terça-feira, 21 de abril de 2015

Deontologia

     Numa primeira aproximação, a semântica do conceito de deontologia, a exemplo do conceito de justiça, é polivalente: possui um significado bíblico, teológico, lógico, filosófico, jurídico, ético, político, econômico, social, religioso e laico. Possui, portanto, um conceito análogo: nem univoco nem equivoco. Exprime um comportamento pessoal ou social, seja nas microestruturas, seja nas macroestruturas. Mesmo assim, a despeito da diversidade de significado, existe uma continuidade fundamental na cultura ocidental. Na filosofia moral contemporânea, é uma das teorias normativas segundo a qual as escolhas são moralmente necessárias, proibidas ou permitidas. Inclui-se entre as teorias morais que orientam nossas escolhas sobre o que deve ser feito ou, na parte da filosofia que trata dos princípios fundamentos e sistemas da moral. O termo foi introduzido em 1834, por Jeremy Bentham, para referir-se ao ramo da ética cujo objeto de estudo são os fundamentos do dever e as normas morais. É conhecida sob o nome de "Teoria do Dever" e é também um dos dois ramos principais da Ética Normativa, juntamente com a axiologia (teoria dos valores). Pelo princípio lógico, visa a sequência de atos e meios para oferecer segurança com o fim de descobrir a verdade e evitar erros; pelo princípio jurídico, proporciona às partes no processo igualdades de tratamento na demanda e justiça na decisão atribuindo o direito a quem for seu titular; pelo princípio político, proporciona a garantia social dos direitos, visando a pacificação social e tem correspondentes princípios epistemológicos na Constituição Federal, por exemplo: o princípio da lealdade processual, da boa fé e o do duplo grau de jurisdição; pelo princípio econômico, dita que as lides não podem ser dispendiosas e tende a apresentar como resultado na prática os ditames do princípio da economia processual. Assim, a deontologia, em Kant, fundamenta-se em dois conceitos que lhe dão sustentação: a razão prática e a liberdade. Agir por dever é o modo de conferir à ação o valor moral; por sua vez, a perfeição moral só pode ser atingida por uma vontade livre. O imperativo categórico no domínio da moralidade é a forma racional do "dever-ser", determinando a vontade submetida à obrigação. A deontologia também se refere ao conjunto de princípios e regras de conduta - os deveres - inerentes a uma determinada profissão. Assim, cada profissão está sujeita a uma deontologia própria e regular o exercício da profissão, conforme o Código de Ética dessa categoria. São normas estabelecidas pelos próprios profissionais, tendo em vista não exatamente a qualidade moral e sim a correção de suas intenções e ações, deveres ou princípios, nas relações entre a profissão e a sociedade. Tem-se que o primeiro Código de Deontologia foi elaborado na área médica, nos Estados Unidos. No domínio do direito, a deontologia jurídica, como é nominada, é a ciência que cuida dos deveres dos operadores do direito, bem como de seus fundamentos éticos e legais. Etimologicamente, deontologia significa ciência dos deveres. Assim, deontologia jurídica, é essa ciência aplicada àqueles que exercem alguma profissão jurídica, em especial os advogados, magistrados e promotores de justiça. Sobre a ética do advogados, há duas espécies de requisitos que o indivíduo deve preencher para exercer a profissão de advogado: os legais e os pessoais. Os requisitos legais, para o exercício da advocacia (ou seja, os decorrentes da lei: a conclusão do curso de bacharel em Direito e ser aprovado no exame de ordem, etc.) conferem ao profissional capacidade técnica e capacidade legal para o exercício da profissão. Quanto aos requisitos pessoais, estes não têm previsão legal e dizem respeito à personalidade do advogado, aos seus atributos morais e intelectuais. Com efeito, para Jean Appleton, o advogado deve possuir três qualidades fundamentais: cultura geral, amor à profissão e demonstração de gosto pelo seu trabalho. Para Eduardo Couture (Os Mandamentos do Advogado) - cuja obra é considerada uma verdadeira joia das letras jurídicas, peça notável de emulação e dignificação da nobre profissão de Advogado, um espelho de sua singular inteligência, retidão e vibração humana, uma pauta de sua própria vida - o advogado é mostrado, aqui, um pouco como a vida o apresenta e outro pouco como o representa a ilusão. No Brasil, a disciplina legal da profissão de advogado encontra-se na Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil) e no Código de ètica e Disciplina, editado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, além de outras leis, como, por exemplo o Código de Processo Civil, etc. Já em Portugal, como em todos os países pertencentes à União Européia, os advogados encontram-se sujeitos ao Código de Ética dos Advogados Europeus. Quanto  ética do magistrado, o dever fundamental é o de exercer a jurisdição, que lhe foi confiada no momento da investidura no cargo. Todos os outros deveres que a lei impõe ao juiz constituem, em última análise, meios para que seja cumprido esse dever. Outro dever funcional do juiz, só não mais importante do que o primeiro, é de conhecer o direito. As regras relativas à profissão de juiz, no Brasil, encontram-se na Lei Complementar nº 35/79 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional) e espalhadas também em outros diplomas legais, como: Constituição Federal, Código de Processo Civil,  Penal e Penal Militar, Eleitoral, Código de Organização Judiciária e Regimento Interno dos Tribunais, etc. Na França, podemos tomar o juramento feito pelos magistrados como um parâmetro ético: "Juro, no serviço da legislação, cumprir minhas funções com imparcialidade e diligência, com toda lealdade, integridade e dignidade, no respeito ao segredo profissional e no dever de reserva.". Nos Estados Unidos, há um princípio ético muito valorizado que se resume na expressão "clean hands" (mãos limpas). Pode ser aplicado ao Judiciário e a todos os operadores do Direito. Significa que todos devem ser transparentes, bem intencionados e agirem com lealdade. No tocante ao promotor de justiça, como primeiros deveres do promotor de justiça e demais membros do Ministério Público, está o pleno desenvolvimento de suas funções e a fiel observância da Constituição Federal e das leis. No Brasil, regula a ética do promotor de justiça, principalmente, o Código Nacional de Ética do Ministério Público. Para considerar finalizando, ficam as palavras Luiz Guilherme Marques, juiz em Minas Gerais: "A Deontologia Jurídica deverá evoluir da simples enumeração burocrática de deveres dos operadores do Direito para a cobrança de uma conduta realmente aberta ao serviço público. Faz-se necessário que todos os segmentos realizem exames psicotécnicos para seleção de profissionais vocacionados. Sem essa triagem, continuaremos a conviver com pessoas sem nenhuma vocação para o ideal de servir, que emperram as atividades forenses. O fato da supervalorização atual do Direito, no nosso país - devido à maior quantidade de concursos públicos - fez com que muita gente pretenda ingressar nas profissões jurídicas por mera intenção de sobrevivência financeira.". De minha parte fico com a expressão sintética fixada na Constituição Federal, artigo 133. "O Advogado é essencial à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei." e com os ditames que norteou-se o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, ao instituir o Código de Ética e Disciplina, que norteou-se por princípios que formam a consciência profissional do advogado e representa imperativos da própria conduta, tais como: os de lutar sem receio pelo primado da Justiça; pugnar pelo cumprimento da Constituição e pelo respeito à Lei; fazendo com que esta seja interpretada com retidão, em perfeita sintonia com os fins sociais a que se dirige e às exigências do bem comum; ser fiel à verdade para poder servir à Justiça como um de seus elementos essenciais; proceder com lealdade e boa-fé em suas relações profissionais e em todos os atos do seu ofício; empenhar-se na defesa das causas confiadas ao seu patrocínio, dando ao constituinte o amparo do Direito e proporcionando-lhe a realização prática de seus legítimos interesses; comportar-se, nesse mister, com independência e altivez, defendendo com o mesmo denodo humildes e poderosos; exercer a advocacia com o indispensável sendo profissional, com desprendimento, jamais permitindo que o anseio de ganho material sobreleve à finalidade social do seu trabalho; aprimorar-se no culto dos princípios éticos e no domínio da ciência jurídica, de modo a tornar-se merecedor da confiança do cliente e da sociedade como um todo, pelos atributos intelectuais e probidade pessoal; agir, em suma, com a dignidade das pessoas de bem e a correção dos profissionais que honram e engrandecem e própria classe, ou seja: ter por propósito combater o bom combate.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Estudo de caso e o estágio

