sábado, 30 de março de 2019

FACULDADE ESTÁCIO DE CURITIBA - IED - 2019.1


O DIREITO COMO CIÊNCIA E SUA METODOLOGIA

Segundo Humberto Ávila, "[...] o conhecimento do Direito só pode ser feito por meio de conceitos fundamentais, de maneira que o conhecimento pressupõe o uso de estruturas cognoscitivas formais. Para estes, não há conhecimento do Direito senão por meio das categorias conceituais, sejam elas lógico-jurídicas, sejam elas jurídico-positivas. Nessa perspectiva, os conceitos são condições absolutas de conhecimento do Direito.".

Seguindo essa trilha, vamos compartilhar, parcialmente, o resultado da pesquisa de Fredie Didier Jr., conforme segue.

"Teoria é todo sistema de proposições orientado para um objeto com fim cognoscitivo" (Lourival Vilanova). A teoria compreende uma sistemática e uma finalidade verificativa: trata-se de conjunto organizado de enunciados relativos a determinado objeto de investigação científica ou filosófica. A teoria unifica e arruma o complexo dos conceitos e enunciados da ciência ou da filosofia.

A teoria serve à ciência ou à filosofia. É possível designar a ciência/filosofia com o nome de uma teoria. É o que ocorre, por exemplo, com a Teoria do Estado, a Teoria do Direito, a Teoria do Processo. [...]: [...]Basicamente, a ciência pode ser definida como sistema de enunciados que se propõe a explicar de modo coerente, racional e falseável um determinado objeto. (Miguel Reale). [...].

Concebe-se uma teoria sobre outra teoria: uma teoria da teoria. A epistemologia, por exemplo, é uma teoria da ciência, que é um conjunto de teorias. Por isso, uma teoria tanto pode servir a uma abordagem filosófica, como a uma abordagem científica.

Uma teoria para as ciências sociais pode ter graus de abstração diversos: geral, individual e particular. As teorias sobre o Direito, fato social que é, seguem essa divisão.

Uma teoria é geral quando reúne enunciados que possuem pretensão universal, invariável ( Observe-se que o adjetivo "geral" serve para qualificar o objeto da teoria. O adjetivo pode ser utilizado, porém, para designar a função da teoria - "geral", porque se propõe a exaurir o objeto investigado. Este uso do adjetivo parece ser desnecessário, pois, neste sentido, toda teoria é geral, pois se propõe a examinar o seu objeto.).
Uma teoria pode ser individual, quando pretender organizar conhecimento em torno de um objeto singular, investigado exatamente em razão da importância de suas peculiaridades. Os objetos culturais, como o Direito, o idioma, o Estado, têm importância também pelo que apresentam como singularidade. O conhecimento científico não precisa ser necessariamente abstrato ou universal: "pode deter-se na concreção singular, expor, descritivamente, a singularidade em sua diferenciação única". 

Há, então, a Teoria Geral do Estado e a Teoria do Estado brasileiro; a Teoria Geral do Direito e a Teoria do Direito estadunidense; a Teoria Geral do Processo e a Teoria do Processo Civil italiano etc.

Pode-se restringir a generalidade da teoria a um grupo de objetos, selecionados com base em algum elemento comum. Fala-se, então, em uma teoria particular. Trata-se de um grau de abstração entre o geral e o individual. Comparam-se os objetos deste grupo para "sacar, desse confronto, o típico sobre o simplesmente singular, o homogêneo sobre o meramente peculiar". Assim, por exemplo, uma teoria particular do Direito para Estados cuja tradição jurídica seja o common law.

Toda teoria tem uma extensão, delimitação do objeto de investigação, e uma intensidade, que é o seu conteúdo informativo, sua aptidão para explicar o objeto investigado. Tanto maior a extensão, tanto menor a intensidade de uma teoria.

Um objeto de investigação científica pode ser objeto de várias teorias, que o decompõem abstratamente. É parcial a teoria que cuida de cada um dos resultados dessa decomposição. A ciência ou filosofia, compreendidas como teorias totais, será o conjunto dessas teorias parciais, que se complementam.

Assim, por exemplo, a Teoria Geral do Direito é composta pelas teorias parciais (i) do fato jurídico, (ii) das situações jurídicas, (iii) dos sujeitos de direito, (iv) da norma jurídica etc. A Teoria Geral do Processo é composta pelas teorias (i) das capacidades processuais, (ii) dos fatos jurídicos processuais, (iii) da norma processual, (iv) da prova etc. Teorias parciais podem ser, igualmente, gerais, particulares e individuais. Pose-se, então, v.g., falar em uma teoria geral dos fatos jurídicos processuais. [...].

