quinta-feira, 26 de abril de 2018

Advocacia greenfield: desafios do jovem advogado


Escrito por Cylmar Pitelli Teixeira Fortes
O sucesso profissional na advocacia não depende apenas de méritos técnicos, mas também de seu carisma e relacionamentos.
Convida-nos o JOTA a escrever algumas linhas sobre os desafios que se colocam para o jovem profissional da advocacia que pretende aventurar-se como profissional liberal, iniciando seu próprio escritório, como o fizemos há cerca de 30 anos.
Para decidir o que realmente se pretende da vida profissional é preciso basicamente duas coisas: autoconhecimento e noção acurada das opções disponíveis dentro da carreira que escolhemos. Faz todo sentido, portanto, seja para o advogado, seja para qualquer outro profissional, pesquisar características das atividades passíveis de serem seguidas antes de se decidir por uma delas.
A aplicação do aforismo socrático “conhece a ti mesmo”, pari passu com o conhecimento das principais características da carreira específica que se cogita seguir, tende a facilitar a compatibilização dos anseios pessoais com o trabalho, e portanto o atingimento da satisfação profissional.
Excetuadas as carreiras públicas, que dependem de concurso, as opções mais comuns no setor privado colocam o advogado, usualmente, (i) a serviço de uma atividade empresária ou organização diversa, como subordinado; ou (ii) engajado num escritório de advocacia já estabelecido; ou ainda (iii) como um profissional liberal, alvo de nossas considerações.
A carreira puramente acadêmica, de outro lado, não se confunde com a advocacia, mas nada impede que o advogado atue profissionalmente no ambiente acadêmico ao mesmo tempo em que advoga, o que é bastante comum.
Tendo esse recorte tripartite em mente, uma boa maneira para o advogado aferir sua melhor vocação passa pelo cotejo das características que tangenciam a profissão em cada uma daquelas áreas. As distinções e semelhanças são inúmeras, mas podemos pinçar algumas delas com esse objetivo, quiçá incitando o leitor a outras reflexões.
Como em qualquer carreira, o sucesso profissional na advocacia não depende apenas de méritos técnicos e boa bagagem acadêmica –obviamente fundamentais. A experiência de começar um escritório de advocacia em 1990 difere sobremaneira do que seria fazê-lo agora, em 2018.
A tecnologia evoluiu muito desde os tempos em que começamos, lá atrás, com nosso Apple TK300 iiE e seus floopy drives – aliás como pioneiros na aplicação da informática na advocacia, num tempo em que predominavam as máquinas de escrever. Muitas outras coisas, entretanto, não mudaram desde então, e dificilmente mudarão.
Costumamos dizer que o advogado que começa um escritório próprio não dispõe das mesmas “camadas de proteção” do profissional que inicia sua vida em uma empresa ou dentro de um escritório de advocacia. Claro que isso não o torna melhor nem pior: estar engajado a uma estrutura em que seu trabalho é uma parte de algo maior, ou ser o único profissional envolvido em todas as etapas da advocacia, são apenas características distintivas na carreira.
O sucesso de um profissional liberal dependerá de seu carisma e da amplitude de seus relacionamentos pessoais em maior intensidade em comparação aos colegas integrados a uma organização ou engajados num escritório estabelecido. Dependerá, também, de sua disposição para empreender, o que vai muito além daquilo que se aprende nos bancos da faculdade. O foco do advogado contratado nas outras duas posições é claramente diverso.
Em qualquer área que atue, o advogado é um prestador de serviços, alguém que, por meio de seu conhecimento e habilidades, entrega um benefício a outrem. Para prestar serviços, ele tem que estar disponível. Seja em uma empresa ou num escritório, o conceito de disponibilidade permanece ligado à presença física. Um profissional liberal, por isso, precisará de um endereço, não importa o quanto possam ajudar um smartphone e uma boa conexão à internet.
Tampouco um perfil profissional nas redes sociais, por mais sério que seja, será capaz de certificar satisfatoriamente sua existência no mundo profissional. Ou seja, estar disponível, conectado e ser fisicamente localizável, são requisitos para qualquer advogado, mas só um “greenfielder”[1] deverá preocupar-se com infraestrutura física e os correspondentes (e temíveis) custos fixos. Ele precisa sopesar essa característica em sua decisão. O desafio é conhecido.
