domingo, 31 de julho de 2016

O PROBLEMA: O JULGAMENTO DOS VALORES

     "Certamente, eu disse, o conhecimento é o alimento da alma; e precisamos ter cuidado, meu amigo, para que o sofista não nos iluda quando elogia o que vende, como os vendedores atacadistas ou varejistas que vendem o alimento para o corpo; pois eles elogiam indiscriminadamente todos os artigos, sem saberem quais são os realmente benéficos ou prejudiciais: nem tampouco o sabem os fregueses deles, salvo um educador ou médico que porventura deles compre. Analogamente, os que conduzem os produtos do saber, e perambulam pelas cidades, vendem-nos ou distribuem-nos a qualquer freguês que deles esteja necessitando, elogiando-os da mesma maneira; embora eu não duvide, ó meu amigo, que muitos deles ignoram de fato o efeito deles sobre a alma, da mesma forma que seus fregueses, a menos que o que deles compre seja um médico da alma. Se, portanto, vós compreendeis o bem e o mal, podeis com segurança adquirir conhecimentos de Protágoras ou de qualquer outro; porém, se não é esse o caso, ó meu amigo, parai e não arrisqueis vossos mais caros interesses em um jogo de azar. Porquanto há perigo bem maior na aquisição de conhecimentos do que na compra de carne e bebidas..." (Platão, Protágoras).
     Assim é que Erich Fromm (Analise do Homem) inicia o discurso sobre 'O Problema'. Dissera ele: "Um espírito de orgulho e otimismo tem distinguido a cultura ocidental nestes últimos séculos: orgulho da razão como instrumento do homem para entender e dominar a Natureza; otimismo quanto à satisfação das mais agradáveis esperanças da humanidade, a consecução da felicidade máxima para o maior número. O orgulho do homem tem sido justificado. Graças à razão, ele edificou um mundo material cuja realidade supera até os sonhos e visões dos contos de fadas e utopias. Ele controla energias físicas que habilitarão a raça humana a conseguir as condições materiais necessárias a uma existência condigna e produtiva, e, apesar de muitas de suas metas não terem ainda sido atingidas, é difícil descrer de sua próxima concretização e de que o problema da produção - que era o problema do passado - está em princípio resolvido. Agora, pela primeira vez na História, o homem pode perceber que a ideia da unidade da raça humana e a conquista da Natureza em proveito do homem não mais são um sonho, porém uma possibilidade realista. Não tem ele razão para sentir-se orgulhoso e para confiar em si e no futuro da humanidade? Contudo, o homem moderno sente-se inquieto e cada vez mais perplexo. Ele labuta e lida, mas tem uma vaga consciência da futilidade de seus esforços. Enquanto cresce seu poder sobre a matéria, sente-se impotente em sua vida individual e em sociedade. Embora tenha criado maneiras novas e melhores para dominar a Natureza, tornou-se enleado em uma teia desses meios e perdeu de vista o fim que lhe dá significado - o próprio homem. Embora se tenha tornado senhor da Natureza, converteu-se em escravo da máquina construída por suas próprias mãos. Com todos os seus conhecimentos a respeito da matéria, ele ignora o que se prende às questões mais importantes e fundamentais da existência humana: o que é o homem, como é que deve viver e como as tremendas energias que há dentro dele podem ser liberadas e usadas produtivamente. A crise humana contemporânea conduziu a um recuo em relação às esperanças e ideias do Iluminismo, sob cujos auspícios teve início o nosso progresso político e econômico. A própria ideia de progresso é chamada de ilusão infantil e o 'realismo' , um novo nome para a total falta de fé no homem, é pregado para substituí-la. A ideia de dignidade e poder do homem, que deu a este a força e a coragem para as formidáveis realizações destes últimos séculos, é contestada ao alvitrar-se que temos de voltar a conformar-nos com sua absoluta importância e insignificância. Essa ideia ameaça destruir as próprias raízes de que germinou nossa cultura. As ideias do Iluminismo ensinaram ao homem que poderia confiar em sua