CONCEITOS JURÍDICO-POSITIVOS E CONCEITOS JURÍDICOS FUNDAMENTAIS (CONCEITOS LÓGICO-JURÍDICOS).

A ciência é um sistema de enunciados. Compõem-se de "um conjunto de conceitos dispostos segundo certas conexões ideais", estruturados de acordo com critérios "ordenados que os subordinam a uma unidade sistemática". O enunciados da ciência articulam esses conceitos, com o objetivo de explicar, de modo coerente, racional e "falseável", um determinado aspecto da realidade.

Em um sistema conceitual, nem todos os conceitos "ocupam o mesmo plano": há conceitos que possuem âmbito de validez específico, outros, genérico; uns são conceitos fundamentais, outros, derivados e adjacentes.

As teorias jurídicas sofrem a contingência de ter por objeto um produto cultural. O Direito terá o seu conteúdo determinado por circunstâncias históricas e espaciais. É muito difícil e, por vezes, pouco útil, criar uma teoria que sirva a diversos ordenamentos jurídicos, tão distintos entre si. 

Essa é a razão pela qual devem ser separados, em qualquer construção teórica sobre o Direito, os conceitos que servem à compreensão do fenômeno jurídico, onde quer que ele ocorra, qualquer que seja o seu conteúdo, dos conceitos construídos a partir da análise de um determinado ordenamento jurídico. Vale também para as Ciências Jurídicas a conclusão de Popper: "considero de fundamental importância distinção entre conceitos ou nomes universais e individuais".

Aoso primeiros, dá-se a designação de conceitos lógico-jurídicos ou conceitos jurídicos fundamentais; os outros são chamados de conceitos jurídico-positivos.

Conceitos jurídico-positivos.

O conceito jurídico-positivo é construído a partir da observação de uma determinada realidade normativa e, por isso mesmo, apenas a ela é aplicável. [...] Trata-se de noção que somente pode ser obetida a posteriori, "no sentido de que apenas poderá ser apreendida após o conhecimento de um determinado Direito Positivo". São conceitos contingentes, históricos: descrevem realidades criadas pelo homem em certo lugar, em certo momento.

Alguns exemplos podem ser úteis à compreensão do tema.

O conceito de estupro é jurídico-positivo: os elementos desse crime variam conforme o respectivo Direito positivo. Até bem pouco tempo atrás, no Brasil, estupro era crime que pressupunha violência sexual (conjunção carnal) praticada por um homem contra uma mulher. Atualmente, estupro é crime que pode ser cometido por ou contra alguém de qualquer gênero e a conduta típica não é mais apenas a conjunção carnavl violenta (Art. 213 do Código Penal Brasileiro, alterado pela lei n. 12.015/2009: "Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:". A redação anterior era a seguinte: "Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:").

O conceito de casamento também é jurídico-positivo. No Brasil, casamento é uma união formal familiar entre pessoas de sexos diferentes (Código Civil, art. 1.514). Em Portugal, casamento é negócio celebrado entre duas pessoas, pouco importa o gênero a que pertençam (Código Civil português, art. 1.577). [...].

Como se vê, trata-se de conceito que fica submetido às contingências das transformações do Direito positivo. A definição desses objetos variará conforme o tempo e o espaço.

Não há, portanto, uma disciplina jurídica única e imutável para esses institutos. Não se pode pretender encontrar, nesses conceitos, elementos invariáveis, que compusessem uma espécie de essência imprescindível do objeto definido.

Exemplos são úteis à demonstração da importância de identificar os objetos cujo conceito dependa do exame de um determinado Direito positivo. Assim como o respectivo conceito, o regime jurídico do objeto investigado também variará conforme o ordenamento jurídico analisado.

A simulação é vício que permite a invalidação do negócio jurídico. Trata-se de invalidação que se submete ao regime jurídico da nulidade (art. 167 do Código Civil brasileiro - de 2002). Sucede que, de acordo com o Código Civil de 1916, já revogado, a simulação era vício que gerava anulabilidade do negócio jurídico; submetia-se, portanto, a regime jurídico diverso (art. 147, II, do Código Civil brasileiro de 1916). Note-se a mudança do regime jurídico da invalidação do negócio por simulação. Não há problema algum; é legítima opção legislativa. [...].

Conceitos jurídicos fundamentais ou conceitos lógico-jurídicos.

O conceito jurídico fundamental (lógico-jurídico, jurídico próprio ou categorial) é aquele construído pela Filosofia do Direito (é uma das tarefas da Epistemologia Jurídica), com a pretensão de auxiliar a compreensão de validez universal. Serve aos operadores do Direito para a compreensão de qualquer ordenamento jurídico determinado. É, verdadeiramente, um pressuposto indispensável de qualquer contato científico com o direito.

