sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Faculdade Estácio de Curitiba - IED - 2019.2 - Aula 5

TEORIA DA NORMA JURÍDICA e TEORIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO


TEORIA. Do grego “theoria” = visão de conjunto. É uma visão especulativa global, na qual diversos fenômenos coerentemente estruturados recebem uma explicação cabal. Ela se elabora a partir da observação exata da realidade e atinge níveis sempre mais altos de generalização que lhe permite surpreender a significação íntima dos fenômenos. O teste da verdade de uma teoria é o seu poder de previsibilidade ou o seu valor heurístico (que respeita à descoberta). Ex. Teoria da Decisão Judicial.

NORMA. Etimologicamente o termo "norma" significa, em latim, o esquadro, instrumento que, permitindo conduzir sobre uma reta uma linha perpendicular ou normal, é modelo e medida do ângulo reto. Num sentido figurado, norma significa a pauta da ação humana, ajustada à qual esta ação é reta, isto é, moralmente boa. A norma imediata da moralidade é a própria consciência que formula juízos práticos sobre o valor moral da a ação feita ou por fazer. A norma remota é a inteligência Criadora, ordenando o homem para um fim que ele livremente deve realizar. A norma mediata é a própria natureza humana biológica, racional, livre e social que encarna a intenção criadora e constitui, por si mesma, um programa de ação e de vida. Segundo ela, é moralmente bom tudo aquilo que permite ao homem ser mais plena e harmoniosamente homem. Teoricamente, todo homem, quaisquer que sejam suas condições sociais, econômicas, ou outras, pode atingir sua perfeição moral, pela fidelidade aos ditames de sua consciência. Praticamente, porém, não se pode esquecer que o exercício da liberdade e da responsabilidade moral é condicionado pelas condições concretas da existência de cada um. Ora, acontece que milhões de seres humanos vivem em situações tais de indigência e de miséria que a visão da norma se torna um problema teórico, quase inexistente, sem sentido para eles, que estão atormentados pela fome e pelo desespero. A fidelidade à nossa vocação humana, a realização de nossa natureza, que é inclusive social, nos obriga a pensar nos atormentados e a agir em favor deles. Nossa vida não será conforme a norma, enquanto estiver fechada em egoísmos solitários.

ORDEM. Do latim "ordo, ordinis". O termo é tomado em muitas acepções, nas quais importa distinguir vários sentidos. 1) Num sentido mais geral o termo sugere a ideia de uma organização racional dos elementos de um conjunto, ou de um sistema, que lhe propicia o melhor funcionamento. No mundo infra-humano, percebemos a existência de uma ordem universal que preside ao macrocosmo e ao microcosmo, através de leis sujeitas à rigidez dos determinismos naturais, físicos e biológicos. Os astros descrevem suas órbitas dentro de sistemas que se integram em galáxias. Os reinos mineral, vegetal e animal se intercomunicam num admirável equilíbrio que garante à Terra a permanência das condições indispensáveis à vida humana. Também no mundo nuclear, o homem descobre a existência de sistemas sujeitos a um equilíbrio gravitacional que, uma vez rompido, permite a liberação de um imenso potencial de energia. Foram os pensadores fisiocratas os primeiros que, possuídos pela harmonia desta ordem universal, elaboraram, explicitamente, a ideia de ordem social sujeita a determinismos idênticos aos que presidem a ordem universal e fizeram desta ideia a chave de um sistema econômico, político e social. A ideia de ordem social se presta, porém, a funestos equívocos. Existe idealmente uma organização racional dos elementos das sociedades humanas e destas entre si, que parantiria a todas e à comunidade humana universal o seu melhor funcionamento, e com isto criaria para todos os homens as condições ótimas de desenvolvimento e auto-realização. Identificar, porém, esta ordem com uma determinada estrutura social é o equívoco em que se inspiram todos os reacionários, tanto da direita como da esquerda. Para eles, ordem é o "status quo", cujas eventuais imperfeições devem inspirar, nos que delas sofrem, sentimentos de paciência e resignação, e não pretensões de reforma. Para eles, a ordem social tem a inexorabilidade da ordem cósmica: assim como existem astros, minérios, plantas e animais, num admirável equilíbrio, assim também existem classes diferentes, nobre e plebeus, burgueses e proletários, todos elementos indispensáveis na harmonia universal. São incapazes de compreender que a ordem social é o resultado do esforço sempre renovado do homem, tendendo sempre a se aproximar de um ideal inatingível de perfeição. São incapazes de compreender que a ordem social não preexiste ao homem, mas é criada por ele, agente e sujeito de sua própria história, e não peça de um mecanismo inexorável. A verdade é, porém, que a ordem social identificada com um "status quo" esconde muitas vezes a iniquidade social, isto é, a mais injusta desordem. 2) Num sentido sistemático o termo é empregado para designar um conjunto de seres portadores de características comuns. Neste sentido, é uma categoria de taxionomia, para a classificação de plantas e animais, entre classe e a família, por exemplo: reino, classe, ordem, família, gênero, espécie, variedade. Transportado para o mundo humano, o sentido sistemático se aplica aos conjuntos de pessoas com a mesma qualidade social constituindo um corpo homogêneo dentro da sociedade global. Assim se falava antigamente nas três ordens: nobreza, clero e povo. Assim se fala ainda hoje dos advogados, dos economistas e nas ordens religiosas, instituições que, sob o vínculo dos votos religiosos de pobreza, castidade e obediência, assumem uma determinada função na Igreja, sob autorização do Sumo Pontífice. 3) Num sentido imperativo, ordem significa uma injunção, um comando baixado por uma autoridade, que se consuma, portanto, num ato ou num gesto (Ex.: Ordem de Habeas Corpus, de Mandado de Segurança, de Injunção, de Habeas Data). Conota ainda uma ideia estrutural e se identifica assim com a hierarquia vigente em todo corpo social organizado.

ORDENAMENTO. Significado de Ordenamento. Substantivo masculino Ação ou efeito de ordenar, de colocar em ordem; ordenação; ordem. [Jurídico] Estruturação hierárquica das regras jurídicas que, compondo um sistema de normas subordinado à Constituição, disciplinam os comportamentos dos indivíduos: ordenamento jurídico. Método que se deve seguir no tratamento e exploração das matas. Sinônimos de Ordenamento: Ordenamento é sinônimo de: ordenação.

A SABEDORIA JURÍDICA

Segundo Rosa Maria de Andrade Nery (Introdução ao Pensamento Jurídico e à Teoria Geral do Direito Privado): "A experiência social é mercada pela presença do homem em situação de permanente convívio com os seus semelhantes. Durante toda a sua vida, em todos os aspectos de seus relacionamentos, o homem interage: na vida privada, profissional, social, religiosa e nos relacionamentos mais variados há constante intercâmbio de ideias, de formas de trabalho, de manifestações de cultura; de expressões intelectuais; de provimento de meios de subsistência; de formas de entretenimento e divertimento e de realização de negócios; de escolha de meios para a experiência do transcendente. [...] Até mesmo antes de nascer, o homem desafia a ingerência dos atos de outros e, após a sua morte, ainda restam relações iniciadas que precisam de continuidade no seio da sociedade em que viveu, permitindo viabilizar os projetos e sonhos do homem para sua descendência, num contínuo perpetuar da espécie, em perene celebração da vida. É o que acontece, por exemplo, quando o sistema de direito privado se organiza para ditar regras de direito de sucessões e permite que o sujeito de direito faça valer a sua vontade, depois de sua morte, por meio de disposição de última vontade, como o testamento.

O aglomerado de indivíduos, por sua vez, desperta a probabilidade de surgirem atritos entre os membros da sociedade e a necessidade de planificação e disciplina do espaço comum de convivência.
A cobiça natural pelos bens que atendam às necessidades e às demandas das pessoas e a escassez dos recursos utilizados para a produção desses bens e riquezas despertam um natural questionamento em torno da explosão populacional do Planeta, do aumento sempre crescente da capacidade de alguns terem muito em detrimento de muitos que nada têm, e, consequentemente, acopla ao conceito jurídico de propriedade - ter, usar e gozar o que se tem - um componente jurídico para "bem" que nunca havia sido dimensionado antes, fenômeno esse que a ciência econômica denomina, singelamente, de bem econômico.