própria razão como um guia no estabelecimento de normas éticas e válidas e de que poderia contar consigo mesmo, dispensando a autoridade da Igreja e da revelação para distinguir o bem do mal. O lema Iluminismo, 'Atreva-se a saber', querendo dizer 'Confie em seu conhecimento', tornou-se o incentivo para os empreendimentos e realizações do homem moderno. A dúvida crescente sobre a autonomia e a razão do homem criou um estado de confusão moral em que o homem se vê desprovido de orientação, seja da revelação, seja da razão. O resultado é a aceitação de uma posição relativista segundo a qual os julgamentos dos valores e as normas éticas são puramente questões de gosto ou preferência arbitrária e de que neste setor não é possível fazer nenhuma afirmação com validade objetiva. Porém, como o homem não pode viver sem valores e normas, este relativismo torna-o fácil presa de sistemas irracionais de valores. Ele reverte a uma posição que fora ultrapassada pelo Iluminismo grego, pelo Cristianismo, pelo Renascimento e pelo Iluminismo oitocentista. As exigências do Estado, o entusiasmo pelas qualidades mágicas dos líderes poderosos, as máquinas potentes e o sucesso material tornaram-se as fontes de suas normas e julgamentos dos valores. Devemos deixar que assim permaneça? Devemos consentir na alternativa entre religião e relativismo? Devemos aceitar a abdicação da razão em assuntos éticos? Devemos crer que as escolhas entre liberdade e escravidão, amor e ódio, verdade e falsidade, integridade e oportunismo, vida e morte são apenas os resultados de outras tantas preferências subjetivas? Com efeito, há outra alternativa. Normas éticas válidas podem ser formuladas pela razão humana, e sempre por esta. O homem é capaz de discernir e de fazer julgamentos dos valores tão válidos quanto quaisquer outros oriundos de sua razão. A grande tradição do pensamento ético humanista lançou os alicerces de sistemas de valores apoiados na autoridade e na razão do homem. Esses sistemas foram formulados partindo da premissa de que para se saber o que é bom ou mau para o homem faz-se mister conhecer a natureza do homem. Eles foram também, por conseguinte, pesquisas psicológicas. Se a ética humanista se baseia no conhecimento da natureza do homem, a Psicologia moderna, e em particular a Psicanálise, deveria ter sido um dos mais poderosos estímulos para o desenvolvimento dessa ética. Sem embargo, malgrado a Psicanálise tenha aumentado enormemente o conhecimento do homem, ela não ultrapassou nosso conhecimento acerca de como o homem deve viver e do que ele deve fazer. Sua função principal tem sido de 'desmascaramento', de demonstrar que os julgamentos dos valores e as normas éticas são expressões racionalizadas de desejos e medos tradicionais - e amiúde inconscientes - e que, portanto, não podem fazer jus ao caráter de validade objetiva. Apesar desse desmascaramento ter sido profícuo por si mesmo, tornou-se cada vez mais estéril ao não conseguir passar de mero trabalho de crítica. [...] Os valores supremos da ética humanista não são a renúncia própria nem o egoísmo, porém o amor-próprio; não a negação do indivíduo, porém a afirmação de seu verdadeiramente humano. Para que o homem confie em valores, cumpre que conheça a si mesmo e a capacidade de sua natureza para ser bom e produtivo.". 
     O objetivo da análise de Fromm é o homem moderno e o mundo por ele construído, que supera os sonhos e as visões das Utopias; o homem que trabalha e luta, mas tem um vago sentimento de futilidade a respeito da atividade que desenvolve e não pode evitar a inquietação e a perplexidade que dele se apossam. Enquanto aumenta o seu poder sobre a matéria, sente-se menos potente na sua vida individual e em sociedade, parecendo haver-se enredado na malha por ele próprio tecida. Domina os elementos, mas perde a visão do único fim que dava real significado ao seu esforço: o próprio homem. Daí sentir-se angustiado, triste, inseguro: tem medo de tudo; a dúvida lhe acompanha. Ele precisa sair do medo à liberdade.