É conceito a priori, alheio a qualquer realidade determinada, embora seja produto da experiência jurídica ('o direito nasce da necessidade e da experiência'), o que não é paradoxal: não se consegue conceber produção do intelecto humano que não tenha por base alguma experiência. A partir da observação do fenômeno jurídico, criam-se esses conceitos, que funcionam como instrumentos indispensáveis à investigação empírica.

Não expressam realidades contingenciais criadas pelo homem em dado momento histórico. São conceitos formais, lógicos, que "nada adiantam sobre o conteúdo concreto das normas jurídicas". Porque formais, são invariáveis; variável será o conteúdo normativo a ser extraído dos enunciados normativos do Direito positivo.

São fundamentais para a ciência jurídica (e, por isso, são chamados de conceitos jurídicos fundamentais), pois correspondem à estrutura essencial de toda ordem jurídica. Onde houve norma jurídica (onde houver Direito, pois), serão úteis. Não se concebe a existência de Direito sem "hipótese normativa", "norma jurídica", "dever jurídico", "preceito normativo", "sujeito de direito", "fato jurídico" etc.

Nada obstante grande, o número de conceitos fundamentais não é ilimitado.

São exemplos de conceitos lógico-jurídicos: fato jurídico, relação jurídica, invalidade, efeito jurídico, ato jurídico, ato-fato jurídico, fonte do direito, norma jurídica, regra jurídica, princípio, sujeito de direito, capacidade, personalidade, objeto de direito etc.

Há conceitos lógico-jurídicos estritamente relacionados ao processo: competência, decisão, cognição, admissibilidade, norma processual, processo, demanda, legitimidade, pretensão processual, capacidade de ser parte, capacidade processual, capacidade postulatória, prova, presunção, tutela jurisdicional etc.

Conceito lógico-jurídico como produto cultural. Universalidade e historicidade.

Exatamente porque produzido pelo conhecimento humano, o conceito lógico-jurídico é também um produto cultural. O conceito é formulado a partir da observação do fenômeno jurídico, que também é manifestação cultural. Nada obstante tenha a pretensão de servir à compreensão de qualquer ordenamento jurídico (pretensão universalizante), nasce da observação do Direito como fato. Como todo conceito, procede da experiência, portanto.

Aqui surge um aparente paradoxo: se se trata de manifestação cultural, e cada cultura tem as suas peculiaridades, como pode esse tipo de conceito servir a qualquer cultura?

Para desenvolver um repertório teórico que permita visualizar as diferenças entre os diversos sistemas jurídicos (diversas manifestações culturais), cumpre ao filósofo do direito a tarefa de identificar e selecionar aquilo que é comum a qualquer Direito positivo. O conceito lógico-jurídico funciona como a luz negra que revela as manchas do tecido branco (aparentemente) imaculado.

Um exemplo. O conceito de sujeito de direito é lógico-jurídico: todo ente que puder ser titular de uma situação jurídica. A identificação de quem seja sujeito de direito dependerá do exame de cada ordenamento jurídico. A partir do conceito de sujeito de direito, que é universal, será possível perceber que, em um dado ordenamento, a mulher é sujeito de direito e, em outro, objeto de direito.

Outro exemplo, agora em tema de direito processual. Capacidade processual é um conceito lógico-jurídico: aptidão de um ente para praticar ato jurídico sozinho. Para que se possa saber quem tem capacidade processual, será preciso examinar o Direito positivo. Valendo-se do conceito de capacidade processual, será possível notar que, em um dado ordenamento, uma mulher sozinha pode praticar atos processuais, ao passo que, em outro, apenas poderá fazê-lo se estiver assistida pelo seu marido; que, em um país, qualquer pessoa com mais de 18 anos de vida pode depor como testemunha, enquanto, em outro, judeus, negros, homossexuais, mulheres etc. não têm capacidade para o testemunho. 

A elaboração desse tipo de conceito determina-se pelas contingências do seu tempo: repertório teórico existente, ideologias predominantes, concepções filosóficas prevalecentes, peculiaridades dos objetos investigados, limitações materiais para pesquisa e desenvolvimento do método etc. Tais conceitos são convencionalmente construídos e, exatamente por isso, também por convenção podem ser revistos.

O progresso do pensamento filosófico revela-se precisamente quando se superam conceitos fundamentais consolidados. [...]. A experiência pode eliminá-los, se inadequados, ou suprir-lhes os defeitos. Não há qualquer problema em qualificá-los como a priori. Rigorosamente, aliás, todo conhecimento humano é provisório.

O conceito lógico-científico, enfim, precisa passar pelo teste de realidade. [...] Um enunciado científico carateriza-se, sobretudo, pela circunstância de ser suscetível de revisão, poder ser criticado e substituído por outro enunciado, que se revele mais adequado. Se o conceito perde o seu alcance ("portata") teórico e a sua capacidade explicativa, ele deve ser revisto. [...].

