domingo, 23 de setembro de 2018

IED 2018.2 (UMA ORDEM IMAGINADA: MITO)


1) Em 1776 a.C., a Babilônia era a maior cidade do mundo. O mais famoso rei da Babilônia foi Hamurabi. Ele instituiu o Código de Hamurabi, que depois de listar seus julgamentos, expressa: "Essas são as justas leis que Hamurabi, o rei sábio, estabeleceu e, por meio delas, conduziu a terra no caminho da verdade e da retidão [...] eu sou Hamurabi, rei nobre. Não me eximi da minha responsabilidade para com a humanidade, entregue a meus cuidados pelo rei Enlil, e de cuja condução deus Marduk me encarregou."

1.1) O Código de Hamurabi afirma que a ordem social babilônica tem origem em princípios universais e eternos de justiça ditados pelos deuses. O princípio de hierarquia é de suma importância. As futuras gerações prestaram atenção nele.

2) A Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), afirma: "Consideramos estas verdades evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais,  que são dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura de felicidade."

2.1) Como o Código de Hamurabi, o documento fundacional norte-americano promete que, se os humanos agirem de acordo com seus princípios sagrados, milhões deles serão capazes de cooperar de maneira eficaz, vivendo em paz e segurança em uma sociedade justa e próspera. Tanto um como outro, foram documentos de seu tempo e lugar. Os dois textos nos apresentam um dilema óbvio. Tanto o Código de Hamurabi quanto a Declaração de Independência dos Estados Unidos afirmam definir princípios universais e eternos de justiça, mas de acordo com os norte-americanos todas as pessoas são iguais e conforme os babilônios as pessoas são decididamente desiguais. Em que sentido todos os humanos são iguais uns aos outros? Para a biologia, as pessoas não foram "criadas"; elas evoluíram. E certamente não evoluíram para ser "iguais". A ideia de igualdade está intrinsecamente ligada à ideia de criação. A evolução se baseia na diferença, e não na igualdade. Cada pessoa carrega um código genético um pouco diferente e é exposta, desde o nascimento, a diferentes influências ambientais. Isso leva ao desenvolvimento de diferentes qualidades que carregam consigo diferentes chances de sobrevivência. Portanto, "são criados iguais" deveria ser traduzido como "evoluíram de forma diferente". Não existem direitos na biologia. Há apenas órgãos, habilidades e características.

3) A Constituição Brasileira (1988), em seu preâmbulo, expressa: "Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assmbleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das constrovérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL."; " Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distro Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."

3.1) Para CELSO RIBEIRO BASTOS, os preâmbulos têm a função de "facilitar o processo de absorção da Constituição pela comunidade. São palavras pelas quais o constituinte procura fincar a legitimidade do Texto. É um retrato da situação de um momento, o da promulgação da Constituição". Quanto a ser o preâmbulo parte da Constituição, responde o constitucionalista pátrio, sob o ponto de vista normativo e preceptivo, que a resposta somente pode ser negativa, pois, os "dizeres dele constantes não são dotados de força coercitiva". 

O magistério de RIBEIRO BASTOS é no sentido de afirmar que, inobstante, não sendo ato juridicamente irrelevante, tem função auxiliar de interpretação do Texto Constitucional, mas não se pode querer fazer prevalecer um preceito normativo do que dele consta, sobre o que compõe o articulado. O Preâmbulo da Constituição de 1988, nas palavras do autos, quer significar o seguinte: "compõe-se de duas partes: a primeira destinada a firmar a legitimidade formal, e a segunda, por sua vez, é como que compensatória da magreza e do esqueletismo da primeira, elencando objetivos a serem perseguidos pelo Estado brasileiro". 

A conclusão irrefutável é a de que RIBEIRO BASTOS coloca a redação do Preâmbulo da Constituição, como palavras e expressões redundantes, na medida em que são repetidas nos dispositivos constitucionais. Firma sua doutrina pela não força normativa dos preâmbulos constitucionais. Com a devida vênia, pode-se dizer que se trata de doutrina não aconselhável para uma iniciação ao estudo do direito material, pois, com tal posicionamento não recepciona os direitos individuais e fundamentais clássicos existentes no preâmbulo, nem tão pouco reconhece a materialidade dos modernos direitos sociais de caráter coletivo e difuso, ou supra-individual.