O profissional liberal, hoje, precisará também estar minimamente preparado para lidar com as questões de tecnologia que condicionam seu trabalho – infraestrutura, software de gestão, armazenamento e gerenciamento eletrônico de documentos – melhores métodos para procurar e selecionar auxiliares, asseio e conservação de seu espaço, dentre outras coisas, sem se olvidar das tarefas próprias da profissão e os estudos, núcleo e parte mais importante de seu trabalho, se quiser prosperar. Já o advogado contratado não terá estas preocupações.
Numa empresa ou organização, o cliente do advogado é seu próprio empregador. Num escritório estabelecido, o jovem advogado conta com a experiência (e os filtros) de seus colegas, além do apoio administrativo, proporcional ao tamanho da estrutura, no trato com os clientes. Grandes organizações, normalmente, não contratam advogados emergentes, pois preferem o porto seguro de um escritório consolidado e com mais experiência, generalista ou específica. No mundo corporativo, apenas empresários seguros, entesourados e confiantes, contratarão um profissional ou escritório emergente – e ainda, se o conhecerem e à sua capacidade para entregar o que dele se espera.
Contudo, isso não é um sinal de pouco trabalho para o jovem profissional liberal. Além do universo de pessoas físicas que precisam de um advogado pelas mais variadas razões, as micro e pequenas empresas respondem, no comércio, por cerca de 96% da atividade, 30% do faturamento e 53,5% dos empregos, com 1.647 mil empresas mercantis no país, para ficarmos em apenas em alguns dados.[2] Mas pode, sim, significar necessidade de lidar com questões mais prosaicas ordinariamente. A seletividade das áreas de trabalho encontrará limites objetivos no nível da procura nas áreas em que o advogado tem mais satisfação de atuar.
Advogados costumam dizer que fogem de consultas em festas e eventos sociais. Dependendo de como esteja sua demanda no escritório, por outro lado, o jovem advogado bem sucedido pode até preferir organizar uma fila e salvar seu tempo ali mesmo…
Numa empresa ou organização, a especialidade do advogado liga-se, em essência, ao negócio do empregador; num escritório estabelecido, regra geral, e exceção feita às chamadas boutiques jurídicas (pequenas firmas altamente especializadas em áreas específicas do Direito, e assim reconhecidas pelo público), quanto maior for a estrutura, maior será o nível de especialização do advogado; menor a estrutura, maior a atuação generalista – também presente nas grandes estruturas, mas no nível da coordenação do serviço jurídico. Lembro-me de que à época do bloqueio dos Cruzados Novos pelo Governo Collor, cheguei a ver o aviso de um advogado que se dizia especialista em Agravo de Instrumento…
Para o profissional liberal, é também sempre importante considerar as portas que se abrem com cada oportunidade de trabalho, com respeito a futuras experiências profissionais. A possibilidade de ostentar o rótulo de quem fez aquele trabalho em particular, isto é, o ganho em expertise, pode ser muito relevante. Alguns trabalhos, de tão interessantes, podem ser encarados como “propaganda remunerada”.
Finalmente, qualquer que seja o caminho que seguirmos, nós advogados lidaremos, essencialmente, com a liberdade e o patrimônio de nossos clientes. Por isso, é preciso entender que nos relacionaremos sempre com lados muito particulares de suas vidas, onde a tensão é algo usual e normal. Uma advocacia que se quer bem-sucedida, requer, em primeiro lugar, a sensibilidade para percebermos essa realidade na formação dos relacionamentos.
Juízos pautados em possível falta de reconhecimento ou generosidade, por parte de nossos clientes, são particularmente delicados. O jovem profissional deve preferir sempre a objetividade, especialmente ao fixar o valor de seus serviços, não deve esperar nada além do combinado, para não ceder espaços à frustração, nem jamais transigir com a ética, manchando sua reputação para sempre.
Feita a escolha, é persistir! Boa sorte!