O mínimo de ordem que permita a convivência harmônica de todos é requisito necessário para a mantença da sociedade, que, por essa disposição, passa a se organizar. Essa organização implica o estabelecimento de regras por quem tenha condições de exercer autoridade e merecer o respeito dos demais.

Por isso o direito pode ser assim compreendido: É o direito um sistema de disciplina social fundado na natureza humana que, estabelecendo nas relações entre os homens uma proporção de reciprocidade nos poderes e deveres que lhes atribui, regula as condições existenciais dos indivíduos e dos grupos sociais e, em consequência, da sociedade, mediante normas coercitivamente impostas pelo poder público.

Pergunta: Como funciona realmente o direito atual? Resposta: Seguindo a trilha da teoria democrática do discurso jurídico, é possível trabalhar com a ideia de insistir sobre a necessidade de observação dos problemas segundo diferentes pontos de vista, de consideração da complexidade que eles representam, de fomento do diálogo baseado na busca de consenso e de respeito ao direito dos cidadãos de que as decisões tenham um fundamento razoável. O pluralismo e a diversidade constituem um fato incontrastável, e por essa razão é necessário assumir critérios compreensivos das diferentes posições para que seja alcançado um consenso entrecruzado, que, ao mesmo tempo que não será o que cada um deseja, permitirá o que todos desejam: uma sociedade ordenada com base em um critério mais realista de justiça. Por essa razão não se encontrará uma "receita" para produzir sentenças, nem uma definição acerca dos grandes temas filosóficos, senão uma arquitetura procedimental de raciocínio. Isso implica em também evitar algumas definições. [...]. Já a matriz para o raciocínio legal, com grande fraquência, observa-se o modo unilateral e limitado com que muitos juristas apresentam seus argumentos, o que pressupõe: 1) a despreocupação como o outro: ignora-se por completo a ideia de um contra-argumento, alguém que pense diferente, de modo a ter de conviver apenas com aqueles que acolhem a mesma posição, devendo os discordantes viver em outra sociedade o mais distante possível; 2) a despreocupação com o conflito: muitas opiniões são mera coleção de referências ao direito comparado, aptas a mostrar erudição, mas absolutamente rudimentares, já que não constituem uma proposta para decidir o caso concreto em uma realidade especial; 3) a despreocupação com a aplicação: é comum afirmar-se uma tese sem explicar como será aplicada em um mundo de recursos escassos, como se a sua aplicação prática fosse um problema que deve ser solucionado por outra pessoa; 4) a despreocupação pela decisão transacional: diz-se algo de modo definitivo, como um pacote fechado que não se abre. O raciocínio não surge do conflito, mas é anterior, uma vez que é conformado previamente e se decide de maneira similar para todos os temas, de modo que se aprende a perguntar primeiro qual o juiz que vai decidir para logo se saber o que ele vai responder em relação a diferentes casos, quaisquer que sejam suas características. A existência dessa "ideologia" prévia não é necessariamente negativa, já que todos a temos - o problema é sua ocultação e a falta de debate sobre ela.

Nos últimos anos teve origem um forte questionamento acerca do discurso jurídico, grande parte do qual se refere a uma crítica severa das obras de direito e do ensino jurídico. Law in the books vs law in action significa que as teses que se apresentam do modo indicado não servem para resolver problemas, ignorando que o direito se orienta para este propósito. A ideia, então, é discutir o modo como se raciona juridicamente, em vez de se dar uma definição para cada problema. Daí que deixamos em aberto muitas questões, porque a solução é móvel, flexível, significa sempre um equilíbrio, uma harmonização de interesses ou argumentos contrapostos.

Considerando o fortalecimento institucional: uma tensões que mais preocupam a doutrina contemporânea é a que se produz entre a linguagem jurídica e o não-jurídico. Uma decisão tomada conforme a linguagem jurídica, qualquer que tenha sido do órgão de que tenha emanado (administrativo, judicial, arbitral), é questionada com base em critérios não-jurídicos, e cada vez mais rudimentares, o que dá origem a elementos de pressão muito fortes sobre o sistema legal (Diz-se que na Idade Média os julgamentos eram um espetáculo, caracterizado pela excitação e a cruel satisfação para justiça executada, o que se contrapõe à ideia tímida e vacilante que nossas sociedades desenvolveram sobre a justiça. Veja-se: Huizinga, John [...]. Este autor contrapõe essa visão com a atual, obviamente fundada no devido processo, que foi uma conquista em relação ao julgamento medieval. Outros, de modo diverso, sustentam que há um retorno à Idade Média, no sentido de que a sociedade retorna ao espetáculo, à paixão pela execução). Não se questiona apenas a decisão, senão a legitimidade de quem decidiu (Por exemplo, se for um juiz a decidir, questiona-se sua autoridade (criticando sua formação, suas concepções sobre a vida, qualificando-as como parciais e discriminatórias), vinculam-no com outras questões que o desmerecem (vinculações políticas, econômicas etc.), ameaçam-no com pedidos de julgamento penal, político, denuncias midiáticas, recorre-se da decisão de modo interminável (perante os tribunais superiores nacionais e transnacionais), propõe-se o mesmo conflito frente a vários juízes (vinculando o conflito com temas extremamente amplos como direitos humanos, proteção de investimentos etc.), fomenta-se um batalha midiática, constroem-se cenários de pressão para obter uma solução favorável. A tarefa de decidir os complexos conflitos que apresentam as sociedades atuais tornou-se altamente insalubre para qualquer um que tente enfrentá-los.). Tanto a crítica sobre o discurso como a deslegitimação da autoridade da qual emana a decisão têm grande impacto sobre o direito, porque levam a uma discussão permanente, interminável, com o que a lei se transforma em um conselho não-obrigatório, e a decisão do conflito não gera coisa julgada. Embora isso seja mais comum em países de instituições débeis, trata-se de fenômeno que vem se generalizando. O resultado é a falta de proteção dos cidadãos, que necessitam de instituições fortes para que possam defender seus direitos individuais. Portanto, é necessário que as instituições se fortaleçam, e isso requer, além de outros aspectos, que o discurso jurídico recupere sua capacidade de convencer. Isso importa que se passe a considerar o argumento de que a sociedade deve utilizar a linguagem do direito e não o contrário.", segundo Ricardo Luis Lorenzetti - Teoria da Decisão Judicial).

Por fim, seguindo Rosa Maria de Andrade Nery (Noções Preliminares de Direito Civil), onde registra: "A rapidez do desenrolar dos acontecimentos no mundo contemporâneo e a disposição evidente dos cientistas do Direito em se manterem pouco participantes de incômodas discussões que exigem a palavra do jurista na equalização de fatos novos com os quais a sociedade atual convive trazem-se à lembrança uma cena do filme 'Novecento', de Bernardo Bertolucci: por ocasião de uma festa de casamento, um casal mata violentamente um menino e esconde seu corpo. Quando o homicídio é descoberto, em meio ao alarde de todos os convivas, um camponês é acusado de ter praticado o crime, pelo verdadeiro autor do fato, e submetido a um verdadeiro massacre, sob o olhar impassível de todos os presentes, dentre eles o noivo, amigo do acusado. Dentre as testemunhas do fato e agressores do acusado, há gente de todo tipo. Dois que têm certeza da inocência da vítima, porque foram os autores do crime; outros que não têm certeza de nada, mas acham que pelas circunstâncias do caso é bem possível que tenha sido o acusado o autor do crime; outros que não querem perscrutar o que se passou, porque basta ter alguém incriminado para satisfazer a ânsia de vingança que todos alimentam; outros que são amigos do indigitado criminoso, que o conhecem muito bem, e sabem perfeitamente que ele não seria capaz de cometer aquele crime. 