O pensamento de MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO reside na premissa da atribuição de uma ausência de força obrigatória do preâmbulo da Constituição Federal de 1988, pois, entende que se trata de um texto destinado a realizar uma indicação dos planos, objetivos e intenções do constituinte. Num estudo constitucional comparativo leciona que, "é inaplicável ao caso brasileiro a doutrina e a jurisprudência francesas que dão força obrigatória ao preâmbulo da Constituição de 1946 e ao da Constituição de 1958. Com efeito, o preâmbulo da Constituição de 1946, em especial, continha normas precisas e não meros princípios. Em conseqüência se podia entender, como se entendeu, que ele traduzisse normas obrigatórias". FERREIRA FILHO esboça a idéia de que o preâmbulo expressa, simplesmente, uma série de afirmações de princípios, que representam e devem ser assim interpretados como um ideal, e não como normas jurídico-constitucionais de aplicação e exigibilidade imediatas.

Na doutrina de JOSÉ CRETELLA JÚNIOR identifica-se um desprezo taxativo pela discussão envolve o preâmbulo constitucional, restringe-se a dissertar sobre a tradicional divisão doutrinária existente quanto a eficácia, o valor, ou a incidência das expressões jurídico-vocabulares lançadas pelos constituintes no preâmbulo. CRETELLA JÚNIOR conforma-se em lecionar que, "dividem-se as colocações em dois grupos distintos, o primeiro, acentuando a importância do Preâmbulo, ressaltando-lhe a relação com dispositivos do texto; o segundo, procurando minimizar a relação entre a peça vestibular e o próprio texto articulado. Na interpretação dos dispositivos constitucionais subseqüentes, os dizeres do Preâmbulo, se for o caso, se esclarecerem ou completarem o texto, devem ser levados em conta, para efeito de interpretação. Como o Preâmbulo é elemento integrante da Constituição, assim que promulgada, não há a menor dúvida de que a ele se deve recorrer, quando surgem problemas de hermenêutica, desde que, nessa peça vestibular ou introdutória, haja princípios que se relacionem de modo direto ou indireto com os dispositivos constitucionais questionados". 
Analisando os direitos: brasileiro e francês, o pensador das Arcadas expressa o entendimento de que na França a discussão tem sua relevância. Mas, no Brasil entende ser a discussão de uma inutilidade atroz. O autor disserta que, "na França, a discussão é importante, porque, por exemplo, nas Constituições de 1946 e 1958, os Preâmbulos, longos, se fundamentam nos princípios das Declarações de Direitos, mas, no Brasil, em que os Preâmbulos equivalem às invocações das epopéias clássicas ("E vós, Tágides minhas, dai-me ..."), não tendo relações com o texto, a não ser acidentais, qualquer polêmica será estéril e acadêmica".  Trata-se de uma doutrina de visão jurídico-material finita e limitada, não compreendendo o momento histórico do Direito como Ciência, e não apenas como sistema de normas. Não consegue enxergar a necessidade irrenunciável do Direito como instrumento provocador da realização sócio-material para os decênios.

Extremamente difícil é realizar uma afirmação quanto ao posicionamento doutrinário de PONTES DE MIRANDA, apesar do pensador alagoano examinar cada expressão usada no preâmbulo da Constituição de 1946, restringe-se a afirmar que eles têm o papel de dizer alguma coisa acerca de "qual o poder estatal, isto é, o poder de construir e reconstruir o Estado". Advertindo, porém, que, ainda quando os preceitos constitucionais aprofundem os traços gerais lançados no preâmbulo, "isso de modo nenhum autoriza a que se ponham de lado, na interpretação dos textos constitucionais, os dizeres do Preâmbulo. Todo Preâmbulo anuncia; não precisa anunciar tudo, nem, anunciando, restringe".  A mesma constatação pode se obter nos comentários à Constituição de 1967. 