domingo, 24 de julho de 2016

No rastro do passado

     "O etymon, o certo de cada palavra, contradiz muitas vezes a espessa aparência de significados convencionais que vão se acumulando em torno dela, em virtude de uma sociedade repressora e bem-pensante e de uma consciência nebulosa acerca dos valores profundos da linguagem". (Ivonne Bordelois, Em a palavra ameaçada).
     Gabriel Perissé escrevera: "Num opúsculo publicado em 1929, intitulado "A função da razão", o filósofo e matemático inglês Alfred North Whitehead mostrava que, para compreendermos a experiência humana, entre outros procedimentos, precisamos analisar as palavras, ou seja, trabalhar com a etimologia. Essa convicção metodológica é das mais arraigadas entre os pensadores. Desde Platão aos nossos dias, passando pelos medievais, rastrear a história das palavras constitui um passo importante da pesquisa e da reflexão. Se admitirmos que a linguagem, mais do que um veículo de informações, é um "lugar" (intangível, inabarcável) em que as relações e os nexos se realizam, a etimologia é um dos melhores instrumentos de que dispomos para mapear, investigar e esclarecer em que medida essas relações e nexos condizem com a realidade, ou a negam. A mais imediata constatação é a de que a linguagem está encharcada de realidade. Nenhuma palavra, por mais anórdina que pareça, está desvinculada da grande "rede" de sentidos. No campo da cultura, da religiosidade, dos costumes, da política, das artes, das profissões, todas as palavras guardam segredos. Alguns decifráveis. Outros invioláveis. Outros ainda falsificados por nossa imaginação, o que não deixa de ter o seu encanto. Podemos pensar nos estudos etimológicos como uma tarefa de três tempos. Um primeiro e imemorial, em que as palavras mandam ecos do passado greco-latino, termos que sobreviveram em documentos e dicionários vetustos, e continuam vivas, ativas. Um segundo tempo corresponde a termos que surgiram na modernidade, carregados de novas experiências. O linguajar brasileiro, fruto da miscigenação de idiomas, é um exemplo dessa etapa. E um terceiro tempo, o momento presente. São palavras que, nascidas neste nosso momento, hic ext nunc, tornar-se-ão objeto de pesquisa dos etimólogos do futuro, ao longo dos próximos séculos. [...] Entre frases falsas e provérbios, a etimologia é, no mínimo, inspiradora. Lidar com as palavras e suas hipotéticas origens, buscar-lhes o que Guimarães Rosa chamava de "caroço", o sentido intrínseco, o "verivérbio", é um jogo sem fim. E por isso pode sempre recomeçar.". 
     Assim, a maioria dos lingüístas contesta a possibilidade de haver um antepassado comum a todas as línguas atuais. Estudos realizados sob o comando do lingüísta Merrit Ruhlen, da Universidade de Stanford, porém, garantem que a primeira palavra pronunciada teria sido o monossílado tik (dedo). Ruhlen coordena a pesquisa 'Evolution of Human Languages', um projeto internacional de lingüistica pré-histórica, para o 'Santa Fé Institute', em lugares como Nepal e África. A palavra tik teria evoluído até resultar em digit no latim, e o grupo de Ruhlen suspeita que foi usada pela primeira vez por um homídeo por volta de 100 mil a.C. Apesar do trabalho de Ruhlen, os paleonlingüistas garantem que só é possível estudar as línguas depois de 12 mil a.C., logo após o aparecimento da agricultura. A chamada proto-indo-européia, da qual não há registro confiável, mas indícios de que seria a matriz dos idiomas falados por metade da população mundial de hoje, teria sido falada há mais de 6 mil anos. Depois disso, teria se fragmentado em dialetos que evoluíram em idiomas os mais distintos. Parece que a percepção etimológica é tão antiga quanto o ser homem. Há registros de que os cruzamentos idiomáticos em que a língua portuguesa somam mais de 50. Nossa atenção, voltada aos profissionais do direito, é no sentido de que o estudo da língua é plataforma fundamental. É que quem não domina o idioma não poderá falar e nem escrever corretamente, ou seja, com sentido adequado.

domingo, 17 de julho de 2016

Democracia: O Judiciário deve dar ouvidos ao clamor público?

