domingo, 28 de agosto de 2016

Ética e Razão

     A alienação vem de longe. Santo Agostinho, que nasceu em 354 e faleceu em 28/08/430, descreveu: "As pessoas viajam para admirar a altura das montanhas, as imensas ondas dos mares, o longo percurso dos rios, o vasto domínio do oceano, o movimento circular das estrelas, e no entanto, elas passam por si mesmas sem se admirarem.". Antes dele, desde o "Conhece-te a ti mesmo", do oráculo de Delfos (consta que a inscrição na íntegra expressava: "Conhece a ti mesmo que conhecerás aos deuses e ao universo"), a orientação já era no sentido de descobrir a própria personalidade, entender-se, encontrar a verdade para torna-se livre. Diante disso, é possível entender que quem promove a destruição, qualquer que seja ela, a guerra, por exemplo, está em perfeita saúde mental? Fazendo um desvio humorado: 
Como vai?
Sócrates: "Não sei."
Platão: "Da maneira ideal."
Epicuro: "De través."
Jó: "Não me lamento."
Descartes: "Bem, penso seu."
Berkeley: "Parece-me que bem."
Shakespeare: "Como quiserem."
Garibaldi: "Tenho mil razões para estar contente."
Darwin: "A gente sempre se adapta."
Pirandello: "De acordo com quem?"
Freud: "Diga você."
Dickens: "Tempos duros, mas tenho grandes esperanças."
Einstein: "Com relação a quem?"
McLuhan: "Meio a meio."
Austin: "Bem, eu juro."
Bernard: "Basta ter coração." (Umberto Eco).
     Voltando ao tema, o homem busca saber sobre tudo menos sobre a si mesmo. Houve um tempo em que as criaturas resistiam à admissão de que a sua conduta estivesse determinada por algo que não fosse a própria e espontânea vontade. Na realidade, é quase impossível à pessoa alienada bastar-se a si mesma e da conformidade alienada é o processo de nivelamento dos gostos e das ideias. Segundo Erich Fromm, "a descoberta da livre associação por Freud tinha por objetivo averiguar o que ocorria em vós sob a superfície, descobrir quem realmente sois.[...] Se falamos da razão, temos que começar por dizer a que faculdade humana nos referimos.[...] devemos diferenciar a inteligência e a razão. Por inteligência entendo a habilidade para manipular conceitos com o objetivo de conseguir algum fim prático. [...] Por outro lado, a razão visa a compreensão; esforça-se por descobrir o que está por trás da superfície, por reconhecer o cerne, a essência da realidade que nos rodeia. A razão não carece de função, mas sua missão não consiste tanto em impulsionar a existência física tanto quanto a existência mental e espiritual. Porém muitas vezes, tanto na vida individual como social, a razão é necessária para predizer (tendo em conta que com frequência a predição depende do conhecimento de forças que operam por trás da superfície), e a predição é por vezes necessária até a sobrevivência física. A razão exige relação e sensação do eu. Se sou apenas um receptor passivo de impressões, ideias, opiniões, posso compará-las e manipulá-las, mas não posso penetrá-las. [...] Estreitamente relacionada com isso está a falta de sentido de realidade, que é tão característica da personalidade alienada. [...] Que realistas são esses que estão brincando com armas que podem levar à destruição da toda a civilização moderna, se não mesmo da própria Terra! [...] a verdade é que o homem moderno exige uma falta surpreendente de realismo com relação a tudo o que realmente importa: para o sentido da vida e da morte, para a felicidade e o sofrimento, para o sentimento e o pensamento sério. [...] A inteligência é suficiente para manipular um setor de uma unidade maior, ... [...] Porém a razão só pode desenvolver-se se está engrenada com o todo, se trata com