    Tizuko Morchida Kishimoto define o estudo de caso assim: "O estudo de caso é uma metodologia de pesquisa adequada à investigação de questões atuais da prática pedagógica, ao possibilitar o mergulho no seu contexto. Comparado a outras metodologias como a experimentação, que deliberadamente separa o fenômeno no contexto controlado de laboratório, ou a abordagem histórica, que trata de situações entre fenômeno e contexto, usualmente com eventos não-contemporâneos, o estudo de caso investiga fenômenos contemporâneos em sua totalidade e profundidade.". Júlia Oliveira-Formosinho o descreve como: "O estudo de caso tem uma longa tradição em algumas áreas do saber: a medicina, a psiquiatria, a psicanálise, a psicologia clínica, o direito. Na investigação educacional recente, o estudo de caso tem já um lugar de tal proeminência que permite falar em tradições diferenciadas na sua utilização: os estudos na esteira de Yin, os estudos no âmbito da ciência cognitiva e na tradição narrativa. [...] Escolher fazer um estudo de caso significa, da parte do investigador, antes de qualquer escolha metodológica, o interesse em um caso concreto. O primeiro interesse é, portanto, a compreensão daquele caso que, de alguma maneira, impõe-se como o centro da investigação. A compreensão que se quer construir ganha, assim, primazia em relação a qualquer outra preocupação, tal como a "generalização" dos resultados da investigação. Conduzir uma um estudo de caso para construir compreensão aprofundada é hoje corrente, no âmbito das ciências humanas e sociais, e é compatível com diferentes correntes teóricas, com diferentes técnicas de investigação e com diferentes paradigmas epistemológicos. De fato, a sua versatilidade torna-o adaptativo a uma questão central que hoje nos coloca a investigação no âmbito das ciências humanas e sociais - a da abertura da investigação aos contextos de vida e de ação dos autores.". Essas abordagens interessam de perto levando em consideração a questão do estágio. De acordo com a Lei do Estágio, "§ 2º o estágio somente poderá verificar-se em unidades que tenham condições de proporcionar experiência prática na linha de formação do estagiário, devendo o aluno estar em condições de realizar o estágio; § 3º os estágios devem propiciar a complementação do ensino e aprendizagem e ser planejados, executados, acompanhados e avaliados em conformidade com os currículos, programas e calendários escolares" (art. 1º da Lei n. 6.949, de 1977). A Lei atual - 11.788, de 25/09/2008 - é ainda mais cuidadosa em relação à complementaridade do estágio ao ensino ao prever no art. 1º que "estágio é ato educativo escolar supervisionado, desenvolvido ao ambiente de trabalho, que visa à preparação para o trabalho produtivo de educandos que estejam frequentando o ensino regular, em instituições de educação superior, de educação profissional, de ensino médio, da educação especial e dos anos finais do ensino fundamental, na modalidade profissional da educação de jovens e adultos. § 1º O estágio faz parte do projeto pedagógico do curso, além de integrar o itinerário formativo do educando. § 2º O estágio visa ao aprendizado de competências próprias da atividade profissional e à contextualização curricular, objetivando o desenvolvimento do educando para a vida cidadã e para o trabalho.". De parte das empresas, o descuido com relação à legislação pertinente pode trazer dissabores. É que a contratação de estagiário deve respeitar os requisitos legais. Inúmeras são as decisões condenatórias de empresas por inobservância da lei. Com efeito, a título ilustrativo: "É certo que o contrato de estágio não gera vínculo empregatício, entretanto a sua realização se dará mediante a observância obrigatória de requisitos legais (Leis nºs 6.454/77 e 11.788/08), como assinatura de termo de compromisso celebrado entre o estudante e a parte concedente, com interveniência da instituição de ensino, devendo, ainda, as atividades do estudante serem planejadas, executadas, acompanhadas e avaliadas em conformidade com os currículos, programas e calendários escolares. Desobedecidos quaisquer um desses requisitos, incidirá a relação de emprego." (TRT-16- 549200900416009 MA 00549-2009-004-16-00-9, Relator Luiz Cosmo da Silva Júnior; julgamento: 29/02/2012; publicação: 08/03/2012). Como a profissão jurídica e o ensino do direito estão dinamicamente relacionados em ao outro, a interação das instituições de ensino e as empresas