No desenrolar dessa cena, por extrema maestria do diretor, o espectador não tem sua atenção voltada para a cena chocante e brutal do linchamento do camponês, como seria natural. Sua atenção, como que por magia, se volta para os rostos dos que presenciam a cena, e a força mais intensa do episódio é percebida na imagem do amigo do acusado, o dono da festa, quando é focalizado. Sua face é um misto de dor e covardia, de fraqueza e impotência que abala o espectador, tal a forma grotesca com que fica desnudo o caráter daquele homem que covardemente assiste a tudo, inerte. 

É justa a preocupação dos que alertam para a falta de respeito aos direitos dos cidadãos, que tem sido reiterada e constantemente perpetrada. Não há dúvida de que o acusado, ainda que verdadeiramente culpado, merece o respeito de todos e que ninguém pode submeter outrem, culpado ou inocente, a escárnio público, e que muitas são as perguntas sem resposta na sociedade atual. Mas corre-se o risco da cena lhes é roubada.

Se por obra de sublime exercício de aprimoramento do espírito os holofotes parassem de iluminar as chagas da sociedade e começassem a clarear os que as contemplam, ganhando-lhes o semblante, qual seria o rosto que mais repulsa nos despertaria? Não seria, por certo, o do verdadeiro culpado, ou o do co-autor de muitas barbáries, que esses são mesmo inescrupulosos e deles já não se espera muito, e não serão capazes de nos causar grande decepção.

A grande decepção ficaria por conta daqueles que, abúlicos, contemplam os fatos e sobre os quais não pesa objetivamente nenhuma acusação. Aqueles que sabem quem são os verdadeiros culpados e se calam. Esses que são os espectadores de tudo e se põem acima de qualquer suspeita, tudo vêem e tudo sabem, cruzam os braços, fecham os olhos e permitem o massacre.".

Faculdade Estácio de Curitiba - IED - 2019.2 Aula 5


TEORIA DA RELAÇÃO JURÍDICA (NORMA – VÍNCULO – SUJEITO - PESSOA – DIREITO – SER – DEVER-SER  – OBRIGAÇÃO – ESTADO – DEMOCRACIA – CAPITALISMO – POLÍTICA – IGUALDADE – LIBERDADE – MERCADORIA – TRABALHO – VALOR – VONTADE – CONTRATO – FORMAS SOCIAIS).

As normas de direito regulam comportamentos humanos dentro da sociedade. Isso é assim porque o homem, na vida social, está sempre em interação, influenciando a conduta de outrem, o que dá origem a relações sociais que, disciplinadas por normas jurídicas, transformam-se em relações de direito.

Para Hans Kelsen (Teoria Pura do Direito), a relação jurídica não é uma relação entre indivíduos, mas entre normas, ou seja, entre o dever jurídico e o direito reflexo que lhe corresponde; sendo que último, o dever jurídico, isto é, a própria norma jurídica, não há, na realidade, nenhuma relação entre o dever jurídico e o direito reflexo.

Segundo Del Vecchio, a relação jurídica consiste num vínculo entre pessoas, em razão do qual uma pode pretender um bem a que outra é obrigada. Tal relação só existirá quando certas ações dos sujeitos, que constituem o âmbito pessoal de determinadas normas, forem relevantes no que atina ao caráter deôntico (palavra deôntico tem sua origem na palavra grega DEON = o que é obrigatório. Deôntico se refere ao princípio da obrigação e da permissão) das normas aplicáveis à situação. Só haverá relação jurídica se o vínculo entre pessoas estiver normado, isto é, regulado por norma jurídica, que tem por escopo protegê-lo. Sem norma incidente, na lição de Lourival Vilanova, numa relação social ou fática, essa relação não se eleva ao nível jurídico. A transformação do vínculo de fato em jurídico acarreta os seguintes efeitos:

1º) Tem-se uma relação jurídica entre sujeitos jurídicos, ou melhor entre o sujeito ativo, que é o titular do direito subjetivo de ter ou de fazer o que a norma jurídica não proíbe, e o sujeito passivo, que é o sujeito de um dever jurídico, é o que deve respeitar o direito ativo. É imprescindível, portanto, uma relação intersubjetiva, isto é, um liame entre duas ou mais pessoas. O sujeito ativo tem a proteção jurídica, ou seja, a autorização normativa para ingressar em juízo, reavendo o seu direito, reparando o mal sofrido em caso de o sujeito passivo não ter cumprido suas obrigações;

2º) O poder do sujeito ativo passa a incidir sobre um objeto imediato, que é a prestação devida pelo sujeito passivo, por ter a permissão jurídica de exigir uma obrigação de dar, fazer ou não fazer, e sobre um objeto mediato, ou seja, o bem móvel, imóvel ou semovente, sobre o qual recai o direito, devido à permissão que lhe é dada por norma de direito de ter alguma coisa como sua, abrangendo, ainda, os seus modos de ser (sua vida, seu nome, sua liberdade, sua honra etc.);

3º) Há necessidade de um fato propulsor, idôneo à produção de consequências jurídicas. Pode ser um acontecimento, dependente ou não da vontade humana, a que a norma jurídica dá a função de criar, modificar ou extinguir direitos. É ele que tem o condão de vincular os sujeitos e de submeter o objeto ao poder da pessoa, concretizando a relação. Reveste a forma de fato jurídico stricto sensu, quando o acontecimento for independente da ação humana; de ato jurídico, se consistir num ato voluntário, sendo irrelevante a intenção do resultado; e de negócio jurídico, se provier de ação humana que visa a produzir os efeitos que o agente pretende.

CF, art. 5º Todos são iguais perante a lei [...];
I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

A palavra pessoa (Derivada do latim persona, no sentido técnico-jurídico exprime ou designa todo ser, capaz ou suscetível de direitos e obrigações; pessoa não exprime simplesmente o homem singular ou natural, isto é, o ser humano. Há entidades ou criações jurídicas, personalizadas ou personificadas por força de lei, para fins de várias ordens, a que se dá, também, o nome de pessoas. Praticamente, é o ser a que se reconhece aptidão legal para ser sujeito de direitos, no que difere de coisa, tida sempre como objeto de uma relação jurídica. Uma pessoa jurídica é uma entidade que pode ter direitos e deveres e que apresenta uma personalidade jurídica. Existem pessoas jurídicas de direito público (diferentes Estados) e pessoas jurídicas de direito privado (fundações e organizações religiosas). O Código Civil brasileiro apresenta uma grande parte das bases legais relativas a pessoas jurídicas. Pessoa sempre foi usada para resolver uma dificuldade de igualar a pessoa física (o homem) a uma pessoa jurídica (complexo de bens sob a tutela de pessoas físicas, de certo modo, indefinidas). E ninguém aqui significa: pessoa física ou jurídica.

A liberdade á uma prerrogativa do homem para ele possa agir. A igualdade, no fundo, é a balança da liberdade antiga, é seu alicerce. Os diferentes – escravos, mulheres, estrangeiros – não são livres, e, pode-se dizer, não o são porque são diferentes.

Se a liberdade dos antigos começava da pólis para os indivíduos, e só fazia do indivíduo homem livre se pertencesse aos iguais da pólis, para os modernos o procedimento é o exato contrário. A liberdade começa do indivíduo, dele é inalienável, e encontra depois certos limites políticos. O sistema produtivo escravagista antigo fez a liberdade dos antigos. O capitalismo faz a liberdade dos modernos. Na mudança de um a outro se vê a mais clara distinção das duas liberdades. Benjamin Constant, aliás, já faz de imediato esta identificação da liberdade moderna às relações capitalistas. Sobre as atividades comerciais, industriais, burguesas enfim, dirá: “O crédito não tinha a mesma influência entre os antigos; seus governos eram mais fortes que os poderes políticos; a riqueza é uma força mais disponível em todos os momentos, mais aplicável a todos os interesses e, em consequência, muito mais real e mais obedecida; o poder ameaça, a riqueza recompensa; escapa-se ao poder enganando-o; para obter os favores da riqueza, é preciso servi-la.”. [...]. Daí vem, Senhores, a necessidade do sistema representativo (...) O sistema representativo é uma procuração dada a um certo número de homens pela massa do povo que deseja ter seus interesses defendidos e não tem, no entanto, tempo para defende-lo sozinho.”. Constant associa ao mercado a tônica política própria dos modernos: o sistema político representativo. Enquanto a liberdade antiga, positiva, era o exercício da própria política por parte dos cidadãos, a liberdade moderna é individual (com o cristianismo e seu individualismo para a salvação individual), privada, e a atividade política não se faz por todos os cidadãos, mas apenas por seus representantes. A liberdade moderna, pois, na visão de Constant, é o tempo liberado aos homens para que possam dispor, do modo pelo qual bem entendam, de seu tempo para a vida privada, para o comércio, para os negócios.
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A pergunta é: quem exerce o poder de legislar?