entidades observáveis e manejáveis. Assim como nossos olhos e ouvidos funcionam somente dentro de determinados limites quantitativos de comprimento de onda, também a nossa razão está limitada pelo que é observável em seu conjunto e em seu funcionamento total. Em outras palavras: para além de certas dimensões, perde-se inevitavelmente a noção do concreto e dá-se a abstração, e com ela se desvanece o sentido da realidade. [...] Ao observar a qualidade do pensamento do homem alienado, é surpreendente ver como se desenvolveu sua inteligência e como decaiu sua razão. [...] Até mesmo do Século XIX até aos nosso dias, parece ter ocorrido um aumento observável de estupidez - se entendemos por estupidez o contrário da razão e não da inteligência. [...] Os novos cérebros eletrônicos são, certamente, uma boa ilustração do que entendemos por inteligência. [...] A máquina pode reproduzir e até melhorar a inteligência, mas não pode simular a razão. Ao tratar da ética, ele descreve: "A ética, pelo menos no sentido da tradição greco-judaico-cristã, é inseparável da razão. A conduta ética se baseia na faculdade de fazer juízos sobre valores com base na razão; significa decidir entre o bem e o mal, e agir de acordo com a decisão. O uso da razão pressupõe a presença de uma personalidade, de um eu, e o mesmo se verifica no tocante à conduta e ao julgamento éticos. Além disso, a ética, seja da religião monoteísta ou do humanismo secular, baseia-se no princípio de que nenhuma instituição nem coisa é mais elevada do que qualquer indivíduo humano, que a finalidade da vida é desenvolver o amor e a razão do homem, e que todas as outras atividades do homem têm que subordinar-se a essa finalidade. [...] Com relação às coisas que se trocam no mercado existe outro código quase ético, o da equidade. A questão está em saber se elas são trocadas a um preço equitativo, sem que intervenham no trato nem a astúcia nem a força; essa equidade, que não é nem boa nem má, é o princípio ético do mercado, e é o princípio ético que governa a vida da personalidade mercantil. É indubitável que este princípio da equidade leva ao desempenho de certo tipo de conduta ética. Se uma pessoa atua de acordo com o código da equidade, não mente, não engana nem usa a força, e até oferece aos outros uma oportunidade. Porém o amor ao próximo, o sentimento de identificação com ele, a dedicação da vida ao desenvolvimento das potencialidades espirituais não fazem parte da ética da equidade. [...] O monoteísmo é incompatível com a alienação e com a nossa ética da equidade. Faz do desenvolvimento do homem, de sua salvação a finalidade suprema da vida, finalidade que jamais poderá subordinar-se a qualquer outra. Se Deus é incognoscível e indefinível, e se o homem é feito à Sua Imagem, o homem é indefinível, o que significa não se poder considerá-lo nunca uma coisa.".
     Termino este texto com duas indagações: Porque procurar ver? E porque fixar especialmente o nosso olhar sobre o objeto humano? Ver. Poder-se-ia dizer que toda vida consiste em ver, senão finalmente, pelo menos essencialmente. Se conhecer é verdadeiramente tão vital, devemos dirigir a nossa atenção de preferência para o homem. Por duas razões que duas vezes o faz centro do mundo, o homem impõe-se ao nosso esforço para ver, como chave do Universo.

domingo, 21 de agosto de 2016

A Arte da Vida

     "O vento nunca é favorável a quem não tenha um porto de chegada previsto" (Sêneca), ao mesmo tempo, "ninguém determina do princípio ao fim o caminho que pretende seguir na vida; só nos decidimos por trechos, na medida em que vamos avançando" (Montaigne).