Funções dos conceitos jurídicos fundamentais (lógico-jurídicos).

Os conceitos jurídicos fundamentais (lógico-jurídicos) têm uma dupla função: servem de base à elaboração dos conceitos jurídico-positivos e auxiliam o operador do Direito na tarefa de compreender, interpretar e aplicar o ordenamento jurídico. Têm, sobretudo, função heurística: permitem e facilitam o conhecimento do Direito. [...].

Convém esmiuçar essas duas funções.

O conceito lógico-jurídico serve de base para o conceito jurídico-positivo.

A noção de negócio jurídico (conceito lógico-jurídico) é pressuposto para a compreensão das diversas espécies de contrato, cujos conceitos são jurídico-positivos; não se pode estudar a tipologia dos atos administrativos (recheada de conceitos jurídico-positivos como decreto, resolução, regimento, portaria etc) desconhecendo o que seja um ato jurídico (conceito lógico-jurídico); para que se entenda o que é um tributo (conceito jurídico-positivo), é indispensável saber o que é fato jurídico e um dever jurídico, conceitos lógico-jurídicos.

Entre o conceito lógico-jurídico e o conceito jurídico-positivo há uma relação de dependência: o conceito jurídico-positivo é uma especificação do conceito lógico-jurídico, que é genérico. Não há qualquer diferença na compreensão dos conceitos jurídico-positivos processuais.

Os conceitos de petição inicial e de recurso (jurídico-positivos) pressupõem a compreensão do que seja um ato jurídico postulatório (conceito lógico-jurídico). [...].

Os conceitos lógico-jurídicos também servem à compreensão do Direito. "O conceito fornece as determinações mínimas e essenciais que servem de criterium para encontrar o objeto onde ele se acha". O conceito lógico-jurídico indica qual é a estrutura que um determinado objeto tem.

Para que se possa investigar o processo, é preciso saber qual é o fato social que pode ser conhecido como processo. Simplesmente: para que se possa investigar o processo, é preciso saber o que é processo. Para que se distingam as nulidades e as anulabilidades (conceitos jurídico-positivos), é indispensável saber em que consiste o plano de validade de um ato jurídico (conceito lógico-positivo); para que se identifique a eficácia jurídica da posse, variável conforme o Direito positivo, os conceitos lógico-jurídicos  de fato jurídico, situação jurídica, dever, direito subjetivo etc. não podem ser ignorados.

A interpretação e a aplicação do Direito processual positivo também não prescindem dos conceitos lógico-juridicos, especialmente daqueles mais proximamente relacionados ao fenômeno processual.

Impossível compreender as diferenças entre incompetência absoluta e a incompetência relativa (conceitos jurídico-positivos) ignorando o que seja competência (conceito lógico-jurídico). [...].

Considerações finais sobre o uso e a função dos conceitos jurídicos fundamentais.

Não parece haver dúvida sobre a existência de conceitos jurídicos fundamentais, muito menos de sua importância: são imprescindíveis para o desenvolvimento de uma ciência jurídica, que se ponha a fornecer diretrizes para uma aplicação racional, coerente e justa do Direito.

É preciso que se perceba, poré, que, se os conceitos jurídicos fundamentais servem à compreensão do Direito, não podem, ao mesmo tempo, impedir o conhecimento do Direito.

Por vezes, o cientista do Direito, apegado excessivamente a um conceito jurídico fundamental, sem perceber a sua obsolescência ou a sua inutilidade, simplesmente ignora fenômenos jurídicos que não se encaixam em determinado modelo conceitual.

Isso aconteceu, por exemplo, com o conceito tradicional de norma jurídica - que pressupunha uma hipótese fática e um consequente normativo -, inservível à compreensão das normas-princípio. A doutrina, com base no conceito tradicional de norma jurídica, não reconhecia o princípio como norma jurídica. Havia a necessidade de reconstruir o conceito de norma jurídica e, simultaneamente, construir o conceito de princípio como norma.

Assim, é preciso reafirmar, agora de maneira consolidada, o que se disse linhas atrás sobre a postura que o cientista do Direito deve ter diante de um conceito fundamental.

a) É preciso compreendê-lo como ferramenta (instrumento) para o conhecimento do Direito, com nítida função heurística. Como todo instrumento, não serve para a solução de qualquer problema, bem como o problema não desaparece  porque não se possui a ferramenta adequada para solucioná-lo.

b) Os conceitos jurídicos fundamentais são essencialmente "reconstruíveis": se perdem a sua funcionalidade, sua aptidão para a compreensão da realidade, não se pode ignorar a realidade para preservar o conceito, que deve ser reconstruído. [...].

c) A Analítica Jurídica não é o único repertório de que se deve valer o cientista do Direito. Não se faz ciência do Direito apenas manipulando os conceitos jurídicos fundamentais. A afirmação, que pode soar como platitude, justifica-se para evitar a crítica de que esta tese ignora, por exemplo, as funções da Hermenêutica e da Axiologia Jurídicas para a Ciência do Direito.".