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[1] O termo greenfield é largamente utilizado nas empresas para designar projetos novos, que começam do zero. A opção pelo masculino da advocacia é meramente redacional; o conteúdo deste pequeno artigo obviamente não distingue o jovem advogado da jovem advogada.
[2] Pesquisa feita com base na Pesquisa Anual do Comércio (PAC), divulgada em agosto de 2016 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Cylmar Pitelli Teixeira Fortes – Sócio do Teixeira Fortes Advogados, é mestre em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo

domingo, 22 de abril de 2018

IED - UNIDADE V a VI (Continuação: Princípio da Legalidade e Isonomia)


 O PRINCIPIO DA LEGALIDADE NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (por Itamar Alves Rodrigues Junior).
Os princípios são regras que servem de interpretação das demais normas jurídicas, apontando os caminhos que devem ser seguidos pelos aplicadores da lei. Os princípios procuram eliminar lacunas, oferecendo coerência e harmonia para o ordenamento jurídico.
O princípio da legalidade representa uma garantia para os administrados, pois, qualquer ato da Administração Pública somente terá validade se respaldado em lei, em sua acepção ampla. Representa um limite para a atuação do Estado, visando à proteção do administrador em relação ao abuso de poder.
O princípio da Legalidade encontra-se expressamente disposto em nossa Constituição Federal nos seguintes artigos:
Art 5°- Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
Art. 37 - A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte. Enquanto no art. 5º, II, CF, temos o Princípio da Legalidade disposto sob a ótica individual, determinando que o Poder Público, para determinar o que se poderá e o que não se poderá fazer, deve elaborar leis, o que nos garante uma maior segurança jurídica; temos no Art. 37 de nossa Carta Magna, o Princípio da Legalidade sob a ótica da Administração Pública, ao estabelecer que administrador público só poderá agir dentro daquilo que é previsto e autorizado por lei.
O Princípio da legalidade aparece simultaneamente como um limite e como uma garantia, pois ao mesmo tempo em que é um limite a atuação do Poder Público, visto que este só poderá atuar com base na lei, também é uma garantia aos administrados, visto que só deveremos cumprir as exigências do Estado se estiverem previstas na lei. Se as exigências não estiverem de acordo com a lei serão inválidas e, portanto, estarão sujeitas a um controle do Poder Judiciário. Segundo o princípio da legalidade, o administrador não pode fazer o que bem entender na busca do interesse público, ou seja, tem que agir segundo a lei, só podendo fazer aquilo que a lei expressamente autoriza e no silêncio da lei está proibido de agir. Já o administrado pode fazer tudo aquilo que a lei não proíbe e o que silencia a respeito. Portanto, tem uma maior liberdade do que o administrador.
Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo Brasileiro. 30. Ed. São Paulo: Malheiros,2005.) define: “A legalidade, como princípio de administração (CF, art. 37, caput), significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso”.
Diógenes Gasparini (Direito Administrativo. 6. Ed. São Paulo: Saraiva,2001) define: “O princípio da legalidade significa estar a Administração Pública, em toda a sua atividade, presa aos mandamentos da lei, deles não se podendo afastar, sob pena de invalidade do ato e responsabilidade de seu autor. Qualquer ação estatal sem o correspondente calço legal, ou que exceda ao âmbito demarcado pela lei, é injurídica e expõe-se a anulação. Seu campo de ação, como se vê, é bem menor que o do particular.
Na Administração Pública, não há espaço para liberdades e vontades particulares, deve, o agente público, sempre agir com a finalidade de atingir o bem comum, os interesses públicos, e sempre segundo àquilo que a lei lhe impõe, só podendo agir “secundum legem”. Enquanto no campo das relações entre particulares é lícito fazer tudo o que a lei não proíbe (princípio da autonomia da vontade), na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei define até onde o administrador público poderá atuar de forma lícita, sem cometer ilegalidades, define como ele deve agir.