     Nessa linha de pensamento, depois que se descobre o que é poder de verdade a vida ganha em qualidade. Assim vamos trabalhar dois livros: um de Zugmunt Bauman (A Arte da Vida, edição 2009); outro, de Erich Fromm (Psicanálise da Sociedade Contemporânea, edição 1959). Indagações evidenciadas no livro de Bauman estão assim: "O que é felicidade? É possível alcançá-la definitivamente? Como? O que há de errado com a felicidade? A pergunta pode desconcertar - e é essa a intenção de Zygmunt Bauman. Um dos mais originais e influentes pensadores em atividade, Bauman reflete, neste novo livro, sobre os parâmetros que norteiam nossa busca pela felicidade - busca que, muitos concordarão, preenche a maior parte de nossas vidas. Na sociedade atual, somos levados a acreditar que o propósito da arte da vida pode e deve ser a felicidade, embora não seja claro o que ela é. A imagem de um estado de felicidade muda constantemente e permanece como algo ainda a ser atingido. Espera-se, acertadamente ou não, que todos nós daremos sentido e forma às nossas vidas usando nossos próprios recursos, mesmo se não tivermos as ferramentas mais adequadas. E somos elogiados ou censurados pelos resultados, o que alcançamos pelos resultados, o que alcançamos ou deixamos de alcançar. A arte da vida não é um catálogo de opções de vida nem um guia prático. O que se espera para a vida e como alcançá-lo são, necessariamente, uma responsabilidade individual. Este livro é antes uma exposição brilhante das condições sob as quais escolhemos nossos projetos de vida, das limitações que podem ser impostas a essas escolhas e do entrelaçamento de planejamento, causalidade e caráter que molda sua implementação. Não menos importante, este é também um estudo de como nossa sociedade - a sociedade moderna de consumidores, líquida e individualizada - influencia a forma como construímos e narramos nossas trajetórias. [...] O argumento [de Bauman] abrange, com humana ironia, de Fukuyama e teorias de negócios a Sêneca e a invenção do MaySpace, de Sarkozy e Amós Oz à teoria do caos, de Nietzsche a Levinas.". Fromm, por sua vez, quando trata da saúde mental e sociedade, sustenta: "apenas na medida em que o homem capta a realidade pode ele tornar este mundo seu; se vive de ilusões, não modifica nunca as condições que necessitam dessas ilusões. [...] o desenvolvimento da cultura é uma condição necessária ao desenvolvimento humano. [...] Uma sociedade sadia desenvolve a capacidade do homem para amar o próximo, para trabalhar criadoramente, para desenvolver sua razão e sua objetividade, para ter um sentimento de si mesmo baseado em suas próprias capacidades produtivas. Uma sociedade insana é aquela que cria hostilidade mútua e desconfiança, que transforma o homem em instrumento de uso e exploração para outros, que o priva do sentimento de si mesmo, salvo na medida em que se submete a outros ou se converte em um autômato. A sociedade pode desempenhar ambas essas funções; pode impulsionar o desenvolvimento salutar do homem, e pode impedi-lo. Na realidade, a maioria das sociedades fazem essas duas coisas, e o problema está somente no grau e na direção em que exercem sua influência positiva e sua influência negativa.".
     Disso tudo é lícito sugerir a leitura de ambos, bem como inferir das ideias apresentadas, que o leitor ao aprofundar a reflexão sobre si mesmo e sobre o mundo que o cerca, poderá livrar-se das nocivas ilusões, planejar no presente o próprio futuro, com o objetivo de permitir-se também o exercício de pensar sobre questões ainda tão relevantes para a contemporaneidade. Ao estudante de Direito, em especial, é fundamental essa compreensão porque é ele o guia que a sociedade espera.

domingo, 14 de agosto de 2016

Ética Humanística: Emancipação

     "Maravilhas são muitas, e nenhuma é mais maravilhosa que o Homem." (Sófocles).