Faculdade Estácio de Curitiba - IED - 2019.1

A HISTÓRIA DO PENSAMENTO JURÍDICO
Segundo Alysson Leandro Mascaro (Introdução ao Estudo do Direito, 3ª edição, São Paulo, Atlas, 2012, p. 1/2): "A primeira dificuldade para delimitar o conceito de direito reside no fato de que, em geral, o jurista quer partir de suas próprias definições e de ideias abstratas e vagas para, apenas depois, encontrar uma realidade que se adapte às suas teorias. Mas o procedimento deve ser justamente o contrário. É preciso investigar fenômenos concretos e, a partir deles, alcançar uma concepção teórica posterior.
Para entendermos o fenômeno jurídico, é preciso, acima de tudo, utilizar-se da ferramenta da história. Sem ela, as definições sobre o direito serão vagas e sem lastro concreto.
Durante muito tempo, chamou-se por direito aquilo que hoje chamaríamos por religião, ou mesmo por política. Quem dirá que os Dez Mandamentos da Bíblia são um monumento jurídico? Mas quem poderá dizer que são um conjunto de normas só religiosas e não jurídicas? Na verdade, em sociedades do passado, como a hebreia, não há algo que especificamente seja chamado por direito e que seja totalmente distinto da religião, por exemplo.
Somente quando se chegou aos tempos modernos - quando começou a separação teórica entre direito, política e religião, por exemplo - é que foi possível entender que não houve, naqueles tempos passados, um direito tomado de modo específico.
Mas essa indistinção dos tempos passados não foi algo que aconteceu apenas com o direito. Entre a moral e a religião também se deu o mesmo. O iluminismo, um movimento filosófico do século XVIII, demonstrou que seria possível compreender a moral independentemente da religião. Para os iluministas, poderia haver uma moral racional válida para todos os homens, universal e superior, independente da religião de cada qual. Mas para os povos do passado essa separação seria muito difícil. Moral e religião estavam misturadas. Só os tempos modernos, devido a certas condições e estruturas sociais, como a organização capitalista, deram especificidade à religião, à moral, à política, à economia e também ao direito.
Assim sendo, é o presente que nos ajuda a entender as dificuldades do passado. Se hoje o jurista considera o direito a apartir das normas jurídicas estatais, com uma série de ferramentas, temas e consequências próprias, no passado tudo isso poderia ser objeto da religião, sem que houvesse uma definição dos campos específicos.
Comparado ao passado, o direito ganha especificidade apenas no capitalismo, a partir da Idade Moderna. Se no passado o direito era inespecífico, misturado à moral e à religião, no presente ele se revela como algo distinto, um fenômeno singularizado. Mas, mesmo assim, a questão ainda permanece, posta agora em outro, patamar, mais profundo. Se é somente nos tempos modernos que o direito passa a ser um fenômeno específico, então o que identifica em si o direito de nosso tempo, a fim de que seja distinguido de todos os demais fenômenos sociais?
A qualidade de direito
Propugnemos um entendimento do direito a partir da soma de duas perspectivas de identificação. É preciso compreender as coisas que são quantitativamente jurídicas e aquilo que qualitativamente as torna como tais; O direito cobre muitos assuntos - homicídio, roubo, compra e venda, tributos, proteção ao trabalhador. Mas, além de se referir a muitos temas, o direito lida de modo específico com esses próprios temas. Por isso, é a qualidade de direito o grande identificador do fenômeno jurídico moderno. Quando se diz que o manejo do solo pode ser um tema jurídico, isso não quer dizer que a agricultura tenha que ser necessariamente regulada juridicamente. O direito, se também chega às questões agrícolas, o faz por vias distintas daquelas que são as tradicionais de um agrônomo.
Como muitas coisas podem ser jurídicas - a propriedade, as relações de trabalho, a atividade mercantil, os costumes, a educação, a legislação aérea, a previdência social, o direito administrativo -, não é pelo assunto de que trata o direito que se o identifica. Se muitos assuntos podem ou não podem ser considerados jurídicos, o passo científico mais decisivo para compreender o direito não é, então, entender quais temas são jurídicos (a sua identificação quantitativa), mas, sim, quais mecanismos e estruturas dão especificidade ao direito perante qualquer assunto (a sua identificação qualitativa).
A religião pode falar sobre tudo, disciplinar muitas condutas. O direito pode também legislar sobre as mesmas condutas. Mas o direito procede de um modo e a religião de outro. São estruturas distintas, que se relacionam diferentemente com os objetos. Não são objetos nem temas específicos que identificam o direito, e sim determinados tipos de relação desses objetos e temas com outras certas situações sociais. Todos os assuntos podem ser jurídicos quando haja estruturas jurídicas que os qualifiquem.