Na lição de JOSÉ AFONSO DA SILVA, as normas do Preâmbulo da Constituição – assim como as das disposições transitórias –, são classificadas quanto a sua eficácia, como normas de aplicabilidade da Constituição. Chega, até mesmo, a fazer referência (CARL FRIEDRICH, CARL SCHMITT, VEDEL, GARCIA-PALAYO) às posições a favor da força normativa do preâmbulo constitucional. Para AFONSO DA SILVA, os preâmbulos constitucionais valem como orientação para a interpretação e aplicação das normas constitucionais. Leciona o autor que, "têm, pois, eficácia interpretativa e integrativa; mas, se matem uma declaração de direitos políticos e sociais do homem, valem como regra de princípio programático, pelo menos, sendo que a jurisprudência francesa, como anota LIET-VEAUX, lhes dá valor de lei, uma espécie de lei supletiva". 

O entendimento doutrinário esboçado por DALMO DE ABREU DALLARI acerca do preâmbulo constitucional, quando menciona que é objetivo assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, é no sentido de que "é muito importante notar que o Preâmbulo fala em assegurar o exercício dos direitos, o que tem significação mais concreta do que uma simples declaração dos direitos, sem preocupação com seu exercício". Portanto, define na sua doutrina humanista o ilustre professor das Arcadas que, "o Preâmbulo da atual Constituição brasileira é bem adequado a uma Constituição democrática, segundo as modernas concepções. Ele ressalta que a Constituição foi elaborada por processo democrático, mas acrescenta que a Constituição é um instrumento para a consecução de objetivos fundamentais da pessoa humana e de toda a Humanidade. Um dado final que tem grande importância é que na obra de vários constitucionalistas brasileiros contemporâneos, assim como na jurisprudência, já é referido o Preâmbulo como norma constitucional, de eficácia jurídica plena e condicionante da interpretação e da aplicação das normas constitucionais e de todas as normas que integram o sistema jurídico brasileiro". 

Já na doutrina de MAURÍCIO ANTONIO RIBEIRO LOPES  constata-se que estão consagrados no Preâmbulo da Constituição de 1988, diversos valores fundamentais ou superiores da Constituição. Valores fundamentais estes que não podem ser interpretados como palavras e expressões redundantes, ou vazias, ou mesmo como normas constitucionais programáticas que nunca se realizam. Caso assim fossem, poder-se-iam chamar-se taxativamente de normas programáticas para um futuro inatingível. A lição do representante das Arcadas é no sentido de que o preâmbulo tem natureza jurídica e exigibilidade imediata, detentor de força normativa, norma constitucional exeqüível em si mesma.
A síntese que se pode realizar do ensinamento de RIBEIRO LOPES pode ser assim esboçada numa citação contundente quando afirma que, "os valores incorporados pela Constituição a seu contexto têm, é evidente, a natureza de valores políticos. Políticos na sua proveniência e que se objetivando em normas passaram a ser jurídicos e como tal exigíveis, pois trazem as propriedades de validez e eficácia inerentes a estas. A circunstância de se situarem no plano constitucional – o plano mais elevado do ordenamento jurídico –, que é a sua sede logicamente adequada, impõe a conseqüência da exigibilidade imediata. Não há, por isso, possibilidade lógico-jurídica de fazer depender os seus efeitos de normas de integração como se sustenta às vezes, ora na doutrina, ora no campo da jurisprudência dos tribunais". 

4) Os pássaros voam não porque têm o direito de voar, mas porque têm asas. E não é verdade que esses órgãos, habilidades e características são "inalienáveis", Muitos deles passam por mutações constantes e podem muito bem se perder completamente com o tempo. O avestruz é uma ave que perdeu a capacidade de voar. Portanto, "direitos inalienáveis" deveria ser traduzido como "características mutáveis". E quais são as características que evoluíram nos humanos? "Vida", certamente. Mas "liberdade"? Isso não existe na biologia. Assim como igualdade, direitos e empresas de responsabilidade limitada, a liberdade é algo que as pessoas inventaram e que só existe em nossa imaginação. De uma perspectiva biológica, não faz sentido dizer que os humanos em sociedades democráticas são livres, ao passo que os humanos em sociedades ditatoriais não o são. E quanto a "felicidade"? Até o momento as pesquisas biológicas foram incapazes de propor uma definição clara de felicidade ou uma maneira de medi-la objetivamente. A maioria dos estudos biológicos reconhece apenas a existência de prazer, que é mais facilmente definido e medido. Portanto, "a vida, a liberdade e a procura da felicidade" deveria ser traduzido como "a vida e a procura de prazer".  Os defensores da igualdade e dos direitos humanos talvez fiquem escandalizados com essa linha de raciocínio. Sua reação provavelmente será: "Nós sabemos que as pessoas não são iguais biologicamente! Mas se acreditarmos que somos todos iguais em essência, isso nos permitirá criar uma sociedade estável e próspera". Não se deve desenvolver nenhum argumento contra isso. É exatamente o que pode dizer com "ordem imaginada". 