 José dos Santos Carvalho Filho (Manual de Direito Administrativo. 22. Ed. Rio de Janeiro: Lu) define: “O princípio da legalidade é certamente a diretriz básica da conduta dos agentes da Administração. Significa que toda e qualquer atividade administrativa deve ser autorizada por lei. Não o sendo, a atividade é lícita. Tal postulado, consagrado após séculos de evolução política, tem por origem mais próxima a criação do Estado de Direito, ou seja, do Estado que deve respeitar as próprias leis que edita”.

A DIFERENCIAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE NO QUE TANGE AO PODER PÚBLICO E AO PARTICULAR

O artigo 5º da Constituição Federal reza: “Ninguém será obrigado a fazer ou não fazer nada senão em virtude de lei”. Neste inciso fica evidente que as pessoas não são obrigadas a submeter-se a determinadas situações se não constar de lei, sendo que só há definitivamente uma obrigação de fazer ou não fazer algo se constar de norma jurídica devidamente tipificada.
Já no que tange ao artigo 37, “caput” da Constituição Federal dita que: “A administração pública direta ou indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.
E, por fim a nossa Carta Magna traz em si referência ao princípio da legalidade em seu artigo 84, inciso IV que diz: “Compete exclusivamente ao Presidente da República: (...) sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”.
O princípio da legalidade significa a submissão e o respeito da lei, ou a atuação dentro da esfera estabelecida pelo legislador.
O princípio da legalidade traz em si a ideia de que há uma diferença entre a legalidade pública e a legalidade do particular, já que o particular é livre para agir como bem entender desde que a lei não o proíba, já o poder público não possui esta liberdade para agir, estando sempre vinculado com o bem comum e aos mandamentos da lei, e deles não pode se desviar ou afastar, sob pena de praticar ato inválido (a invalidação do ato é o desfazimento do mesmo por razões de ilegalidade).
Segundo Hely Lopes Meirelles, “na administração pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto no âmbito particular é lícito fazer tudo o que a lei não proíbe, na administração pública só é permitido fazer o que a lei autoriza”.
José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª edição. 1993. PP. 376) conceitua o princípio da legalidade na esfera administrativa pública como sendo:  ”uma nota essencial do estado de Direito. É, também, por conseguinte, um princípio basilar do estado Democrático de Direito, porquanto é da essência do seu conceito subordina-se a Constituição e fundar-se na legalidade democrática. Sujeita-se o império da lei, mas da lei que realize o princípio da legalidade e da justiça não pela sua generalidade, mas pela buscada igualização das condições dos socialmente desiguais e é neste sentido que o princípio está consagrado no artigo 5º, inciso II da Constituição Federal como já visto acima que segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer nada senão em virtude de lei”.
A expressão em “virtude de lei” utilizada no artigo 5º, inciso II da Constituição Federal, o significado da palavra lei, é a lei formal, ou seja, é o ato administrativo emanado dos órgãos de representação popular e elaborado nas conformidades dos artigos 59 e 60 da Constituição Federal.
Há princípios constitucionais complementares ao princípio da legalidade que é o princípio da irretroatividade das leis, já que no sistema judiciário brasileiro é proibida a retroatividade das leis, pois estas alcançariam períodos não regidos por normas legais ou fatos não sujeitos a ditames legais e trariam por si só uma instabilidade só próprio direito e a justiça.
E por fim o princípio da finalidade, que não é decorrente do princípio da legalidade, e sim é mais que isso, é uma inerência dele e nele está contido, pois corresponde a aplicação da lei para o qual é, ou seja, na conformidade de sua razão de ser, do objetivo em vista do qual foi editada.
Enfim, é por este princípio constitucional da legalidade que se permite que ao particular seja concedido o privilégio de poder fazer tudo quanto não estiver proibido e ao administrador só lhe é permitido fazer o que estiver determinado expressamente na lei (em sentido amplo) e não há liberdade desmedida ou que não esteja expressamente concedida. Toda a atuação administrativa vincula-se a tal princípio, sendo que deste princípio decorre a proibição de, sem lei que permite a Administração Pública vir a, por mera manifestação unilateral de vontade, declarar, conceder, restringir direitos ou impor obrigações.