No passado, não havia uma qualificação dos assuntos como estritamente jurídicos ou religiosos, porque seus mandos se intercambiavam e se confundiam. Somente num certo tempo histórico essa especificidade apareceu, a partir de determinadas relações sociais e econômicas. Nesse momento, deu-se a transformação qualitativa do fenômeno jurídico. Tal transformação se deu com o capitalismo. Como este modo de produção apareceu apenas muito modernamente, pode-se dizer que os instrumentos do direito apenas nos tempos mais próximos da história ganharam especificidade. Ao se ver a inespecificidade do direito nos modos de produção do passado, resta clara a ligação específica que há entre o direito e o capitalismo.
Em modos de produção primitivos, pré-capitalistas, o direito era muito similar a uma ação ocasional, artesanal. Davam-se soluções para casos quaisquer de acordo com o poder, a força e as habilidades individuais daquele que mandava, e tais soluções não se repetiam em outros casos parecidos. No capitalismo o procedimento é diverso. O comércio, a exploração do trabalho mediante salário, a mercantilização das relações sociais, tudo isso deu margem a um tratamento do direito como uma esfera social específica, eminentemente técnica, independente da vontade ocasional das partes ou do julgador.
Com o capitalismo, o direito passa a ocupar específico no todo da vida social. Essa instância jurídica é o local no qual um ente aparentemente distante de todos os indivíduos, o Estado, se institucionaliza e passa a regular uma pluralidade de comportamentos, atos e relações sociais.
No escravagismo e no feudalismo, que são anteriores ao capitalismo, não há especificamente uma instância jurídica. Não há uma qualidade de relações que seja só jurídica em meio ao todo da vida social. A religião ordena, regula e manda, e da mesma maneira o rei, o senhor feudal ou o senhor de escravo. Se pensássemos que a totalidade das relações sociais fosse um edifício de vários andares, não há um andar específico para o direito. No capitalismo, passa a havê-lo. E, no edifício das relações sociais capitalistas, o direito é o andar mais próximo e contíguo ao pavimento do Estado.
É possível afirmar, então, que passa a haver uma específica manifestação social que se identifica como direito a partir do capitalismo. E esse fenômeno jurídico é tão peculiar ao capitalismo que aquilo que se chamar como direito pré-capitalista tarnar-se-á praticamente irreconhecível em face do atual direito. Quando com os olhos de juristas de hoje olhamos o direito da Bíblia, por exemplo, não o reconhecemos como tendo a mesma estrutura jurídica presente. De fato, ele é outro, diretamente misturado com a religião, e o nosso moderno, capitalista, não.
Essa transformação histórica qualitativa, que é oriunda dos movimentos mais básicos da atividade capitalista, foi a responsável pela especificidade do direito em face dos demais fenômenos sociais. É o capitalismo que dá ao direito a condição de fenômeno distinto do mando do senhor feudal, do mando da igreja, da crença em ordens sagradas. O capitalismo dá especificidade ao direito.
No capitalismo, inaugura-se um mundo de instituições que sustentam práticas específicas de explorações. A célula mínima de tais estruturas de exploração é a mercadoria. Uns vendem e outros compram. A transação comercial somente se sustenta se comprador e vendedor forem considerados sujeitos de direito, isto é, pessoas capazes de se vincularem por meio de um contrato no qual trocam direitos e deveres. A mercadoria acarreta determinados institutos reputados estritamente por jurídicos. Não é a religião nem a moral que os sustenta. Daí surge especificamente o direito. Seus institutos são resultantes diretos das transações mercantis, porque a garantem. Entender o direito a partir do movimento mais simples do capitalismo - as trocas mercantis - é captar o ponto que dá a qualificação específica ao direito moderno.".
Para Stéphane Rials, "Michel Villey (A Formação do Pensamento Jurídico Moderno, 2ª ed. Martins Fontes, 2009, p. XVV), aponta com frequência o jogo dos interesses de classe. [...] A passagem do "feudalismo" (...) para o "capitalismo" (...) talvez atraia menos sua atenção que o declínio da classe cultural clerical (...) e o desenvolvimento - decerto vinculado à modificação das relações econômicas - de uma classe cultural laica. (...) "Cabe-nos, portanto, considerar esse novo mundo cultural que o século XVI suscitou, portador de uma nova concepção da filosofia e do direito. Por que tão nova? Podemos responder que ele nasce de uma nova classe social. Não mais do clero [...]. Doravante, a conjuntura econômico-política permite que os burgueses enriquecidos e alguns nobres libertos de sua antiga tarefa militar constituam um outro tipo de elite culta.
E o resultado da pesquisa de Yuval Noah Harari (Uma Breve História da Humanidade, 30 ed., Porto Alegre-RS, L&PM, 2017), mais profunda, nos informa que: "Por volta de 10.000 a.C., antes da transição para a agricultura, a Terra era o lar de 5 a 8 milhões de caçadores-coletores nômades. No século I, restavam apenas de l a 2 milhões de caçadores-coletores (principalmente na Austrália, na América e na África), mas os 250 milhões de agricultores no mundo fizeram com que esse número continuasse diminuindo.