5) Convém observar que o Direito não existe senão para regular o convívio, isto é, para regular relações intersubjetivas ou impessoais. Assim, têm-se duas ideias correlatas: a de Direito, como conjunto de normas jurídicas e a de relação jurídica, como relação interpessoal por ele regulada. Que seu objeto é o Direito positivo (ou direito posto), mas considerado o Direito positivo de um Estado determinado, num dado momento histórico-cultural, ou como direito em certo ponto do espaço-tempo, com suas peculiaridades histórico-sócio-culturais. Que o Direito-objeto, além de estudado e descrito pela ciência, é normativo. Já a ciência que o estuda e descreve, no entanto, não é normativa, porém descritiva, como ensina o jurista Eros Roberto Grau. E denomina-se a parte teórica de sistemática jurídica, enquanto à prática empresta-se a denominação de técnica jurídica.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

UMA BREVE HISTÓRIA DO PENSAMENTO JURÍDICO


Segundo Alysson Leandro Mascaro (Introdução ao Estudo do Direito, 3ª edição, São Paulo, Atlas, 2012, p. 1/2): "A primeira dificuldade para delimitar o conceito de direito reside no fato de que, em geral, o jurista quer partir de suas próprias definições e de ideias abstratas e vagas para, apenas depois, encontrar uma realidade que se adapte às suas teorias. Mas o procedimento deve ser justamente o contrário. É preciso investigar fenômenos concretos e, a partir deles, alcançar uma concepção teórica posterior. 
Para entendermos o fenômeno jurídico, é preciso, acima de tudo, utilizar-se da ferramenta da história. Sem ela, as definições sobre o direito serão vagas e sem lastro concreto.
Durante muito tempo, chamou-se por direito aquilo que hoje chamaríamos por religião, ou mesmo por política. Quem dirá que os Dez Mandamentos da Bíblia são um monumento jurídico? Mas quem poderá dizer que são um conjunto de normas só religiosas e não jurídicas? Na verdade, em sociedades do passado, como a hebreia, não há algo que especificamente seja chamado por direito e que seja totalmente distinto da religião, por exemplo.
Somente quando se chegou aos tempos modernos - quando começou a separação teórica entre direito, política e religião, por exemplo - é que foi possível entender que não houve, naqueles tempos passados, um direito tomado de modo específico.
Mas essa indistinção dos tempos passados não foi algo que aconteceu apenas com o direito. Entre a moral e a religião também se deu o mesmo. O iluminismo, um movimento filosófico do século XVIII, demonstrou que seria possível compreender a moral independentemente da religião. Para os iluministas, poderia haver uma moral racional válida para todos os homens, universal e superior, independente da religião de cada qual. Mas para os povos do passado essa separação seria muito dificil. Moral e religião estavam misturadas. Só os tempos modernos, devido a certas condições e estruturas sociais, como a organização capitalista, deram especificidade à religião, à moral, à política, à economia e também ao direito.
Assim sendo, é o presente que nos ajuda a entender as dificuldades do passado. Se hoje o jurista considera o direito a partir das normas jurídicas estatais, com uma série de ferramentas, temas e consequências próprias, no passado tudo isso poderia ser objeto da religião, sem que houvesse uma definição dos campos específicos.
Comparado ao passado, o direito ganha especificidade apenas no capitalismo, a partir da Idade Moderna. Se no passado o direito era inespecífico, misturado à moral e à religião, no presente ele se revela como algo distinto, um fenômeno singularizado. Mas, mesmo assim, a questão ainda permanece, posta agora em outro, patamar, mais profundo. Se é somente nos tempos modernos que o direito passa a ser um fenômeno específico, então o que identifica em si o direito de nosso tempo, a fim de que seja distinguido de todos os demais fenômenos sociais?
Resposta: A qualidade de direito.