Ficou evidente, que o princípio da Legalidade, ao limitar a atuação da Administração Pública naquilo que é permitido por lei e direito, de acordo com os meios e formas que por ela estabelecidos e segundo os interesses públicos, confere ao Estado um caráter democrático, traduzindo-se numa expressão de direito, revelando-se um elemento de garantia e segurança jurídicas. A legalidade não se subsume apenas à observância da lei, mas sim a todo o sistema jurídico, ou ao Direito.

TRÊS ABORDAGENS DA JUSTIÇA

Para saber se uma sociedade é justa, basta perguntar como ela distribui as coisas que valoriza – renda e riqueza, deveres e direitos, poderes e oportunidades, cargos e honrarias. Uma sociedade justa distribui esses bens da maneira correta; ela dá a cada indivíduo o que lhe é devido. As perguntas difíceis começam q1uando indagamos o que é devido às pessoas e por quê. Já começamos a ter dificuldades com essas questões. Ao refletir sobre o certo e o errado, identificamos três maneiras de abordar a distribuição de bens: a que leva em consideração o bem-estar, a que aborda a questão pela perspectiva da liberdade e a que se baseia no conceito de virtude. Cada um desses ideais sugere uma forma diferente de pensar sobre a justiça.
Algumas das nossas discussões refletem o desacordo sobre o que significa maximizar o bem-estar, respeitar a liberdade ou cultivar a virtude. Outras envolvem o desacordo sobre o que fazer quando há um conflito entre esses ideais. A filosofia política não pode solucionar discordâncias desse tipo definitivamente, mas pode dar forma aos nossos argumentos e trazer clareza moral para as alternativas com as quais nos confrontamos como cidadãos democráticos.
Mesmo assim, é possível explorar os pontos fortes e fracos dessas três maneiras de pensar sobre a justiça. Começamos com a ideia de maximizar o bem-estar. Para sociedades de mercado como a nossa, é um ponto de partida natural. Grande parte dos debates políticos contemporâneos é sobre como promover a prosperidade, melhorar nosso padrão de vida, ou impulsionar o crescimento econômico. Por que nos importamos com essas coisas? A resposta mais óbvia é: porque achamos que a prosperidade nos torna mais felizes do que seríamos sem ela – como indivíduos ou como sociedade. A prosperidade é importante, em outras palavras, porque contribui para o nosso bem-estar. Para explorar essa ideia, voltamo-nos para o utilitarismo, a mais influente explicação do “porquê” e do “como” maximizar o bem-estar ou (como definem o utilitarista) procurar a máxima felicidade para o maior número de pessoas.
Em seguida, abordamos uma série de teorias que ligam a justiça à liberdade. A maioria enfatiza o respeito aos direitos individuais, embora discordem entre si sobre quais direitos são considerados os mais importantes. A ideia de que justiça significa respeitar a liberdade e os direitos individuais é, no mínimo, tão familiar na política contemporânea quanto a ideia utilitarista de maximizar o bem-estar. Por exemplo, a Declaração de Direitos dos Estados Unidos e a nossa Constituição também estabelecem determinadas liberdades – incluindo a liberdade de expressão e a liberdade religiosa – que nem mesmo as maiorias têm o direito de violar. E, por todo o mundo, a ideia de que justiça significa respeitar certos direitos humanos universais vem sendo cada vez mais abraçada (na teoria, ainda que nem sempre na prática).
A abordagem de justiça que começa pela liberdade é uma ampla escola. Na verdade, algumas das mais calorosas disputas políticas de nossa época ocorrem entre dois campos rivais dentro dela – o do laissez-faire e o da equanimidade. Liderando o campo laissez-faire estão os libertários do livre mercado que acreditam que a justiça consiste em respeitar e preservar as escolhas feitas por adultos conscientes. No campo da equanimidade estão teóricos de tendência mais igualitária. Eles argumentam que mercados sem restrições não são justos nem livres. De acordo com esse ponto de vista, a justiça requer diretrizes que corrijam as desvantagens sociais e econômicas e que deem a todos oportunidades justas de sucesso.