Segundo, Alysson Leandro Mascado, “O Estado, tal qual se apresenta na atualidade, não foi uma forma de organização vista em sociedades anteriores da história. Sua manifestação é especificamente moderna, capitalista. Em modos de produção anteriores ao capitalismo, não há separação estrutural entre aqueles que dominam economicamente e aqueles que dominam politicamente: de modo geral, são as mesmas classes, grupos e indivíduos – os senhores de escravos ou os senhores feudais – que controlam tanto os setores econômicos quanto os políticos de suas sociedades. Se alguém chamar por Estado o domínio antigo, estará tratando do mando político direito das classes econômicas exploradoras. No capitalismo, no entanto, abre-se a separação entre o domínio econômico e o domínio político. O burguês não é necessariamente o agente estatal. As figuras aparecem, a princípio, como distintas. Na condensação do domínio político em uma figura distinta da do burguês, no capitalismo, identifica-se especificamente os contornos do fenômeno estatal. [...]. Somente com o apartamento de uma instância estatal é possível a reprodução capitalista. Sobre as razões dessa especificidade, que separa política de economia, não se pode buscar suas respostas, a princípio, na política, mas sim no capitalismo. Nas relações de produção capitalistas se dá uma organização social que em termos históricos é muito insigne, separando os produtores direitos dos meios de produção, estabelecendo uma rede necessária de trabalho assalariado. A troca de mercadorias é a chave para desvendar essa especificidade. No capitalismo, a apreensão do produto da força de trabalho e dos bens não é mais feita a partir de uma posse bruta ou da violência física. Há uma intermediação universal das mercadorias, garantida não por cada burguês, mas por uma instância apartada de todos eles. O Estado, assim, se revela como um aparato necessário à reprodução capitalista, assegurando a troca das mercadorias e a própria exploração da força de trabalho sob forma assalariada. As instituições jurídicas que se consolidam por meio do aparato estatal – o sujeito de direito e a garantia do contrato e da autonomia da vontade, por exemplo – possibilitam a existência de mecanismos apartados dos próprios exploradores e explorados. Sem ele, o Estado, o domínio do capital sobre o trabalho assalariado seria domínio direto – portanto, escravidão ou servidão. A reprodução da exploração assalariada e mercantil fortalece necessariamente uma instituição política apartadas dos indivíduos. Daí a dificuldade em se aperceber, à primeira vista, a conexão entre capitalismo e Estado, na medida em que, sendo um aparato terceiro em relação à exploração, o Estado não é nenhum burguês em específico nem está em sua função imediata. A sua separação em face de todas as classes e indivíduos constitui a chave da possibilidade da própria reprodutividade do capital: o aparato estatal é a garantia da mercadoria, da propriedade privada e dos vínculos jurídicos de exploração que jungem o capital e o trabalho. [...].

Nesse sentido, deve-se entender o Estado não como um aparato neutro à disposição da burguesia, para que, nele, ela exerça o poder. É preciso compreender na dinâmica das próprias relações capitalistas a razão de ser estrutural do Estado. Somente é possível a pulverização de sujeitos de direito com um aparato político, que lhes seja imediatamente estranho, garantindo e sustentando sua dinâmica. Por isso, o Estado não é um poder neutro e a princípio indiferente que foi acoplado por acaso à exploração empreendida pelos burgueses. O Estado é um derivado necessário da própria reprodução capitalista; essas relações ensejam sua constituição ou sua formação. Sendo estranho a cada burguês e a cada trabalhador explorado, individualmente tomados, é, ao mesmo tempo, elemento necessário de sua constituição e da reprodução de suas relações sociais.

O caráter terceiro do Estado em face da própria dinâmica da relação entre capital e trabalho revela a sua natureza também afirmativa. Não é apenas um aparato de repressão, mas sim de constituição social. A existência de um nível político apartado dos agentes econômicos individuais dá a possibilidade de influir na constituição de subjetividades e lhes atribuir garantias jurídicas e políticas que corroboram para apropria reprodução da circulação mercantil e produtiva. E, ao contribuir para tornar explorador e explorado sujeitos de direito, sob um único regime político e um território normativamente, o Estado constitui, ainda afirmativamente, o espaço de uma comunidade, no qual se dá o amálgama de capitalistas e trabalhadores sob o signo de uma pátria ou nação. [...]. As classes burguesas, cujas frações são variadas, podem até mesmo contrastar em interesses imediatos. As lutas dos trabalhadores, engolfadas pela lógica da mercadoria, ao pleitearem aumentos salariais, chancelam a própria reprodução contínua do capitalismo. O Estado, majorando impostos ou mesmo ao conceder aumento de direitos sociais, mantém a lógica do valor.

A reprodução do capitalismo es estrutura por meio de formas sociais necessárias e específicas, que constituem o núcleo de sua própria sociabilidade. [...]. Tudo e todos valem num processo de trocas, tornando-se, pois, mercadorias e, para tanto, jungindo-se por meio de vínculos contratuais. Dessa maneira, o contrato se impõe, como liame entre os que trocam mercadorias – e, dentre elas, a força de trabalho. Mas, para que o vínculo seja contratual, e não simplesmente de imposição de força bruta nem de mando unilateral, é também preciso que formas específicas nos campos político e jurídico o constituam. Para que possam contratar, os indivíduos são tomados, juridicamente, como sujeitos de direito. Ao mesmo tempo, uma esfera política a princípio estranha aos próprios sujeitos, com efetividade e aparatos concretos, assegura o reconhecimento da qualidade jurídica desses sujeitos e garante o cumprimento dos vínculos, do capital e dos direitos subjetivos. [...]. As interações entre indivíduos, grupos e classes não se fazem de modo ocasional ou desqualificado. Por exemplo, a forma-família estatui posições, papéis, poderes, hierarquias e expectativas. Entre pais e filhos e marido e mulher operam mecanismos formais que constituem uma base estrutural e inconsciente de suas posteriores relações voluntárias ou conscientes. Também como exemplo, a forma-trabalho, no capitalismo, já parte da pressuposição de que a força de trabalho pode ser trocada por dinheiro, mediante o artifício do acordo de vontades que submete o trabalhador ao capitalista. A subjetividade portadora de vontade, portanto, é uma forma necessária pressuposta de tal interação. A forma social permite, enseja e a si junge as relações sociais. [...].

Garantido a reprodução das condições sociais capitalistas em última instância, o Poder Judiciário está imune juridicamente a maiores injunções – quase sempre, age apenas quando provocado e julga argumentando de acordo com os quadrantes da legalidade. O respeito às decisões dos magistrados – mesmo quando em negação da vontade de um burguês em específico – é, no entanto, a manutenção da própria estrutura de submissão dos indivíduos à conformação jurídica geral. [...].
Entre o Estado, o direito, a religião, a cultura, os meios de comunicação de massa, as artes e as instituições ideológicas, de modo geral, há relações que vão tanto de um eventual desconhecimento mútuo até a total implicação estrutural ou funcional. [...]. Podem-se vislumbrar instituições ideológicas relativamente mais autônomas em relação ao Estado, como as estéticas. Há, no entanto, instituições ideológicas muito próximas ao Estado, como a educação pública e os meios de comunicação em massa. [...].