Propugnemos um entendimento do direito a partir da soma de duas perspectivas de identificação. É preciso compreender as coisas que são quantitativamente jurídicas e aquilo que qualitativamente as torna como tais; O direito cobre muitos assuntos - homicídio, roubo, compra e venda, tributos, proteção ao trabalhador. Mas, além de se referir a muitos temas, o direito lida de modo específico com esses próprios temas. Por isso, é a qualidade de direito o grande identificador do fenômeno jurídico moderno. Quando se diz que o manejo do solo pode ser um tema jurídico, isso não quer dizer que a agricultura tenha que ser necessariamente regulada juridicamente. O direito, se também chega às questões agrícolas, o faz por vias distintas daquelas que são as tradicionais de um agrônomo.
Como muitas coisas podem ser jurídicas - a propriedade, as relações de trabalho, a atividade mercantil, os costumes, a educação, a legislação aérea, a previdência social, o direito administrativo -, não é pelo assunto de que trata o direito que se o identifica. Se muitos assuntos podem ou não podem ser considerados jurídicos, o passo científico mais decisivo para compreender o direito não é, então, entender quais temas são jurídicos (a sua identificação quantitativa), mas, sim, quais mecanismos e estruturas dão especificidade ao direito perante qualquer assunto (a sua identificação qualitativa).
A religião pode falar sobre tudo, disciplinar muitas condutas. O direito pode também legislar sobre as mesmas condutas. Mas o direito procede de um modo e a religião de outro. São estruturas distintas, que se relacionam diferentemente com os objetos. Não são objetos nem temas específicos que identificam o direito, e sim determinados tipos de relação desses objetos e temas com outras certas situações sociais. Todos os assuntos podem ser jurídicos quando haja estruturas jurídicas que os qualifiquem.
No passado, não havia uma qualificação dos assuntos como estritamente jurídicos ou religiosos, porque seus mandos se intercambiavam e se confundiam. Somente num certo tempo histórico essa especificidade apareceu, a partir de determinadas relações sociais e econômicas. Nesse momento, deu-se a transformação qualitativa do fenêomeno jurídico. Tal transformação se deu com o capitalismo. Como este modo de produção apareceu apenas muito modernamente, pode-se dizer que os instrumentos do direito apenas nos tempos mais próximos da história ganharam especificidade. Ao se ver a inespecificidade do direito nos modos de produção do passado, resta clara a ligação específica que há entre o direito e o capitalismo.
Em modos de produção primitivos, pré-capitalistas, o direito era muito similar a uma ação ocasional, artesanal. Davam-se soluções para casos quaisquer de acordo com o poder, a força e as habilidades individuais daquele que mandava, e tais soluções não se repetiam em outros casos parecidos. No capitalismo o procedimento é diverso. O comércio, a exploração do trabalho mediante salário, a mercantilização das relações sociais, tudo iddo deu margem a um tratamento do direito como uma esfera social específica, eminentemente técnica, independente da vontade ocasional das partes ou do julgador.
Com o capitalismo, o direito passa a ocupar específico no todo da vida social. Essa instância jurídica é o local no qual um ente aparentemente distante de todos os indivíduos, o Estado, se institucionaliza e passa a regular uma pluralidade de comportamentos, atos e relações sociais.
No escravagismo e no feudalismo, que são anteriores ao capitalismo, não há especificamente uma instância jurídica. Não há uma qualidade de relações que seja só jurídica em meio ao todo da vida social. A religião ordena, regula e manda, e da mesma maneira o rei, o senhor feudal ou o senhor de escravo. Se pensássemos que a totalidade das relações sociais fosse um edifício de vários andares, não há um andar específico para o direito. No capitalismo, passa a havê-lo. E, no edifício das relações sociais capitalistas, o direito é o andar mais próximo e contíguo ao pavimento do Estado.
