O Relógio
Diante de coisa tão doída
Conservemo-nos serenos
Cada minuto da vida
Nunca é mais, é sempre menos
Ser é apenas uma face
Do não ser, e não do ser
Desde o instante em que se nasce
Já se começa a morrer. (Cassiano Ricardo)
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O correr da vida embrulha tudo; a
vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois
desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. Ser capaz de ficar
alegre e mais alegre no meio da alegria, e ainda mais alegre no meio da
tristeza... (Guimarães Rosa)
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Por João Victor,
“O que é, por
conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser
explicar a quem me fizer a pergunta, já não o sei.” (Confissões –
Agostinho, Livro XI)
Poucos textos carregam o
rigor de raciocínio que o Livro XI das Confissões de Agostinho
apresenta. Para quem não sabe, Santo Agostinho de Hipona foi um dos Pais
da Igreja, responsável pelo estabelecimento de vários dos dogmas ainda
aceitos pelo cristianismo. Mas sua importância não se limita aos que
professam a crença cristã. Agostinho também foi um filósofo excepcional,
como poderemos ver através de sua célebre análise do tempo.
A pergunta sobre o
tempo não é fácil. Pode parecer, mas não é. Como Agostinho nos mostra, é
difícil entender de que modo existem passado e futuro. De fato, não há
como defender que eles existem realmente, pois o passado já não existe
mais, e o futuro ainda não existe.
Como, então, medimos o
tempo, se o passado não existe e o futuro também não? Não podemos nem
mesmo dizer que o passado foi longo, pois não há o que possa ter sido
longo, já que ele não existe no momento em que o dizemos. Ou seja: como
dizer que o passado foi longo, se não há o que possa ter sido longo? O
mesmo se aplica ao futuro.
E quanto ao presente?
Este, é claro, inegavelmente, existe, de algum modo. Mas, será que o
presente pode ser longo? Agostinho usa o exemplo de cem anos presentes.
Serão eles longos? Ora, mas o primeiro desses cem anos é presente, e os
outros 99 são futuros e, portanto, ainda não existem. Quando o primeiro
ano passar, o segundo será presente, o primeiro, passado, e os outros
98, futuros. Logo, cem anos não podem ser presentes.
Mas o ano se subdivide
também em semanas, e o mesmo problema se apresenta. Mas a semana também
se subdivide em dias, e os dias em horas, e as horas em minutos, e assim
por diante. O que resta, então, que não possa ser subdividido e que,
portanto, seja, de fato, presente? Um instante que não tem duração. O
presente nada mais é do que um instante que, tão logo seja, deixa de
ser, por não ter extensão nem duração.
Contudo, apesar do
problema, percebemos os intervalos de tempos, e os comparamos entre si,
medindo-os. Mas como fazemos isso? Não é possível medir o que não
existe, logo, não se pode medir o passado e o futuro. E o presente não
tem duração, não podendo, também, ser medido.
A solução de Agostinho
para o problema é engenhosa e totalmente inovadora. Ele diz o seguinte: o
passado e o futuro só existem no presente. Pois o passado existe como
lembrança do que já foi, e o futuro existe como antecipação do que será.
É desse modo que medimos o tempo. Ao dizermos que um certo poema é
longo, por exemplo, sabemos disso porque lemos o poema e, na medida em
que lemos, guardamos na memória o que já passou do poema, mantemos a
atenção no que estamos lendo, e projetamos no futuro o que leremos. Ao
terminarmos o poema, tudo virou lembrança, passado, e nossa memória nos
diz sobre a duração do poema.
A originalidade de
Agostinho deve-se ao compreender de que somos seres temporais e que,
portanto, não podemos falar do tempo como se fosse um objeto exterior.
Nossa compreensão do tempo é psicológica, e é assim que lidamos com ele,
internamente. À pergunta “com que meço eu o tempo”, Agostinho responde:
com meu espírito.
Se resta a dúvida sobre
como diminui o futuro, se ele ainda não existe, Agostinho diz que “o
futuro não é um tempo longo, porque ele não existe; o futuro longo é
apenas a longa expectação do futuro. Nem é longo o tempo passado porque
não existe, mas o pretérito longo outra coisa não é senão a longa
expectação do passado”.