A grande maioria dos agricultores vivia em assentamentos permanentes; apenas alguns eram pastores nômades. Os assentamentos permanentes faziam com que o terreno da maioria dos povos fosse drasticamente reduzido. [...]
Enquanto o espaço agrícola se reduziu, o tempo agrícola se expandiu. Os caçadores-coletores normalmente não perdiam muito tempo pensando no mês ou no verão seguinte. Os agricultores viajavam, em sua imaginação, anos e décadas no futuro.
Os caçadores-coletores desconsideravam o futuro porque viviam do que havia disponível e somente com dificuldade conseguiam conservar alimentos ou acumular bens. É claro que eles faziam alguns planos. [...] As alianças sociais e as rivalidades políticas eram negócios de longo prazo. Muitas vezes se levava anos para retribuir um favor ou vingar uma ofensa. No entanto, na economia de subsistência da caça e da coleta, havia um limite óbvio a tal planejamento de longo prazo. Paradoxalmente, isso poupava os caçadores-coletores de muitas ansiedades. Não fazia sentido se preocupar com coisas que eles não podiam controlar. [...]
Em consequência, desde o advento da agricultura as preocupações com o futuro se tornaram atores importantes no teatro da mente humana.
O estresse representado pela agricultura teve consequências importantes. Foi a base dos sistemas políticos e sociais de grande escala. Infelizmente, mesmo trabalhando duro, os camponeses quase nunca alcançaram a segurança econômica futura que tanto ansicavam. Em toda parte, brotaram governantes e elites, vivendo do excedente dos camponeses e deixando-os com o mínimo para a sobrevivência.
Esses excedentes de alimento confiscados alimentaram a política, a guerra, a arte e a filosofia. Construíram palácios, fortes, monumentos e templos. Até o fim da era moderna, mais de 90% dos humanos eram camponeses que se levantavam todas as manhãs para trabalhar a terra com o suor da fronte. Os excedentes que produziam alimentavam a ínfima minoria das elites - reis, oficiais do governo, soldados, padres, artistas e pensadores -, que enchem os livros de história. A história é o que algumas poucas pessoas fizeram enquanto todas as outras estavam arando campos e carregando baldes de água. [...]
O punhado de milênios separando a Revolução Agrícola do surgimento de cidades, reinos e impérios não foi tempo suficiente para possibilitar o desenvolvimento de um instinto de cooperação em massa. [...]
Os mitos, como se veio a saber, são mais influentes do que qualquer um poderia ter imaginado. Quando a Revolução Agrícola criou oportunidades para a criação de cidades populosas e impérios poderosos, as pessoas inventaram histórias sobre grandes deuses, pátrias-mães e empresas de capital aberto para fornecer os elos sociais necessários. Enquanto a evolução humana estava rastejando no seu usual ritmo de tartaruga, a imaginação humana estava construindo redes impressionantes de cooperação em massa, diferentes de qualquer outra já vista.
Por volta de 8.500 a.C., os maiores assentamentos do mundo eram vilarejos como Jericó e outros. Em 3.100 a.C, todo o vale do baixo Nilo estava unido no primeiro reino egípcio. Por volta de 2.250 a.C., Sargão, o Grande, construiu o primeiro império, o Acadino. Entre 1.000 e 500 a.C., apareceram os primeiros megaimpérios no Oriente Médio: o Império Assírio, o Império Babilônico e o Império Persa. Eles governavam muitos milhões de súditos e comandavam dezenas de milhares de soldados. [...]
Todas essas redes de cooperação - das cidades da antiga Mesopotâmia aos impérios Qin e Romano - foram "ordens imaginadas". As normas sociais que as sustentavam não se baseavam em instintos arraigados nem em relações pessoais, e sim na crença em mitos partilhados.
Como os mitos podem sustentar impérios inteiros? Examinemos dois dos mitos mais conhecidos da história: o Código de Hamurabi, de aproximadamente 1.776 a.C., que serviu como um manual de cooperação para centenas de milhares de babilônicos na Antiguidade, pois o mais famoso rei babilônico chamava-se Hamurabi, sua fama se deve principalmente ao texto que recebe seu nome: o Código de Hamurabi. Este foi uma coleção de de leis e decisões judiciais cujo objetivo era apresentar Hamurabi como modelo de rei justo, servir de base para um sistema juridico mais uniforme em todo o Império Babilônico e ensinar às gerações futuras o que é justiça e como age um rei justo. As gerações futuras prestaram atenção. A elite intelectual e burocrática da antiga Mesopotâmia canonizou o texto, e escribas aprendizes continuaram a copiá-lo muito depois de Hamurabi morrer e de seu império cair em ruina. O código de Hamurabi é, portanto uma boa fonte para entender o antigo ideal de ordem social dos mesopotâmios; e a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776, que ainda serve como um manual de cooperação para centenas de milhões de norte-americanos.". Eis aí uma breve narrativa a respeito da formação do pensamento jurídico que atualmente estamos aprimorando.