     Em entrevista concedida ao Consultor Jurídico, em 10 de julho de 2016, Anna Pintore (Professora de Filosofia do Direito na Universidade de Cagliari, Sardenha, Itália) discutiu o papel do Judiciário e do Legislativo numa sociedade democrática (falou da Itália, evidentemente) e respondeu várias questões, dentre elas, destacamos estas duas abaixo:
"ConJurO que é democracia: a prevalência da vontade da maioria ou a garantia de respeito pelos direitos de cada cidadão?
Anna Pintore
– Pela filosofia analítica, não há nenhuma definição verdadeira de democracia. Há apenas definições lexicais que capturam as utilizações atuais de um termo e, geralmente, refletem a imprecisão, que é uma característica endêmica da linguagem comum. O significado de democracia atual, por exemplo, é muito vago e hesitante, porque nós temos uma tendência de usar a palavra para descrever tudo o que é bom na política. Há aqueles que defendem que a definição de democracia deva incluir, ao lado de uma dimensão formal, que é o autogoverno, também uma dimensão substancial, ou seja, os direitos fundamentais e todos aqueles princípios feitos pelo sistema jurídico das sociedades ocidentais. Para mim, uma definição tão densa assim de democracia tem muitas falhas. Ela é tão carregada de valores que corre o risco de tornar democracia uma coisa boa por definição, o que não é adequado. Há democracia boa e democracia ruim. Essa definição ampla demais acaba escondendo conflitos que devem ser enfrentados, sendo o mais agudo entre a soberania popular e os direitos individuais. Essa definição também apresenta como necessários certos aspectos do nosso sistema jurídico que são, na verdade, apenas contingentes. Por exemplo, a ideia neoconstitucionalista de uma constituição rígida, sujeita à revisão judicial, como essencial para a existência da democracia... Não é bem assim, a menos que se sustente que a Holanda e o Reino Unido, que não têm constituições, não são democráticos.
Por tudo isso, eu prefiro ficar com uma definição mais sutil de democracia como o autogoverno popular. É como pensa Norberto Bobbio, que concebe a democracia como um conjunto de regras do jogo político sobre quem decide e como decide, e não sobre o que é decidido. Essa definição sutil não é a mesma que entender democracia como a vontade da maioria. Ela prevê a existência de direitos políticos, eleições periódicas, liberdade de associação em partidos e propaganda política, e escancara as controvérsias presentes no sistema jurídico e os limites necessárias para a soberania do povo.
ConJurO Judiciário deve dar ouvidos ao clamor público?
Anna Pintore – Vou repetir o que disse à pergunta anterior: o Judiciário deve aplicar a lei. Dessa forma, serve como órgão de garantia contra as violações dos direitos individuais. Ou, se entende que a lei está em contraste com a Constituição, no sistema judicial italiano, o papel do juiz é remeter a questão à Corte Constitucional. Certamente não deve agir de acordo com a opinião pública porque sua função não é essa. O populismo jurídico é um desastre tanto a nível judiciário como a nível legislativo. Na Itália, mas imagino que não só aqui, há uma tendência da parte da magistratura de forçar a lei para dar uma resposta às situações que criam um alarme social, geralmente ampliado pela imprensa. Vamos pegar como exemplo o caso de um bêbado que pega um carro e mata um pedestre. Ou mesmo o caso de uma empresa que não adota todas as medidas de segurança e, por causa disso, causa a morte de um funcionário. Não há dúvida de que são situações horríveis, mas é impensável sustentar que sejam casos de homicídio doloso, e não culposo. Ainda assim, tanto promotores quanto juízes italianos já seguiram por esse caminho populista e, se a posição tivesse sido mantida até o final, poderia ter derrubado uma das distinções dogmáticas penais mais basilares, que é a diferença entre dolo e culpa. Uma forma muito mais nobre e, em certo sentido, oposta de populismo judicial é expressa pela ideia de que os juízes devem ser os porta-vozes não tanto do humor superficial como dos valores profundos prevalentes na sociedade. Para os defensores dessa linha, os juízes são o poder mais adaptado a acolher as orientações e tendências sociais, mais que o Legislativo, que é um poder partidário e
cisões pela maioria.".
     Vale a pena ver a entrevista toda conforme indicado acima (Consultor Jurídico). Nosso interesse aqui diz respeito, principalmente, sobre a questão do crime doloso e do culposo. Várias vozes já se levantaram contra a atitude de aplicar a força e torcer a ordem jurídica, ou seja: imprimir o conceito de crime doloso para o culposo. É que o Direito não ser uma coisa que ora é, ora não é. Quando assim ocorre, instala-se a insegurança e a deserdem. Tudo que o Direito não quer. O Direito busca a ordem, a segurança e a paz. Nisto há consenso.

domingo, 10 de julho de 2016

Dicionários, Discionários; Um Glossário.