A forma política estatal só se estabelece e pode ser compreendida num complexo relacional maior que os limites do Estado. [...]. Se se toma o aparato estatal como um organismo, ele só pode ser compreendido num sistema geral de instituições que se atravessam e convivem numa relação dinâmica, na reprodução social conflituosa do capitalismo. [...]. As instituições políticas estatais comportam várias especificações materiais, estruturais e funcionais, além de desdobrados critérios de classificação. No plano espacial, uma possível divisão interna do Estado se faz com a sua distribuição em unidades, como as de Estados federados, províncias ou municípios. Trata-se de uma divisão geográfica, articulada no Estado central como seu núcleo; suas unidades menores são dependentes ou aglutinadas a um poder de hierarquia ou proeminência maior. [...].

Há um nexo íntimo entre forma política e forma jurídica, mas não porque ambas sejam iguais ou equivalentes, e sim porque remanescem da mesma fonte. Além disso, apoiam-se mutuamente, conformando-se. Pelo mesmo processo de derivação, a partir das formas sociais mercantis capitalistas, originam-se a forma jurídica e a forma política estatal. Ambas remontam a uma mesma e própria lógica de reprodução econômica, capitalista. Ao mesmo tempo, são pilares estruturais desse todo social que atuam em mútua implicação. As formas política e jurídica não são dois monumentos que agem separadamente. Eles se implicam. Na especificidade de cada qual, constituem, ao mesmo tempo, termos conjuntos. O núcleo da forma jurídica reside no complexo que envolve o sujeito de direito, com seus correlatos do direito subjetivo, do dever e da obrigação – atrelados, necessariamente, à vontade autônoma e à igualdade formal no contrato como seus corolários. [...]. No entanto, embora direito e Estado se apoiem mutuamente, sua ligação é nuançada, o que choca a interpretação comumente realizada a seu respeito. Pela tradição do juspositivismo, que compreende o Estado e o direito como ângulos distintos de um mesmo fenômeno, o contorno do jurídico é constituído pelo político. É o Estado, por meio de sua soberania, que institui o direito, valendo-se de um instrumento por excelência, a norma jurídica. Se o direito, para a ciência juspositiva, se reduz à norma jurídica, então o direito é o Estado.

Segundo a perspectiva juspositivista, o mesmo é postulado no que tange à via reversa. O Estado, fenômeno, de poder, distingue-se dos demais poderes da sociedade porque se valida em competências que são hauridas de normas jurídicas. O poder do Estado é o poder que as normas jurídicas lhe conferem. A ação estatal é necessariamente uma ação jurídica. Os atos do Estado são sempre atos jurídicos – do direito administrativo ou dos demais ramos do próprio direito público. Como se depreende, dentre outras, também da notória visão de Hans Kelsen, o juspositivismo considera por Estado o direito. [...] O núcleo da forma jurídica, o sujeito de direito, não advém do Estado. Seu surgimento, historicamente, não está na sua chancela pelo Estado. A dinâmica do surgimento do sujeito de direito guarda vínculo, necessário e direto, com as relações de produção capitalista. A circulação mercantil e a produção baseada na exploração da força de trabalho jungida de modo livre e assalariado é que constituem, socialmente, o sujeito portador de direitos subjetivos. Como exemplo de esclarecimento, pode-se valer do caso das sociedades do continente americano que se fundaram na moderna escravidão ao mesmo tempo que desenvolviam relações de produção capitalistas, como o que ocorreu no Brasil. Juridicamente, o escravo estava impedido de ser sujeito de direito. Sua emancipação jurídica somente se deu, por completo, a partir de 1888. No entanto, os estudos históricos demonstram que alguns escravos entesouraram dinheiro e bens, pondo-se, sorrateiramente à lei, na cadeia da reprodução econômica capitalista. Não eram, pela declaração normativa estatal, sujeitos de direito. Constituíam-se, no entanto, como tais na dinâmica econômica em que se inscreviam.”.

Pergunta: No Brasil, quem exerce o poder de legislar?

Na realidade, no sentido estrito, é o Legislativo conforme processo previsto na ordem jurídica. A União (Câmara dos Deputados e Senado Federal); Estados-membros (Assembleias legislativas); Municípios (Câmara de Vereadores); Distrito Federal (Assembleia Distrital). No sentido amplo, o Executivo (Pela Presidência, Ministérios e demais órgãos, Governadores, Prefeitos e Governador Distrital) legisla quando baixa decretos e outros atos; o Judiciário (Nacional e Estadual) legisla quando elabora seus regimentos internos e outros atos.  Assim, a Relação Jurídica (vínculo jurídico) pode ser estudada: conceitualmente, por seus elementos, pelo sujeito de direito, pelo objeto imediato e mediato, pelo fato jurídico e pela proteção jurídica.

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

O futuro da faculdade de direito


Sob o título acima, João Paulo Hecker da Silva e Giovani Ravagnani, discorrem: (Migalhas nº 4689,  17/09/2019).
O incentivo à pesquisa, com a criação de programas de bolsas compatíveis com o mercado, são recursos que devem fazer parte da missão da faculdade de direito do futuro.

O mundo mudou. Saímos de um mundo totalmente offline e analógico e partimos para o mundo totalmente conectado pela nuvem. O mundo do direito, no entanto, ficou anos luz atrás. A metodologia de ensino, as grades de matérias, os temas propostos e até os nomes dos sujeitos das questões de prova (Tício e Mévio), permanecem os mesmos há quase meio século. O objetivo do presente texto é provocar o leitor sobre a necessidade de mudanças no ensino jurídico no Brasil.

O famigerado sistema em que o aluno passa 5 (cinco) horas de um dia assistindo o professor falar incessantemente, por óbvio, não é atraente para o jovem millenial, de modo a desestimular o aprendizado do estudante de direito. Assim como seus futuros clientes, o estudante de direito do ano de 2019 está acostumado ao dinamismo e aos desafios. A faculdade de direito do amanhã tem que estar pronta para acomodar essas ambições. Mas como?
Para começo de conversa, a arquitetura e organização das salas de aula devem ser mudadas e organizadas com o objetivo de fomentar a discussão e o diálogo entre os sujeitos. Salas sem carteiras fixas, com mesas redondas, recursos audiovisuais ou que de qualquer forma incentivem a aplicação de debates e a interação entre os alunos, via método socrático ou com técnicas de design thinking, devem ser implantadas. A advocacia é – e nunca deixará de ser – a arte do convencimento. Dar o palco ideal aos estudantes é fomentar o desenvolvimento de tais skills. :

Para além da disposição das salas de aula, tendo em vista que o direito é uma ciência eminentemente prática. A faculdade de direito do amanhã deve, sobretudo, investir nos estudos e nas análises de casos práticos, proporcionar a resolução de casos interdisciplinares, apoiar a participação de tribunais simulados, de competições acadêmicas, das oficinais de advocacia pro-bono, em projetos e discussões ocorridas no âmbito dos núcleos de pesquisa, em projetos envolvendo graduação e pós-graduação ao mesmo tempo ou ainda de intercâmbios internacionais ou de parcerias com instituições de ensino estrangeiras, etc. É por meio da práxis que o profissional do direito deve ser forjado. Se estamos no momento em que as experiências são mais importantes que os currículos, é essencial que se proporcione isso aos alunos dentro da faculdade de direito.

Uma forma de ensino a partir casos práticos é aquela que parte do estudo e da análise de julgados. Suponhamos que a matéria em estudo seja Direito do Consumidor. Por que não abordar o tema, trazendo à sala de aula, julgados de um Tribunal que abordem os assuntos de direito material objeto da disciplina? Entender os direitos básicos do consumidor e os deveres dos fornecedores com base naquilo que o Poder Judiciário tem entendido como certo ou errado tende a fixar, com muito mais precisão, os ensinamentos na cabeça dos estudantes.