É possível afirmar, então, que passa a haver uma específica manifestação social que se identifica como direito a partir do capitalismo. E esse fenômeno jurídico é tão peculiar ao capitalismo que aquilo que se chamar como direito pré-capitalista tarnar-se-á praticamente irreconhecível em face do atual direito. Quando com os olhos de juristas de hoje olhamos o direito da Bíblia, por exemplo, não o reconhecemos como tendo a mesma estrutura jurídica presente. De fato, ele é outro, diretamente misturado com a religião, e o nosso moderno, capitalista, não.
Essa transformação histórica qualitativa, que é oriunda dos movimentos mais básicos da atividade capitalista, foi a responsável pela especificidade do direito em face dos demais fenômenos sociais. É o capitalismo que dá ao direito a condição de fenômeno distinto do mando do senhor feudal, do mando da igreja, da crença em ordens sagradas. O capitalismo dá especificidade ao direito.
No capitalismo, inaugura-se um mundo de instituições que sustentam práticas específicas de explorações. A célula mínima de tais estruturas de exploração é a mercadoria. Uns vendem e outros compram. A transação comercial somente se sustenta se comprador e vendedor forem considerados sujeitos de direito, isto é, pessoas capazes de se vincularem por meio de um contrato no qual trocam direitos e deveres. A mercadoria acarreta determinados institutos reputados estritamente por jurídicos. Não é a religião nem a moral que os sustenta. Daí surge especificamente o direito. Seus institutos são resultantes diretos das transações mercantis, porque a garantem. Entender o direito a partir do movimento mais simples deo capitalismo - as trocas mercantis - é captar o ponto que dá a qualificação específica ao direito moderno.".
Para Stéphane Rials, "Michel Villey (A Formação do Pensamento Jurídico Moderno, 2ª ed. Martins Fontes, 2009, p. XVV), aponta com frequência o jogo dos interesses de classe. [...] A passagem do "feudalismo" (...) para o "capitalismo" (...) talvez atraia menos sua atenção que o declínio da classe cultural clerical (...) e o desenvolvimento - decerto vinculado à modificação das relações econômicas - de uma classe cultural laica. (...) "Cabe-nos, portanto, consderar esse novo mundo cultural que o século XVI suscitou, portador de uma nova concepção da filosofia e do direito. Por que tão nova? Podemos responder que ele nasce de uma nova classe social. Não mais do clero [...]. Doravante, a conjuntura econômico-política permite que os burgueses enriquecidos e alguns nobres libertos de sua antiga tarefa militar constituam um outro tipo de elite culta.
E o resultado da pesquisa de Yuval Noah Harari (Uma Breve História da Humanidade, 30 ed., Porto Alegre-RS, L&PM, 2017), mais profunda, nos informa que: "Por volta de 10.000 a.C., antes da transição para a agricultura, a Terra era o lar de 5 a 8 milhões de caçadores-coletores nômades. No século I, restavam apenas de l a 2 milhoões de caçadores-coletores (principalmente na Austrália, na América e na África), mas os 250 milhões de agricultores no mundo fizeram com que esse número continuasse diminuindo.
A grande maioria dos agricultores vivia em assentamentos permanentes; apenas alguns eram pastores nômades. Os assentamentos permanentes faziam com que o terreno da maioria dos povos fosse drasticamente reduzido. [...].
Enquanto o espaço agrícola se reduziu, o tempo agrícola se expandiu. Os caçadores-coletores normalmente não perdiam muito tempo pensando no mês ou no verão seguinte. Os agricultores viajavam, em sua imaginação, anos e décadas no futuro.
Os caçadores-coletores desconsideravam o futuro porque viviam do que havia disponível e somente com dificuldade conseguiam conservar alimentos ou acumular bens. É claro que eles faziam alguns planos. [...] As alianças sociais e as rivalidades políticas eram negócios de longo prazo. Muitas vezes se levava anos para retribuir um favor ou vingar uma ofensa. No entanto, na economia de subsistência da caça e da coleta, havia um limite óbvio a tal planejamento de longo prazo. Paradoxalmente, isso poupava os caçadores-coletores de muitas ansiedades. Não fazia sentido se preocupar com coisas que eles não podiam controlar. [...].