Por fim, voltam-nos para as teorias que veem a justiça intimamente associada à virtude e a uma vida boa. Na política contemporânea, teorias baseadas na virtude são frequentemente identificadas com os conservadores culturais e a direita religiosa. A ideia de legislar sobre a moralidade é um anátema para muitos cidadãos de sociedades liberais, visto que oferece o risco de derivar para a intolerância e a coerção. Ainda assim, a noção de que uma sociedade justa afirma certas virtudes e concepções do que seja uma vida boa vem inspirando movimentos políticos e discussões que atravessam o espectro ideológico. Não apenas o Talibã, também os abolicionistas e Martin Luther King basearem suas visões de justiça em ideais morais e religiosos. Dessa forma, vale a pena perguntar como as discussões filosóficas podem continuar – especialmente em domínios tão contestados como o da moral e o da filosofia política. Elas frequentemente partem de situações concretas. Como já vimos a reflexão moral e política nasce da divergência. Muitas vezes as divergências ocorrem entre partidários ou rivais no campo político. Algumas vezes as divergências ocorrem dentro de nós, como indivíduos, como quando nos vemos dilacerados ou em conflito diante de uma difícil questão moral. E como, exatamente, podemos, a partir dos julgamentos que fazemos de situações concretas, chegar a princípios de justiça que acreditamos ser aplicáveis em todas situações? Em suma, em que consiste o raciocínio moral?
Para vermos como se dá o processo de raciocínio moral, voltemo-nos para uma situação - é uma história fictícia muito discutida por filósofos sobre um doloroso dilema moral. Consideremos a história hipotética. Assim como todas as histórias do gênero, ela envolve um cenário desprovido de muitas das complexidades da vida real, para que possamos nos concentrar em um número limitado de questões filosóficas.  

FAZENDO A COISA CERTA: O BONDE DESGOVERNADO

Suponha que você seja o motorneiro de um bonde desgovernado avançando sobre os trilhos a quase 100 km/h.  Adiante você vê cinco operários em pé nos trilhos, com as ferramentas nas mãos. Você tenta parar e não consegue. Os freios não funcionam. Você se desespera porque sabe que, se atropelar esses cinco operários, todos eles morrerão. (Suponhamos que você tenha certeza disso). De repetente, você nota um desvio para a direita. Há um operário naqueles trilhos também, apenas um. Você percebe que pode desviar o bonde, matando esse único trabalhador e poupando os outros cinco. O que você deveria fazer? Muitas pessoas diriam: “Vire! Se é uma tragédia matar um inocente, é ainda pior matar cinco.” Sacrificar uma só vida a fim de salvar cinco certamente parece ser a coisa a fazer. Agora considere outra versão da história do bonde. Desta vez, você não é o motorneiro e sim um espectador, de pé numa ponte acima dos trilhos. (desta vez, não há desvio). O bonde avança pelos trilhos, onde estão cinco operários. Mas uma vez, os freios não funcionam. O bonde está prestes a atropelar os operários. Você se sente impotente para evitar o desastre – até que nota, perto de você, na ponte, um homem corpulento. Você poderia empurrá-lo sobre os trilhos, no caminho do bonde que se aproxima. Ele morreria e os cinco operários seriam poupados. (Você pensa na hipótese de pular sobre os trilhos, mas se dá conta de que é muito leve para parar o bonde). Empurrar o homem pesado sobre os trilhos seria a coisa certa a fazer? Muitas pessoas diriam: “É claro que não. Seria terrivelmente errado empurrar o homem sobre os trilhos.” Empurrar alguém de uma ponte para uma morte certa realmente parece ser uma coisa terrível, mesmo que isso salvasse a vida de cinco inocentes. Entretanto, cria-se agora um quebra-cabeça moral: Por que o princípio que parece certo no primeiro caso – sacrificar uma vida para salvar cinco – parece errado no segundo?