é patente. Com efeito, para Stuckey, "as faculdades de direito desempenham um papel importante em assegurar que os estudantes, durante seus anos na universidade, obtenham as habilidades necessárias para tornarem-se competentes em suas atividades profissionais e capazes de manter os ideais da profissão jurídica.". Pois bem, o estudo de caso realizado durante o período de estágio pode ser um instrumento eficaz a proporcionar uma nova forma de administração dos conflitos pelas partes, legitimada pelo consenso e pelo Judiciário, num segundo momento, se até ele forem levados. São os operadores do direito que têm a melhor oportunidade de solução pacífica dos conflitos e para tanto devem ser educados nessa direção. O ajuizamento das questões é a última coisa a ser feita e deve ser demonstrada que todas as tentativas foram infrutíferas, sob pena de caracterizar a falta de interesse de agir.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Lei Justa: uma dinâmica ambígua

     A afirmação da existência de uma lei justa, aplicável a todos, era conforme à concepção do mundo dos estoicos. Encontramos uma expressão eloquente nesta passagem de Cícero: "Existe uma lei verdadeira, razão reta conforme à natureza, presente em todos, imutável, eterna; ela chama o homem ao bem com seus mandamentos e o desvia do mal com suas interdições, seja que ordene ou proíba, ela não se dirige em vão às pessoas de bem, mas não exerce a menor influência sobre os maus. Não é permitido infirmá-la por outras leis, nem derrogar um de seus preceitos; é impossível ab-rogá-la por inteiro. Nem o Senado nem o povo pode nos libertar dela, e não se deve buscar fora de nós alguém para explicá-la e interpretá-la. Ela não será diferente nem em Roma nem em Atenas, e não será no futuro diferente do que é hoje, mas uma única lei, eterna  e inalterável, regerá a um só tempo todos os povos, em todos os tempos; um único Deus é, de fato, como o mestre e o chefe de todos. Ele que é o autor dessa lei, que a promulgou e a sancionou. Quem não a obedece foge de si mesmo, renegando sua natureza humana e se reserva os maiores castigos, mesmo que logre escapar aos outros suplícios [o dos homens]." (Da República, III, XXII, 33). Essa descrição até parece uma profecia. É como acentua Hans-Georg Flickinger (Entre Caridade, Solidariedade e Cidadania, Porto Alegre, EDIPUCRS, 2000, p.5) Cada vez mais, o mundo atual interconecta-se. No decorrer das últimas décadas, observa-se uma interpenetração crescente não só entre as diversas culturas, também a nível técnico-científico ou sócio-político. Então, as categorias tradicionais, por meio das quais nos habituamos, antes, a marcar as diferenças profundas encontradas em âmbito global, não cumprem mais este papel diferenciador, na medida em que a interdependência dos "mundos" torna-se uma padrão novo em nosso cotidiano. Atualmente, não faz mais sentido falar de diferenças entre o Primeiro e Terceiro Mundos, sem mencionar a infiltração não somente do Primeiro no Terceiro, senão, também, do Terceiro no Primeiro. A migração global dá prova disto. Também não seria correto falar sobre o processo de globalização, sem lembrar o fato de que, de seu avesso e ainda por ele motivados, reforçam os impulsos fundamentalistas e nacionalistas. Mais um exemplo: ao mesmo tempo em que encontramos, nos mercados de qualquer cidade, as frutas mais exóticas de todos os canteiros do Mundo, independentemente da estação de sua produção local, aumenta a demanda por alimentos de produção ecológica, a qual é dirigida, devido à sua natureza própria, apenas ao abastecimento dos mercados locais. Ao meu ver, há uma dinâmica ambígua, imanente ao desenvolvimento atual, que nos obriga a tomar a sério as diferenças, sem denunciar precipitadamente sua aceitabilidade. Um reconhecimento inevitável, portanto, para quem busca compreender a si mesmo e o seu lugar no conjunto por meio da experiência de outras culturas, políticas e normas de sociabilidade. Em última instância, a perda de marcos claros de orientação, no confronto permanente com outras tradições, deveria oferecer-nos a chance de uma aprendizagem mútua, mesmo que esta, por vezes, nos levasse a irritações profundas. Essa advertência é importante porque ela nos alerta e sugere a reflexão sobre o etnocentrismo que ainda está presente na vida de relação, quando o mundo, conforme a descrição de Cícero, já não comporta mais essa visão, ou seja, a tendência ao universalismo cultural se acentua cada vez mais.