É crucial notar que
Agostinho fala aqui de um tempo psicológico, em contraste com um tempo
ontológico, exterior ao ser humano. Portanto, Agostinho não está negando
a existência do tempo ontológico, como possa parecer, mas sim
diferenciando-o do tempo psicológico, que só existe desse modo, ou seja,
como lembrança, atenção e projeção.
Outro ponto
interessante é que Agostinho abriu as portas, com essa análise do tempo,
para inúmeros filósofos que depois dele vieram. Através da
internalização do tempo na consciência, foi possível o surgimento de
grandes pensadores e obras como Heidegger com o “Ser e tempo”. Mesmo
antes de Heidegger, temos Kant, com a “Crítica da Razão Pura”, que
transforma o tempo numa das categorias do entendimento, pelas quais
acessamos os fenômenos. Ambos os casos mostram pensadores que analisaram
o tempo como sendo interno ao ser humano. Claro que a abordagem desses
dois autores é muito diferente da de Agostinho, mas é inegável sua
importância para que célebres pensadores tenham chegado a suas
conclusões.
Em suma, podemos ver,
com isso, que Agostinho foi um filósofo extremamente rigoroso em seu
raciocínio, e frutífero em vários âmbitos. É comum haver desprezo para
com ele por ter sido um pensador religioso, e por seu modo de escrita,
sempre citando Deus e louvando-o, mas isso é leviandade. Suas posições
não devem ser rejeitadas apenas pelo fundo religioso que tem, mesmo
porque há casos bastante claros onde esse fundo religioso pode ser
deixado de lado. A questão do tempo é uma delas.
Cito aqui, a título de
exemplo, outro campo no qual Agostinho se destacou e deixo uma
contribuição significativa: a literatura. Agostinho é conhecido,
juntamente com Jean-Jacques Rousseau e Henry Miller, por sua inovação no
âmbito da auto-biografia. Ele foi, em suas Confissões,
extremamente honesto, sem desvirtuamentos de sua vida, e o valor
literário dessa obra é inegável. Rousseau e Miller, como dito, também se
destacaram, mas Agostinho foi o primeiro e, sem dúvida alguma, ajudou a
firmar o gênero. Outro indício inegável de sua genialidade.
Por último, deixo aqui
uma confissão: o motivo que me levou a trazer Agostinho para cá, hoje, é
o fim de ano. 2013 se aproxima, e penso que Agostinho nos ajuda um
pouco a entender o fenômeno que experienciamos agora. Afinal, o
calendário é criação humana, e a tese agostiniana do tempo parece fazer
muito sentido quando pensamos a respeito. Criamos o calendário, medimos o
tempo, e também damos à passagem do tempo significado. O clima
diferenciado começou desde a aproximação do Natal e agora se
intensifica. Esperança, renovação, novos planos são algumas das coisas
que vemos em abundância nessa época. E, apesar do que muita gente diz
por aí, isso é maravilhoso. Hipocrisia existe, é claro, e ilusão quanto à
renovação, bom, isso é bastante discutível. Porque o fim de 2012 é um
símbolo, assim como cada fim de ano, e nós somos seres simbólicos. Por
que não utilizá-los bem? A rigor, se aceitamos o que Agostinho diz, o
fato
de que poderemos jogar o calendário no lixo amanhã não tem ligação
alguma com o mundo exterior. Mas tem com o interior. O calendário
importa só para nós, seres humanos, e só em nós ele pode gerar alguma
mudança. É uma boa coisa que nos lembremos de 2012, e projetemos 2013
para ser melhor. Com atenção no presente, claro, só assim pra ser
melhor.
E,
sobre a ilusão do calendário, estou com Drummond [ou melhor, achava que
era Drummond, mas uma leitora atentou para o fato de que o texto não é
do autor e isso foi, inclusive, confirmado por sua assessoria, assim,
estou com o “autor desconhecido”] e contra os chatos de plantão:
Quem
teve a ideia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano,
foi um indivíduo genial. Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar
no limite da exaustão. Doze meses dão para qualquer ser humano se
cansar e entregar os pontos. Aí entra o milagre da renovação e tudo
começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que
daqui pra diante vai ser diferente.
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Quando nada acontece há um grande milagre acontecendo que não estamos vendo. (Guimarães Rosa)
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A vida é aquilo que acontece enquanto estamos ocupados fazendo outra coisa. (John Lennon).