     Sob título "Emancipação", escrevera Zygmunt Bauman, em "Modernidade Líquida", que: "Ao fim das "três décadas gloriosas" que se seguiram ao final da Segunda Guerra Mundial - as três décadas de crescimento sem precedentes e de estabelecimento da riqueza e da segurança econômica no ´próspero Ocidente - Herbert Marcuse reclamava: "Em relação a hoje e à nossa própria condição, creio que estamos diante de uma situação nova na história, porque temos que ser libertados de uma sociedade rica, poderosa e que funciona relativamente bem ... O problema que enfrentamos é a necessidade de nos libertarmos de uma sociedade que desenvolve em grande medida as necessidades materiais e mesmo culturais do homem - uma sociedade que, para usar um slogan, cumpre o que prometeu a uma parte crescente da população. E isso implica que enfrentamos a libertação de uma sociedade na qual a libertação aparentemente não conta com uma base de massas.". Deveremos nos emancipar, "libertar-nos da sociedade", não era problema para Marcuse. O que era um problema - o problema específico para a sociedade que "cumpre o que prometeu" - era a falta de uma "base de massas" para a libertação. Para simplificar: poucas pessoas desejavam ser libertadas, menos ainda estavam dispostas a agir para isso, e virtualmente ninguém tinha certeza de como a "libertação da sociedade" poderia distinguir-se do estado em que se encontrava. "Libertar-se" significa literalmente libertar-se de algum tipo de grilhão que obstruiu ou impede os movimentos; começar a sentir-se livre para se mover ou agir. "Sentir-se livre" significa não experimentar dificuldade, obstáculo, resistência ou qualquer outro impedimento aos movimentos pretendidos ou concebíveis. Como observou Arthur Schopenhauer, a "realidade" é criada pelo ato de querer; é a teimosa indiferença do mundo em relação à minha intenção, a relutância do mundo em se submeter à minha vontade, que resulta na percepção do mundo como "real", constrangedor; limitante e desobediente. Sentir-se livre das limitações, livre para agir conforme os desejos, significa atingir o equilíbrio entre os desejos, a imaginação e a capacidade de agir: sentimo-nos livres na medida em que a imaginação não vai mais longe que nossos desejos e que nem uma nem os outros ultrapassam nossa capacidade de agir. O equilíbrio pode, portanto, ser alcançado e mantido de duas maneiras diferentes: ou reduzindo os desejos e/ou a imaginação, ou ampliando nossa capacidade de ação. Uma vez alcançado o equilíbrio, e enquanto ele se mantiver, "libertação" é um slogan sem sentido, pois falta-lhe força motivacional. Tal uso nos permite distinguir entre liberdade "subjetiva" e "objetiva" - e também entre a "necessidade de libertação" subjetiva e objetiva. Pode ser que o desejo de melhorar tenha sido frustrado, ou nem tenha tido oportunidade de surgir (por exemplo, pela pressão do "princípio de realidade" exercido, segundo Sigmund Freud, sobre a busca humana do prazer e da felicidade); as intenções, fossem elas realmente experimentadas ou apenas imagináveis, foram adaptadas ao tamanho da capacidade de agir, e particularmente à capacidade de agir razoavelmente - com chance de sucesso. Por outro lado, pode ser que, pela manipulação direta das intenções - uma forma de "lavagem cerebral" - nunca se pudesse chegar a verificar os limites da capacidade "objetiva" de agir, em menos ainda saber quais eram, em primeiro lugar, essas intenções, acabando-se, portanto, por colocá-las abaixo do nível da liberdade "objetiva". A distinção entre liberdade "subjetiva" e "objetiva" abriu uma genuína caixa de Pandora de questões embaraçosas como "fenômeno versus essência" - de significação filosófica variada, mas no todo considerável, e de importância política potencialmente enorme. Uma dessas questões é a possibilidade de que o que se sente como liberdade não seja de fato liberdade; que as pessoas poderem estar satisfeitas com o que lhes cabe mesmo que o lhes cabe esteja longe de ser "objetivamente" satisfatório; que, vivendo na escravidão, se sintam livres e, portanto, não experimentem a necessidade de se libertar, e assim percam a chance de se tornar genuinamente livres. O corolário dessa possibilidade é a suposição de que as pessoas podem ser juízes incompetentes de sua própria situação, e devem ser forçadas ou seduzidas, mas em todo caso guiadas, para experimentar a necessidade de ser "objetivamente" livres e para reunir a coragem e a determinação para lutar por isso. Ameaça mais sombria atormentava o coração dos filósofos: que as pessoas pudessem simplesmente não querer ser livres e rejeitassem a perspectiva da libertação pelas dificuldades que o exercício da liberdade pode acarretar.".