Na hipótese de, como sugere nossa reação ao primeiro caso, os números serem levados em conta – se é melhor salvar cinco vidas do que uma -, por que, então, não devemos aplicar esse mesmo princípio ao segundo caso e empurrar o homem gordo? Realmente, parece cruel empurrar um homem para a morte, mesmo por uma boa causa. Mas é menos cruel matar um homem atropelando-o com um bonde? Talvez a razão pela qual seja errado empurrar é que fazendo isso estaríamos usando o homem na ponte contra sua vontade. Ele não escolheu estar envolvido, afinal. Estava apenas ali, de pé. O mesmo, no entanto, poderia ser dito sobre o homem que está trabalhando no desvio do trilho. Ele também não escolheu se envolver. Estava apenas fazendo seu trabalho e não se oferecendo para sacrificar a vida num acidente com um bonde desgovernado. O fato de que operários de ferrovias se expõem voluntariamente ao risco de morte, ao contrário dos espectadores, poderia ser usado como argumento. Vamos supor que estar disposto a morrer em uma emergência para salvar a vida de outras pessoas não faça parte das atribuições dessa função e que o trabalhador não esteja mais propenso a oferecer a própria vida do que o espectador na ponte. Talvez a diferença moral não resida no efeito sobre as vítimas – ambas terminariam mortas -, e sim na intenção da pessoa que toma a decisão. Como o motorneiro do bonde, você pode defender sua escolha de desviar o veículo alegando que não tinha a intenção de matar o operário no desvio, apesar de isso ser previsível. Seu objetivo ainda teria sido atingido se, por enorme golpe de sorte, os cinco trabalhadores fossem poupados e o sexto também conseguisse sobreviver.
Entretanto, o mesmo é verdadeiro no caso do empurrão. A morte do homem que você empurrou da ponte não é essencial para seu propósito. Tudo que ela precisa fazer é parar o bonde; se ele de alguma forma conseguir fazer isso e sobreviver, você ficará maravilhado. Ou talvez, pensando bem, os dois casos devessem ser governados pelo mesmo princípio. Ambos envolvem a escolha deliberada de tirar a vida de uma pessoa inocente a fim de evitar uma perda maior de vidas. Talvez sua relutância em empurrar o homem da ponte seja meramente um escrúpulo, uma hesitação que você precise superar. Empurrar um homem para a morte com as próprias mãos realmente parece mais cruel do que girar o volante de um bonde. Mas fazer a coisa certa nem sempre é fácil. Podemos testar essa ideia ao mudarmos um pouco a história. Suponha que você, como espectador, pudesse provocar a queda do homem gordo nos trilhos sem empurrá-lo; imagine que ele esteja de pé sobre um alçapão que você pode abrir ao girar uma manivela. Sem empurrar, você teria o mesmo resultado. Isso transformaria sua ação na coisa certa a fazer? Ou ainda seria moralmente pior do que se você, no lugar do motorneiro, tivesse desviado para o outro trilho? Não á fácil explicar a diferença moral entre esses casos – por que desviar o bonde parece certo, mas empurrar o homem da ponte parece errado. Entretanto, note a pressão que sentimos para chegar a uma distinção convincente entre eles – e se não pudermos, para reconsiderar nosso julgamento sobre a coisa a fazer em cada caso. Às vezes pensamos no raciocínio moral como uma forma de persuadir os outros. Mas é também uma forma de resolver nossas convicções morais, de descobrir aquilo em que acreditamos e por quê.
Alguns dilemas morais têm origem em princípios conflitantes. Por exemplo, um princípio que vem à tona na história do bonde diz que devemos salvar o máximo de vidas possível, mas outro diz que é errado matar um inocente, mesmo que seja por uma boa causa. Expostos a uma situação na qual salvar um número de vidas implica matar uma pessoa inocente, enfrentamos um dilema moral. Devemos tentar descobrir qual princípio tem maior peso ou é mais adequado às circunstâncias. Outros dilemas morais surgem porque não temos certeza sobre como os eventos se desdobrarão. Exemplos fictícios como a história do bonde eliminam a incerteza que paira sobre as escolhas que enfrentamos na vida real. Eles presumem que sabemos exatamente quantas pessoas morrerão se não desviarmos – ou não empurrarmos alguém. Isso faz com que tais histórias sejam guias imperfeitos para a ação. Mas faz também com que sejam recursos úteis para a análise moral. Se abstrairmos as contingências – “E se os operários percebessem o bonde e pulassem para o lado a tempo?” -, exemplos hipotéticos nos ajudam a colocar os princípios morais em questão para examinar sua força.