Em consequência, desde o advento da agricultura as preocupações com o futuro se tornaram atores importantes no teatro da mente humana. 
O estresse representado pela agricultura teve consequências importantes. Foi a base dos sistemas políticos e sociais de grande escala. Infelizmente, mesmo trabalhando duro, os camponeses quase nunca alcançaram a segurança econômica futura que tanto ansiavam. Em toda parte, brotaram governantes e elites, vivendo do excedente dos camponeses e deixando-os com o mínimo para a sobrevivência. 
Esses excedentes de alimento confiscados alimentaram a política, a guerra, a arte e a filosofia. Construíram palácios, fortes, monumentos e templos. Até o fim da era moderna, mais de 90% dos humanos eram camponeses que se levantavam todas as manhãs para trabalhar a terra com o suor da fronte. Os excedentes que produziam alimentavam a ínfima minoria das elites - reis, oficiais do governo, soldados, padres, artistas e pensadores -, que enchem os livros de história. A história é o que algumas poucas pessoas fizeram enquanto todas as outras estavam arando campos e carregando baldes de água. [...].
O punhado de milênios separando a Revolução Agrícola do surgimento de cidades, reinos e impérios não foi tempo suficiente para possibilitar o desenvolvimento de um instinto de cooperação em massa. [...].
Os mitos, como se veio a saber, são mais influentes do que qualquer um poderia ter imaginado. Quando a Revolução Agrícola criou oportunidades para a criação de cidades populosas e impérios poderosos, as pessoas inventaram histórias sobre grandes deuses, pátrias-mães e empresas de capital aberto para fornecer os elos sociais necessários. Enquanto a evolução humana estava rastejando no seu usual ritmo de tartaruga, a imaginação humana estava construindo redes impressionantes de cooperação em massa, diferentes de qualquer outra já vista. 
Por volta de 8.500 a.C., os maiores assentamentos do mundo eram vilarejos como Jericó e outros. Em 3.100 a.C, todo o vale do baixo Nilo estava unido no primeiro reino egípcio. Por volta de 2.250 a.C., Sargão, o Grande, construiu o primeiro império, o Acadino. Entre 1.000 e 500 a.C., apareceram os primeiros megaimpérios no Oriente Médio: o Império Assírio, o Império Babilônico e o Império Persa. Eles governavam muitos milhões de súditos e comandavam dezenas de milhares de soldados. [...].
Todas essas redes de cooperação - das cidades da antiga Mesopotâmia aos impérios Qin e Romano - foram "ordens imaginadas". As normas sociais que as sustentavam não se baseavam em instintos arraigados nem em relações pessoais, e sim na crença em mitos partilhados.
Como os mitos podem sustentar impérios inteiros? Examinemos dois dos mitos mais conhecidos da história: o Código de Hamurabi, de aproximadamente 1.776 a.C., que serviu como um manual de cooperação para centenas de milhares de babilônicos na Antiguidade, pois o mais famoso rei babilônico chamava-se Hamurabi, sua fama se deve principalmente ao texto que recebe seu nome: o Código de Hamurabi. Este foi uma coleção de de leis e decisões judiciais cujo objetivo era apresentar Hamurabi como modelo de rei justo, servir de base para um sistema juridico mais uniforme em todo o Império Babilônico e ensinar às gerações futuras o que é justiça e como age um rei justo. As gerações futuras prestaram atenção. A elite intelectual e burocrática da antiga Mesopotâmia canonizou o texto, e escribas aprendizes continuaram a copiá-lo muito depois de Hamurabi morrer e de seu império cair em ruina. O código de Hamurabi é, portanto uma boa fonte para entender o antigo ideal de ordem social dos mesopotâmios; e a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776, que ainda serve como um manual de cooperação para centenas de milhões de norte-americanos.". Eis aí uma breve narrativa a respeito da formação do pensamento jurídico que atualmente estamos aprimorando.