O fomento à participação dos alunos às competições acadêmicas também é um método que traz excelentes resultados. No mundo jurídico brasileiro e internacional, consolidaram-se nessa categoria a Competição Brasileira de Arbitragem organizada pela CAMARB (que já está em sua 10ª edição, a qual será realizada em São Paulo, na sede do Ibmec/SP) e o The Annual Willem C. Vis International Commercial Arbitration Moot (cuja 27ª edição acontecerá ainda no ano de 2019), competição internacional de arbitragem. Competições mais recentes como a de Processo Civil organizada pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual - IBDP são bons exemplos da irradiação dessa verdadeira metodologia de ensino, uma vez que é difícil encontrar um engajamento tão grande entre os alunos do que nesses eventos que costumam reunir milhares de alunos e centenas de instituições.

Acrescente-se, ademais, como oportunidade de aprendizagem prática, os trabalhos de núcleos de pesquisa e prática jurídica que se engajam também em projetos mais atuais de assessoria jurídica gratuita a entidades e pessoas previamente selecionadas. Essas atividades podem englobar desde a elaboração ou revisão de um programa de compliance, até o auxílio para startups ou jovens empreendedores pela a elaboração de contratos ou acordos de acionistas ou ainda de investimento.

A faculdade de Direito do amanhã deve também incorporar matérias e disciplinas que possam complementar a vida do futuro jurista, aprofundando o estudo de economia, sobretudo de Law and Economics. O estudo de gestão de projetos, de criação de indicadores de desempenho e de gestão de negócios deve ser incentivado. O suporte e o apoio à inovação e ao empreendedorismo também devem compor a grade de matérias optativas ou de contraturno.

O incentivo à pesquisa, com a criação de programas de bolsas compatíveis com o mercado, são recursos que devem fazer parte da missão da faculdade de direito do futuro. Na mesma proporção, a instituição de ensino deve investir no desenvolvimento da pesquisa empírica, lastreada em dados e em casos, para além da pesquisa bibliográfica indutiva, que tanto estamos acostumados. A utilização de inteligência artificial e toda tecnologia disponível não só é essencial, como imprescindível para buscar a informação e ajudar da interpretação dos dados coletados.

Análise de dados, jurimetria e programação são matérias que devem compor o estudo básico de direito. Em um Poder Judiciário tão congestionado como o brasileiro, entender os movimentos macros das teses discutidas, em termos quantitativos, pode ser útil para lidar com a estratégia jurídica a ser implementada em favor do cliente.

O desenvolvimento de skills de argumentação e comunicação, além das de negociação ou de gestão de pessoas ou temperamentos também fazem sentido na faculdade de direito do futuro. Aliás, toda a perspectiva de meios de resolução de conflitos deve ser repensada, seja para capacitar os profissionais para métodos adjudicados mais adequados a litígios empresariais como a arbitragem, seja para formarmos advogados hábeis a solucionar as controvérsias por meio de autocomposição (negociação, mediação), inclusive perante o poder público (leniência, delação premiada, termo de ajustamento de conduta, etc.).

Avançando nas discussões, há que se destacar a necessidade de revisão, pelo Ministério da Educação e Cultura, da regra que impede a implementação da faculdade de direito totalmente EAD – ensino à distância. Depois de quase uma década de convivência com o EAD no Brasil, sobretudo por meio dos cursos preparatórios para concurso ou de pós-graduação, é possível concluir que tal metodologia consolidou-se como uma forma incrível de democratizar o ensino de qualidade ao redor do Brasil. Incontáveis são as instituições de ensino que possuem estrutura, corpo docente e penetração hábeis para instalar uma faculdade de direito de muita qualidade.

A internacionalização deve ser uma meta e um objetivo da faculdade de direito. O intercâmbio entre alunos enriquece a vida universitária, seja à universidade, seja aos universitários. A possibilidade de obtenção de dupla titulação pode ser um diferencial a ser oferecido pelas faculdades.

Por fim, a faculdade de direito não pode perder de vista o fato de que o profissional do direito deve estar pronto para resolver os conflitos da sociedade, devendo preparar o futuro jurista para tanto. As relações e as contratação online devem ser uma realidade, em detrimento das milhões de laudas impressas anualmente pelos advogados ou de volumes de processos físicos nos corredores dos fóruns.

Enfim, mais blockchain, venture capital, data protection e menos enfiteuse, lotes lindeiros e proclamas; mais experiências e discussões práticas e menos aulas expositivas ou com mera leitura do texto de lei.

*João Paulo Hecker da Silva é sócio do escritório Lucon Advogados, mestre e doutor em Direito Processual pela USP. Coordenador e professor dos cursos de pós-graduação em Direito do IBMEC-SP.
*Giovani Ravagnani é mestre em Direito Processual pela USP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual e do Centro de Estudos Sociedade e Tecnologia da POLI/USP. Advogado atuante na área cível e empresarial, com foco em resolução de conflitos. Professor em Future Law e no Instituto New Law.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Faculdade Estácio de Curitiba - IED - 2019.2 - Aula 04

O DIREITO COMO CIÊNCIA E SUA METODOLOGIA

Segundo Humberto Ávila, "[...] o conhecimento do Direito só pode ser feito por meio de conceitos fundamentais, de maneira que o conhecimento pressupõe o uso de estruturas cognoscitivas formais. Para estes, não há conhecimento do Direito senão por meio das categorias conceituais, sejam elas lógico-jurídicas, sejam elas jurídico-positivas. Nessa perspectiva, os conceitos são condições absolutas de conhecimento do Direito.".

Seguindo essa trilha, vamos compartilhar, parcialmente, o resultado da pesquisa de Fredie Didier Jr., conforme segue.

"Teoria é todo sistema de proposições orientado para um objeto com fim cognoscitivo" (Lourival Vilanova). A teoria compreende uma sistemática e uma finalidade verificativa: trata-se de conjunto organizado de enunciados relativos a determinado objeto de investigação científica ou filosófica. A teoria unifica e arruma o complexo dos conceitos e enunciados da ciência ou da filosofia.

A teoria serve à ciência ou à filosofia. É possível designar a ciência/filosofia com o nome de uma teoria. É o que ocorre, por exemplo, com a Teoria do Estado, a Teoria do Direito, a Teoria do Processo. [...]: [...]Basicamente, a ciência pode ser definida como sistema de enunciados que se propõe a explicar de modo coerente, racional e falseável um determinado objeto. (Miguel Reale). [...].

Concebe-se uma teoria sobre outra teoria: uma teoria da teoria. A epistemologia, por exemplo, é uma teoria da ciência, que é um conjunto de teorias. Por isso, uma teoria tanto pode servir a uma abordagem filosófica, como a uma abordagem científica.

Uma teoria para as ciências sociais pode ter graus de abstração diversos: geral, individual e particular. As teorias sobre o Direito, fato social que é, seguem essa divisão.

Uma teoria é geral quando reúne enunciados que possuem pretensão universal, invariável ( Observe-se que o adjetivo "geral" serve para qualificar o objeto da teoria. O adjetivo pode ser utilizado, porém, para designar a função da teoria - "geral", porque se propõe a exaurir o objeto investigado. Este uso do adjetivo parece ser desnecessário, pois, neste sentido, toda teoria é geral, pois se propõe a examinar o seu objeto.).
Uma teoria pode ser individual, quando pretender organizar conhecimento em torno de um objeto singular, investigado exatamente em razão da importância de suas peculiaridades. Os objetos culturais, como o Direito, o idioma, o Estado, têm importância também pelo que apresentam como singularidade. O conhecimento científico não precisa ser necessariamente abstrato ou universal: "pode deter-se na concreção singular, expor, descritivamente, a singularidade em sua diferenciação única". 

Há, então, a Teoria Geral do Estado e a Teoria do Estado brasileiro; a Teoria Geral do Direito e a Teoria do Direito estadunidense; a Teoria Geral do Processo e a Teoria do Processo Civil italiano etc.

