligeiramente diferente e não apenas o de emprestar sustentação às ideias explicitadas anteriormente.".

Com isso, digo o seguinte: as escolas são fundamentais para guiar o homem e muito menos importantes no que tange a propósitos políticos. E uma sólida base familiar é não menos importante para preparar o solo onde crescerá a semente que as escolas semearão.