     Em (Pesquisa Jurídica na Complexidade e Transdisciplinaridade, Maria Francisca Carneiro, Curitiba: Juruá, 2007, p.43/45), ela faz a seguinte abordagem sobre o tema: "Nesta era de fragmentação do conhecimento, dos valores e das coisas, os dicionaristas e enciclopedistas ressurgem como se lhes coubesse a tarefa de reorganização do saber e do mundo. Além da fragmentação, o excesso da produção e a velocidade da comunicação, culminada pela internet - onde tudo está disponível -, ocasionaram um tipo sui generis de dispersão, para a qual a feitura dos dicionários significa também o reconhecimento do sujeito, sua localização espácio-temporal e a reorganização da sua relação com os objetos por ele criados, que agora estão espraiados em um mundo difuso, embora conectado pelas interfaces da sociedade de informação. Entretanto, dicionário não é simplesmente o livro em que se dispõem e estudam palavras ou matérias por ordem alfabética. Há problemas intrínsecos ao conceito de dicionário, que se apresentam de modo mais ou menos objetivo. Existem camadas subjacentes de significação da linguagem, que se sobrepõem, se movimentam e se inter-relacionam, como se fossem níveis liquefeitos de tintas que podem configurar diversos matizes, transmutáveis uns em relação aos outros. Nem tudo é sempre ordem em um dicionário! Um dos principais problemas dos dicionários, a nosso ver, é a suposta homogeinização que ele aparenta operar, tratando os conceitos como se estivessem todos no mesmo grau de importância e simetria. Há distâncias e proximidades entre os conceitos ou vocábulos de um dicionário, que didaticamente poderiam ser expostas em graus lógicos. Entretanto, na pragmática do discurso, os eufemismos, as metáforas e outras figuras de linguagem têm o condão da cinestesia, provocando movimentos que podem suavizar ou acentuar as arestas ou os ângulos mais abruptos das significações. O apogeu do enciclopedismo, na história da civilização, deu-se por volta dos séculos XVIII e XIX, embora haja registro histórico da elaboração de dicionários gregos no século III A.C. A ordem alfabética tem sido adotada quase que por unanimidade nos dicionários. As palavras costumam ser classificadas por suas categorias gramaticais e a ortografia, preferencialmente, é a oficial. Alguns dicionários informam a origem dos vocábulos e outros acrescem-lhes a pronúncia, que pode ter variações. As traduções dos vocábulos, nos dicionários, podem ser simultâneas para um, dois ou mais idiomas, quando a atividade da glosa se torna mais complexa, pois não é raro que a mesma palavra apresente diversas acepções. A maior parte dos dicionaristas entende que as definições devem ser "precisas", cabendo examiná-las discriminadamente, a começar pelo sentido e emprego vocabular. Assim, a atividade da glosa não se refere apenas ao significado; mas também ao uso e à função das palavras. Os dicionários podem conter ilustrações, separatas ou suplementos. Aqui nos deparamos, por exemplo, com a comunicação por imagens, pois alguns textos semióticos - por exemplo, as obras de arte - podem ser intraduzíveis em palavras, sob pena de quedarem ao plano do inefável. Os dicionários que se propõem a resolver dificuldades ortográficas e gramaticais denominam-se vocabulários. Os que estudam as formações dos vocábulos através dos tempos e dos lugares são chamados etimológicos e os que se dedicam ao emprego da língua corrente são os léxicos. Aqueles que buscam compendiar todo o saber humano são ditos enciclopédias, enquanto que os glossários atêm-se ao pensamento de um autor ou de uma corrente de pensamento, portanto, não se pretendem exaustivos. Nesse aspecto, há um contraponto entre as enciclopédias e os glossários. Existem dicionários especializados em todos os assuntos. A função de um dicionário é sempre de elucidar e de organizar valendo-se, para tanto, de diversos meios, métodos e técnicas. Já as enciclopédias, têm origem etimológtica na "Paidéia" - vocábulo grego que significa educação, conhecimento. Até meados do século XVI, tradicionalmente, as enciclopédias eram escritas por um só homem, sendo que a pluralidade de pessoas na realização da tarefa consolidou-se no Iluminismo. Para a elaboração de dicionários, glossários ou enciclopédias é necessário estabelecer "entradas", que são classes (partes maiores), nas quais vão sendo inseridas as subclasses (parte menores e singulares). A organização lógica de um dicionário é matemática belíssima, podendo inclusive ser objeto de fruição estética, enquanto as reflexões sobre o seu conteúdo perpassam desde a crítica sócio-linguística, incluindo os meandros literários, até as objetivações pragmáticas da linguagem. Não há negar, enfim, a existência das camadas de linguagem explícitas e implícitas aos dicionários, conforme referimos no início deste escrito. Por essa razão, não se pode negar, no todo ou em parte, que cada dicionário é um pouco a metáfora do real ao qual quer se referir e o qual tenciona aprender.". 
     Sobre a gramática, atualmente, segundo Celso Cunha e Luíz F. Linley Cintra, não está muito claro que, na verdade, com a gramática, talvez muito mais do que com a biologia, pode-se caracterizar e diferenciar essencialmente - isto é, a partir do que constitui a sua essência - a espécie humana das outras de animais: o homem é um animal que fala, que elabora um discurso, organiza o seu pensamento em palavras e frases por um processo consciente. Por isso, "minha língua é minha pátria", não um instrumento que se usa, mas um espaço de identidade, onde o homem se vê como homem. Assim, abrir uma gramática significa fazer uma opção não pela coerção da norma mas pela liberdade de reconhecer nossas construções verbais e de nos movimentarmos, com maior desenvoltura, pelas classes gramaticais e funções sintáticas, sem que isso nos faça esquecer que tudo são palavras e que a língua é uma unidade, e ela própria nos unifica em nossa condição.