Pode-se restringir a generalidade da teoria a um grupo de objetos, selecionados com base em algum elemento comum. Fala-se, então, em uma teoria particular. Trata-se de um grau de abstração entre o geral e o individual. Comparam-se os objetos deste grupo para "sacar, desse confronto, o típico sobre o simplesmente singular, o homogêneo sobre o meramente peculiar". Assim, por exemplo, uma teoria particular do Direito para Estados cuja tradição jurídica seja o "common law".

Toda teoria tem uma extensão, delimitação do objeto de investigação, e uma intensidade, que é o seu conteúdo informativo, sua aptidão para explicar o objeto investigado. Tanto maior a extensão, tanto menor a intensidade de uma teoria.

Um objeto de investigação científica pode ser objeto de várias teorias, que o decompõem abstratamente. É parcial a teoria que cuida de cada um dos resultados dessa decomposição. A ciência ou filosofia, compreendidas como teorias totais, será o conjunto dessas teorias parciais, que se complementam.

Assim, por exemplo, a Teoria Geral do Direito é composta pelas teorias parciais (i) do fato jurídico, (ii) das situações jurídicas, (iii) dos sujeitos de direito, (iv) da norma jurídica etc. A Teoria Geral do Processo é composta pelas teorias (i) das capacidades processuais, (ii) dos fatos jurídicos processuais, (iii) da norma processual, (iv) da prova etc. Teorias parciais podem ser, igualmente, gerais, particulares e individuais. Pose-se, então, v.g., falar em uma teoria geral dos fatos jurídicos processuais. [...].

CONCEITOS JURÍDICO-POSITIVOS E CONCEITOS JURÍDICOS FUNDAMENTAIS (CONCEITOS LÓGICO-JURÍDICOS).

A ciência é um sistema de enunciados. Compõem-se de "um conjunto de conceitos dispostos segundo certas conexões ideais", estruturados de acordo com critérios "ordenados que os subordinam a uma unidade sistemática". O enunciados da ciência articulam esses conceitos, com o objetivo de explicar, de modo coerente, racional e "falseável", um determinado aspecto da realidade.

Em um sistema conceitual, nem todos os conceitos "ocupam o mesmo plano": há conceitos que possuem âmbito de validez específico, outros, genérico; uns são conceitos fundamentais, outros, derivados e adjacentes.

As teorias jurídicas sofrem a contingência de ter por objeto um produto cultural. O Direito terá o seu conteúdo determinado por circunstâncias históricas e espaciais. É muito difícil e, por vezes, pouco útil, criar uma teoria que sirva a diversos ordenamentos jurídicos, tão distintos entre si. 

Essa é a razão pela qual devem ser separados, em qualquer construção teórica sobre o Direito, os conceitos que servem à compreensão do fenômeno jurídico, onde quer que ele ocorra, qualquer que seja o seu conteúdo, dos conceitos construídos a partir da análise de um determinado ordenamento jurídico. Vale também para as Ciências Jurídicas a conclusão de Popper: "considero de fundamental importância distinção entre conceitos ou nomes universais e individuais".

Aos primeiros, dá-se a designação de conceitos lógico-jurídicos ou conceitos jurídicos fundamentais; os outros são chamados de conceitos jurídico-positivos.

Conceitos jurídico-positivos.

O conceito jurídico-positivo é construído a partir da observação de uma determinada realidade normativa e, por isso mesmo, apenas a ela é aplicável. [...] Trata-se de noção que somente pode ser obtida a posteriori, "no sentido de que apenas poderá ser apreendida após o conhecimento de um determinado Direito Positivo". São conceitos contingentes, históricos: descrevem realidades criadas pelo homem em certo lugar, em certo momento.

Alguns exemplos podem ser úteis à compreensão do tema.

O conceito de estupro é jurídico-positivo: os elementos desse crime variam conforme o respectivo Direito positivo. Até bem pouco tempo atrás, no Brasil, estupro era crime que pressupunha violência sexual (conjunção carnal) praticada por um homem contra uma mulher. Atualmente, estupro é crime que pode ser cometido por ou contra alguém de qualquer gênero e a conduta típica não é mais apenas a conjunção carnal violenta (art. 213 do Código Penal Brasileiro, alterado pela lei n. 12.015/2009: "Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:". A redação anterior era a seguinte: "Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:").

O conceito de casamento também é jurídico-positivo. No Brasil, casamento é uma união formal familiar entre pessoas de sexos diferentes (Código Civil, art. 1.514). Em Portugal, casamento é negócio celebrado entre duas pessoas, pouco importa o gênero a que pertençam (Código Civil português, art. 1.577). [...].

Como se vê, trata-se de conceito que fica submetido às contingências das transformações do Direito positivo. A definição desses objetos variará conforme o tempo e o espaço.

Não há, portanto, uma disciplina jurídica única e imutável para esses institutos. Não se pode pretender encontrar, nesses conceitos, elementos invariáveis, que compusessem uma espécie de essência imprescindível do objeto definido.

Exemplos são úteis à demonstração da importância de identificar os objetos cujo conceito dependa do exame de um determinado Direito positivo. Assim como o respectivo conceito, o regime jurídico do objeto investigado também variará conforme o ordenamento jurídico analisado.

A simulação é vício que permite a invalidação do negócio jurídico. Trata-se de invalidação que se submete ao regime jurídico da nulidade (art. 167 do Código Civil brasileiro - de 2002). Sucede que, de acordo com o Código Civil de 1916, já revogado, a simulação era vício que gerava anulabilidade do negócio jurídico; submetia-se, portanto, a regime jurídico diverso (art. 147, II, do Código Civil brasileiro de 1916). Note-se a mudança do regime jurídico da invalidação do negócio por simulação. Não há problema algum; é legítima opção legislativa. [...].

Conceitos jurídicos fundamentais ou conceitos lógico-jurídicos.

O conceito jurídico fundamental (lógico-jurídico, jurídico próprio ou categorial) é aquele construído pela Filosofia do Direito (é uma das tarefas da Epistemologia Jurídica), com a pretensão de auxiliar a compreensão de validez universal. Serve aos operadores do Direito para a compreensão de qualquer ordenamento jurídico determinado. É, verdadeiramente, um pressuposto indispensável de qualquer contato científico com o direito.

É conceito a priori, alheio a qualquer realidade determinada, embora seja produto da experiência jurídica ('o direito nasce da necessidade e da experiência'), o que não é paradoxal: não se consegue conceber produção do intelecto humano que não tenha por base alguma experiência. A partir da observação do fenômeno jurídico, criam-se esses conceitos, que funcionam como instrumentos indispensáveis à investigação empírica.

Não expressam realidades contingenciais criadas pelo homem em dado momento histórico. São conceitos formais, lógicos, que "nada adiantam sobre o conteúdo concreto das normas jurídicas". Porque formais, são invariáveis; variável será o conteúdo normativo a ser extraído dos enunciados normativos do Direito positivo.

São fundamentais para a ciência jurídica (e, por isso, são chamados de conceitos jurídicos fundamentais), pois correspondem à estrutura essencial de toda ordem jurídica. Onde houve norma jurídica (onde houver Direito, pois), serão úteis. Não se concebe a existência de Direito sem "hipótese normativa", "norma jurídica", "dever jurídico", "preceito normativo", "sujeito de direito", "fato jurídico" etc.

Nada obstante grande, o número de conceitos fundamentais não é ilimitado.

São exemplos de conceitos lógico-jurídicos: fato jurídico, relação jurídica, invalidade, efeito jurídico, ato jurídico, ato-fato jurídico, fonte do direito, norma jurídica, regra jurídica, princípio, sujeito de direito, capacidade, personalidade, objeto de direito etc.

Há conceitos lógico-jurídicos estritamente relacionados ao processo: competência, decisão, cognição, admissibilidade, norma processual, processo, demanda, legitimidade, pretensão processual, capacidade de ser parte, capacidade processual, capacidade postulatória, prova, presunção, tutela jurisdicional etc.

Conceito lógico-jurídico como produto cultural. Universalidade e historicidade.