     Segundo Erich Fromm, "É obrigação do estudante da ciência do homem não procurar soluções "harmoniosas", sofismando com essa contradição, e sim vê-la nitidamente. A missão do pensador ético é sustentar e fortalecer a voz da consciência humana, reconhecer o que é bom e o que é mau para o homem, sem levar em conta se isso é bom ou mau para a sociedade em um período especial de sua evolução. Ele talvez seja aquele que "clama no deserto", porém somente se esta voz permanecer viva e intransigente o deserto se converterá em terra fértil. A contradição entre a ética socialmente imanente e a ética universal se reduzirá e tenderá a desaparecer, na mesma proporção em que a sociedade se torne verdadeiramente humana, isto é, cuide do pleno desenvolvimento de todos os seus membros. [...] a ética humanista adota a posição de que se o homem está vivo, sabe o que é permitido, e de que estar vivo significa ser produtivo, empregar seus próprios poderes não para uma finalidade que o transcenda, mas para si próprio, para compreender sua própria existência, para ser humano. [...] Nosso período é um período de transição. A Idade Média não terminou no século XV e a era moderna não se iniciou imediatamente depois. Fim e princípio implicam um processo que durou mais de 400 anos - um prazo bem curto, de fato, se o medirmos em termos históricos e não da duração de nossa vida. Nosso período é um fim e um começo cheio de possibilidades. Se eu repetir a pergunta formulada no início deste livro, qual a de saber se temos razão para nos orgulharmos e para termos esperança, a resposta será uma vez mais afirmativa, porém com uma restrição que decorre do que estivemos examinando: nem o bom nem o mau resultado é automático ou preestabelecido. A decisão está nas mãos do homem. Está em sua capacidade de levar a sério a si mesmo, a sua vida e felicidade; em sua disposição para enfrentar o problema moral seu e de sua sociedade. Está em sua coragem para ser ele mesmo e por si mesmo.". Enfim, conforme Ibsen: "Somos pensamentos ... Somos um lema ... Somos canções ... Somos lágrimas ... Somos ações ...".

sábado, 6 de agosto de 2016

Conceito de Amor Produtivo e a Responsabilidade

     Segundo Machado de Assis; "Basta amar para escolher bem". Numa página sublime, Erich Fromm em 'Análise do Homem' o descreve: "A experiência humana se caracteriza pelo fato do homem ser isolado e separado do mundo; não podendo suportar a separação, ele se vê impelido a procurar relacionar-se e unir-se com seu próximo. São muitas as maneiras pelas quais ele pode satisfazer essa necessidade, mas somente uma em que ele, como entidade original, permanece intato; somente uma em que seus próprios poderes se expandem à medida que ele se relaciona com os outros. É próprio do paradoxo da existência humana ter o homem simultaneamente de procurar proximidade e independência, união com outros e preservação de sua originalidade e particularidade (ligação à distância, de Charles Morris). Conforme mostramos, a solução para esse paradoxo - e para o problema moral do homem - é a produtividade.
     É possível relacionar-se com o mundo por meio de ação e de compensação. O homem produz coisas e, ao fazê-lo, exerce seus poderes sobre a matéria. O homem compreende o mundo, intelectual e emocionalmente, através do amor e através da razão. Seu poder de raciocínio habilita-o a penetrar a superfície e aprender a essência de seu objeto, relacionando diretamente com este. Seu poder de amor habilita-o a romper a muralha que o separa de outra pessoa e a compreender esta. Conquanto o amor e a razão sejam duas formas diferentes de compreender o mundo e nenhuma delas possa existir sem a outra, elas são manifestações de poderes diferentes, o da emoção e o do pensamento, e, por isso, devem ser estudadas separadamente.