domingo, 3 de julho de 2016

O Que é Sucesso?

     Para responder a essa questão, Ralph Waldo Emerson escreveu: "Rir muito e com frequência; ganhar o respeito de pessoas inteligentes e o afeto das crianças; merecer a consideração de críticos honestos e suportar a traição de falsos amigos; apreciar a beleza, encontrar o melhor nos outros; deixar o mundo um pouco melhor, seja por uma saudável criança, um canteiro de jardim ou uma redimida condição social; saber que ao menos uma vida respirou mais fácil porque você viveu. Isto é ter sucesso!"; também, André Mansur Brandão escrevera: "A maior revolução do mundo começa a partir de nossa decisão de ser uma pessoa melhor!". Em Aurora, Nietzsche escrevera, também: "[...] a alma só encontra o que quer.". É muito interessante conhecer a cultura de outros povos. Na China, há pessoas que frequentam um templo budista, seguem a filosofia e os conselhos de Confúcio e, em casa, veneram deuses do xintoísmo. No entanto, se para nós é difícil entender os hábitos espirituais de um amigo chinês, tente imaginar um oriental nas ruas de São Paulo, onde há inúmeras igrejas, com os mais variados nomes. Cada uma tem sua prática particular e doutrinas diferenciadas. Diante da variedade de alternativas, a dúvida cresce no coração de quem busca a verdade e o caminho da ética. Assim, a Aurora de Nietzsche significa o despertar de uma nova moralidade. É a emancipação da razão diante da moral. Um vez que a moralidade não é outra coisa que a obediência aos costumes, de qualquer natureza que estes sejam. Aurora quer romper essa maneira tradicional de agir e de avaliar. Portanto, à medida que o sentido da causalidade aumenta, diminui a extensão do domínio da moralidade. De fato, a compreensão das ligações efetivas da causalidade destrói considerável número de causalidades imaginárias que foram sendo julgadas no decurso dos tempos como fundamentos da moral. O poder liberador da razão tem em si a capacidade de desmistificar significados sociais instituídos pela tradição; o indivíduo, em sua atividade racional, se descobre como criador de novos valores. O indivíduo é capaz, portanto, de romper o elo histórico que une tradição e moralidade, opondo-lhe o binômio razão e afirmação de si. O mundo da tradição é essencialmente aquele em que os valores da autoridade são indiscutíveis. Para reverter essa situação, para conferir à humanidade um renovado status de independência e liberdade, nada mais decisivo que a loucura. Com efeito, num mundo submisso à tradição, ideias novas e divergentes, apreciações e juízos de valor contrário só puderam surgir e se enraizar apresentando-se sob a figura da loucura. "Quase em toda parte, á a loucura que aplaina o caminho da ideia nova, que condena a imposição de um costume, de uma superstição venerada", como diz o próprio Nietzsche. Assim escrevera Ciro Mioranza. São perspectivas válidas e louváveis. Diante disso, por pouco que se tenha avaliado, fácil perceber que o sucesso depende da perspectiva de cada qual, assim como os valores em geral. Não há uma única resposta estanque para o mundo dos valores. Depende de uma complexidade tão grande a resposta como a própria complexidade do homem em si mesmo. Tudo muda, dependendo das circunstâncias do momento, sem que isso implique um caos total. É a dialética ou a eslética da própria vida que dá a isso ensejo. Então cada qual busque o próprio sucesso a seu modo. Vivia as próprias convicções.