Exatamente porque produzido pelo conhecimento humano, o conceito lógico-jurídico é também um produto cultural. O conceito é formulado a partir da observação do fenômeno jurídico, que também é manifestação cultural. Nada obstante tenha a pretensão de servir à compreensão de qualquer ordenamento jurídico (pretensão universalizante), nasce da observação do Direito como fato. Como todo conceito, procede da experiência, portanto.

Aqui surge um aparente paradoxo: se se trata de manifestação cultural, e cada cultura tem as suas peculiaridades, como pode esse tipo de conceito servir a qualquer cultura?

Para desenvolver um repertório teórico que permita visualizar as diferenças entre os diversos sistemas jurídicos (diversas manifestações culturais), cumpre ao filósofo do direito a tarefa de identificar e selecionar aquilo que é comum a qualquer Direito positivo. O conceito lógico-jurídico funciona como a luz negra que revela as manchas do tecido branco (aparentemente) imaculado.

Um exemplo. O conceito de sujeito de direito é lógico-jurídico: todo ente que puder ser titular de uma situação jurídica. A identificação de quem seja sujeito de direito dependerá do exame de cada ordenamento jurídico. A partir do conceito de sujeito de direito, que é universal, será possível perceber que, em um dado ordenamento, a mulher é sujeito de direito e, em outro, objeto de direito.

Outro exemplo, agora em tema de direito processual. Capacidade processual é um conceito lógico-jurídico: aptidão de um ente para praticar ato jurídico sozinho. Para que se possa saber quem tem capacidade processual, será preciso examinar o Direito positivo. Valendo-se do conceito de capacidade processual, será possível notar que, em um dado ordenamento, uma mulher sozinha pode praticar atos processuais, ao passo que, em outro, apenas poderá fazê-lo se estiver assistida pelo seu marido; que, em um país, qualquer pessoa com mais de 18 anos de vida pode depor como testemunha, enquanto, em outro, judeus, negros, homossexuais, mulheres etc. não têm capacidade para o testemunho. 

A elaboração desse tipo de conceito determina-se pelas contingências do seu tempo: repertório teórico existente, ideologias predominantes, concepções filosóficas prevalecentes, peculiaridades dos objetos investigados, limitações materiais para pesquisa e desenvolvimento do método etc. Tais conceitos são convencionalmente construídos e, exatamente por isso, também por convenção podem ser revistos.

O progresso do pensamento filosófico revela-se precisamente quando se superam conceitos fundamentais consolidados. [...]. A experiência pode eliminá-los, se inadequados, ou suprir-lhes os defeitos. Não há qualquer problema em qualificá-los como a priori. Rigorosamente, aliás, todo conhecimento humano é provisório.

O conceito lógico-científico, enfim, precisa passar pelo teste de realidade. [...] Um enunciado científico carateriza-se, sobretudo, pela circunstância de ser suscetível de revisão, poder ser criticado e substituído por outro enunciado, que se revele mais adequado. Se o conceito perde o seu alcance ("portata") teórico e a sua capacidade explicativa, ele deve ser revisto. [...].

Funções dos conceitos jurídicos fundamentais (lógico-jurídicos).

Os conceitos jurídicos fundamentais (lógico-jurídicos) têm uma dupla função: servem de base à elaboração dos conceitos jurídico-positivos e auxiliam o operador do Direito na tarefa de compreender, interpretar e aplicar o ordenamento jurídico. Têm, sobretudo, função heurística: permitem e facilitam o conhecimento do Direito. [...].

Convém esmiuçar essas duas funções.

O conceito lógico-jurídico serve de base para o conceito jurídico-positivo.

A noção de negócio jurídico (conceito lógico-jurídico) é pressuposto para a compreensão das diversas espécies de contrato, cujos conceitos são jurídico-positivos; não se pode estudar a tipologia dos atos administrativos (recheada de conceitos jurídico-positivos como decreto, resolução, regimento, portaria etc) desconhecendo o que seja um ato jurídico (conceito lógico-jurídico); para que se entenda o que é um tributo (conceito jurídico-positivo), é indispensável saber o que é fato jurídico e um dever jurídico, conceitos lógico-jurídicos.

Entre o conceito lógico-jurídico e o conceito jurídico-positivo há uma relação de dependência: o conceito jurídico-positivo é uma especificação do conceito lógico-jurídico, que é genérico. Não há qualquer diferença na compreensão dos conceitos jurídico-positivos processuais.

Os conceitos de petição inicial e de recurso (jurídico-positivos) pressupõem a compreensão do que seja um ato jurídico postulatório (conceito lógico-jurídico). [...].

Os conceitos lógico-jurídicos também servem à compreensão do Direito. "O conceito fornece as determinações mínimas e essenciais que servem de "criterium" para encontrar o objeto onde ele se acha". O conceito lógico-jurídico indica qual é a estrutura que um determinado objeto tem.

Para que se possa investigar o processo, é preciso saber qual é o fato social que pode ser conhecido como processo. Simplesmente: para que se possa investigar o processo, é preciso saber o que é processo. Para que se distingam as nulidades e as anulabilidades (conceitos jurídico-positivos), é indispensável saber em que consiste o plano de validade de um ato jurídico (conceito lógico-positivo); para que se identifique a eficácia jurídica da posse, variável conforme o Direito positivo, os conceitos lógico-jurídicos  de fato jurídico, situação jurídica, dever, direito subjetivo etc. não podem ser ignorados.

A interpretação e a aplicação do Direito processual positivo também não prescindem dos conceitos lógico-juridicos, especialmente daqueles mais proximamente relacionados ao fenômeno processual.

Impossível compreender as diferenças entre incompetência absoluta e a incompetência relativa (conceitos jurídico-positivos) ignorando o que seja competência (conceito lógico-jurídico). [...].

Considerações finais sobre o uso e a função dos conceitos jurídicos fundamentais.

Não parece haver dúvida sobre a existência de conceitos jurídicos fundamentais, muito menos de sua importância: são imprescindíveis para o desenvolvimento de uma ciência jurídica, que se ponha a fornecer diretrizes para uma aplicação racional, coerente e justa do Direito.

É preciso que se perceba, poré, que, se os conceitos jurídicos fundamentais servem à compreensão do Direito, não podem, ao mesmo tempo, impedir o conhecimento do Direito.

Por vezes, o cientista do Direito, apegado excessivamente a um conceito jurídico fundamental, sem perceber a sua obsolescência ou a sua inutilidade, simplesmente ignora fenômenos jurídicos que não se encaixam em determinado modelo conceitual.

Isso aconteceu, por exemplo, com o conceito tradicional de norma jurídica - que pressupunha uma hipótese fática e um consequente normativo -, inservível à compreensão das normas-princípio. A doutrina, com base no conceito tradicional de norma jurídica, não reconhecia o princípio como norma jurídica. Havia a necessidade de reconstruir o conceito de norma jurídica e, simultaneamente, construir o conceito de princípio como norma.

Assim, é preciso reafirmar, agora de maneira consolidada, o que se disse linhas atrás sobre a postura que o cientista do Direito deve ter diante de um conceito fundamental.

a) É preciso compreendê-lo como ferramenta (instrumento) para o conhecimento do Direito, com nítida função heurística. Como todo instrumento, não serve para a solução de qualquer problema, bem como o problema não desaparece  porque não se possui a ferramenta adequada para solucioná-lo.

b) Os conceitos jurídicos fundamentais são essencialmente "reconstruíveis": se perdem a sua funcionalidade, sua aptidão para a compreensão da realidade, não se pode ignorar a realidade para preservar o conceito, que deve ser reconstruído. [...].

c) A Analítica Jurídica não é o único repertório de que se deve valer o cientista do Direito. Não se faz ciência do Direito apenas manipulando os conceitos jurídicos fundamentais. A afirmação, que pode soar como platitude, justifica-se para evitar a crítica de que esta tese ignora, por exemplo, as funções da Hermenêutica e da Axiologia Jurídicas para a Ciência do Direito.".