     O conceito de amor produtivo é de fato bem diferente daquilo a que frequentemente se dá o nome de amor. É difícil encontrar-se palavra mais ambígua e desconcertante do que a palavra "amor". Ela é empregada para indicar quase que todo sentimento à exceção de ódio e aversão. Abrange tudo, desde o amor por sorvete ao amor por uma sinfonia, desde uma simpatia moderada ao mais ardoroso sentimento de intimidade. As pessoas acham que estão amando se estiverem "caídas" por alguém; dão o nome de amor à sua dependência e também ao domínio que exercem sobre outras. Elas crêem, com efeito, que nada é mais fácil do que amar; acham que a dificuldade está apenas em encontrar o objeto adequado e que seu insucesso em encontrar felicidade no amor deve-se exclusivamente à sua falta de sorte para encontrar o parceiro certo. Todavia, ao contrário de todo esse modo de pensar confuso e cerebrino, o amor é um sentimento muito específico, e, apesar de todo ser humano ter certa capacidade de amar, sua realização é uma das mais árduas conquistas. O amor autêntico tem suas raízes na produtividade e pode chamar-se, apropriadamente, "amor produtivo". Sua essência é a mesma, quer se trate de amor materno pelo filho, quer de nosso amor pelos semelhantes, quer de amor erótico entre dois indivíduos. [...] Embora os objetos do amor difiram e, consequentemente, a intensidade e a qualidade do próprio amor, certos elementos básicos podem ser considerados característicos de todas as formas de amor produtivo. São eles desvelo, responsabilidade, respeito e conhecimento.
     Desvelo e responsabilidade denotam que o amor é uma atividade e não uma paixão que subjugue a pessoa, nem um afeto pelo qual esta seja "afetada". O elemento de desvelo e responsabilidade no amor produtivo foi admiravelmente descrito no livro de Jonas. Deus disse a Jonas para ir a Nínive prevenir seus habitantes que seriam punidos se não se corrigissem. Jonas foge do cumprimento de sua missão porque receia que o povo de Nínive venha a arrepender-se e Deus lhe perdoe. Ele é um homem com um forte sentimento de ordem e da lei, mas sem amor. Entretanto, em sua tentativa de fuga vai parar no ventre de uma baleia, simbolizando o estado de isolamento e aprisionamento que lhe foi acarretado por sua falta de amor e solidariedade. Deus o salva e Jonas vai a Nínive. Ele prega aos habitantes conforme Deus lhe ordena e sucede exatamente o que receara. Os homens de Nínive arrependem-se de seus pecados, mudam de proceder e Deus os perdoa, resolvendo não destruir a cidade. Jonas fica intensamente zangado e desapontado: ele queria que fosse feita "justiça", e não misericórdia. Afinal, encontra algum consolo à sombra de uma árvore que Deus fizera nascer para protegê-lo do sol. Mas, quando Deus faz a árvore murchar, Jonas sente-se deprimido e queixa-se amargamente a Deus. Este responde: "Tiveste compaixão da cabaceira, pela qual não trabalhaste e que não fizestes crescer, que numa noite nasceu e noutra pereceu. E, não hei eu de ter compaixão da grande cidade de Nínive, em que estão mais de cento e vinte mil pessoas, que não sabem discernir entre sua mão direita e sua mão esquerda, e também muito gado"? A resposta de Deus a Jonas deve ser interpretada simbolicamente. Deus explica a Jonas que a essência do amor reside em "trabalhar" por algo e "fazer algo crescer", por amor e trabalho são inseparáveis. Ama-se aquilo por que se trabalha, e trabalha-se pelo que se ama.
     A história de Jonas dá a entender que amor não pode ser dissociado de responsabilidade (ver Hans Jonas - Princípio Responsabilidade). Jonas não se sente responsável pela vida de seus irmãos. Ele, como Caim, poderia perguntar: "Sou eu o guardião de meu irmão?". A responsabilidade não é um dever imposto  de fora à pessoa, mas uma resposta desta a um pedido que ela julga interessar-lhe. Responsabilidade e resposta têm a mesma origem, respondere = "responder"; ser responsável quer dizer estar pronto a responder.
     O amor materno é o exemplo mais frequente e mais facilmente entendido de amor produtivo; sua própria essência vem a ser desvelo e responsabilidade. Durante o parto, o corpo da mãe "trabalha" pelo filho e, depois, seu amor consiste na labuta para fazer o filho crescer. O amor materno não depende de condições que a criança tenha de satisfazer para ser amada: é incondicional, baseado unicamente no pedido do filho e na resposta da mãe. Não é de admirar que o amor materno tenha sido um símbolo da mais alta forma de amor na arte e na religião. A palavra hebraica que indica o amor de Deus pelo homem e o amor deste por seu semelhante é rachamim, cujo radical rechem = útero.
     Não é tão evidente, no entanto, a conexão de desvelo e responsabilidade com o amor individual; crê-se que o fato de se apaixonar já é a culminação do amor, quando é deveras o começo e apenas uma oportunidade para a realização do amor. Acredita-se que o amor é o resultado de uma qualidade misteriosa graças à qual duas pessoas se sentem mutuamente atraídas, um acontecimento que ocorre sem esforço. Na verdade, a solidão do homem e seus desejos sexuais tornam fácil apaixonar-se e isso nada tem de misterioso, mas é um ganho que se perde rapidamente, uma vez alcançado. Ninguém é amado acidentalmente; a capacidade de cada um para amar produz amor - tal como mostrar-se interessado faz o indivíduo interessante. As pessoas preocupam-se com a questão de saber se são ou não atraentes, esquecendo-se que a essência de seu poder de sedução é sua própria capacidade de amar. Amar produtivamente uma pessoa implica cuidar de e sentir-se responsável pela vida dela, não só por sua existência física como também pelo incremento e desenvolvimento de todos os seus poderes humanos. Amar produtivamente não se coaduna com passividade nem com a atitude de mero observador face à vida da pessoa amada: implica esforço, cuidado e responsabilidade por seu desenvolvimento.
     A despeito da universalidade das religiões monoteístas do Ocidente e dos conceitos políticos progressistas que se exprimem na ideia de que "todos os homens são criados iguais", o amor à humanidade não se converteu em uma experiência comum. O amor à humanidade é encarado como uma realização que, na melhor das hipóteses, decorre do amor a um indivíduo, ou como um conceito abstrato a ser concretizado somente no porvir. Mas o amor ao homem não pode ser separado do amor a um indivíduo. Amar produtivamente uma pessoa significa relacionar-se com sua essência humana, com o que nela representa a humanidade. O amor a um indivíduo, enquanto divorciado do amor ao homem em geral, só pode referir-se ao que é superficial e acidental; por força, tem de permanecer pouco profundo. Apesar de se poder dizer que o amor ao homem difere do amor materno, porquanto a criança é indefesa e nossos semelhantes adultos não o são, também pode-se dizer que mesmo essa diferença só existe em termos relativos. Todos os homens carecem de ajuda e dependem uns dos outros. A solidariedade humana é uma condição indispensável à expansão de qualquer indivíduo.
     O desvelo e a responsabilidade são elementos constitutivos do amor, mas sem respeito por e conhecimento da pessoa amada, o amor degenera em dominação e possessividade. Respeito não é medo nem reverência; indica, segundo a origem da palavra (respicere = olhar), a capacidade de ver uma pessoa tal como é, de ter consciência de sua individualidade e originalidade. Não é possível respeitar alguém sem o conhecer; o desvelo e a responsabilidade seriam cegos se não fossem orientados pelo conhecimento da individualidade da pessoa. [...]". Enfim: viver como uma arte!