Faculdade Estácio de Curitiba - IED - 2019.1

UMA ORDEM IMAGINADA (MITO)

1) Em 1776 a.C., a Babilônia era a maior cidade do mundo. O mais famoso rei da Babilônia foi Hamurabi. Ele instituiu o Código de Hamurabi, que depois de listar seus julgamentos, expressa: "Essas são as justas leis que Hamurabi, o rei sábio, estabeleceu e, por meio delas, conduziu a terra no caminho da verdade e da retidão [...] eu sou Hamurabi, rei nobre. Não me eximi da minha responsabilidade para com a humanidade, entregue a meus cuidados pelo rei Enlil, e de cuja condução deus Marduk me encarregou."

1.1) O Código de Hamurabi afirma que a ordem social babilônica tem origem em princípios universais e eternos de justiça ditados pelos deuses. O princípio de hierarquia é de suma importância. As futuras gerações prestaram atenção nele.

2) A Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), afirma: "Consideramos estas verdades evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais,  que são dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura de felicidade."

2.1) Como o Código de Hamurabi, o documento fundacional norte-americano promete que, se os humanos agirem de acordo com seus princípios sagrados, milhões deles serão capazes de cooperar de maneira eficaz, vivendo em paz e segurança em uma sociedade justa e próspera. Tanto um como outro, foram documentos de seu tempo e lugar. Os dois textos nos apresentam um dilema óbvio. Tanto o Código de Hamurabi quanto a Declaração de Independência dos Estados Unidos afirmam definir princípios universais e eternos de justiça, mas de acordo com os norte-americanos todas as pessoas são iguais e conforme os babilônios as pessoas são decididamente desiguais. Em que sentido todos os humanos são iguais uns aos outros? Para a biologia, as pessoas não foram "criadas"; elas evoluíram. E certamente não evoluíram para ser "iguais". A ideia de igualdade está intrinsecamente ligada à ideia de criação. A evolução se baseia na diferença, e não na igualdade. Cada pessoa carrega um código genético um pouco diferente e é exposta, desde o nascimento, a diferentes influências ambientais. Isso leva ao desenvolvimento de diferentes qualidades que carregam consigo diferentes chances de sobrevivência. Portanto, "são criados iguais" deveria ser traduzido como "evoluíram de forma diferente". Não existem direitos na biologia. Há apenas órgãos, habilidades e características.

3) A Constituição Brasileira (1988), em seu preâmbulo, expressa: "Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assmbleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das constrovérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL."; " Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distro Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."

3.1) Para CELSO RIBEIRO BASTOS, os preâmbulos têm a função de "facilitar o processo de absorção da Constituição pela comunidade. São palavras pelas quais o constituinte procura fincar a legitimidade do Texto. É um retrato da situação de um momento, o da promulgação da Constituição". Quanto a ser o preâmbulo parte da Constituição, responde o constitucionalista pátrio, sob o ponto de vista normativo e preceptivo, que a resposta somente pode ser negativa, pois, os "dizeres dele constantes não são dotados de força coercitiva". 

O magistério de RIBEIRO BASTOS é no sentido de afirmar que, inobstante, não sendo ato juridicamente irrelevante, tem função auxiliar de interpretação do Texto Constitucional, mas não se pode querer fazer prevalecer um preceito normativo do que dele consta, sobre o que compõe o articulado. O Preâmbulo da Constituição de 1988, nas palavras do autos, quer significar o seguinte: "compõe-se de duas partes: a primeira destinada a firmar a legitimidade formal, e a segunda, por sua vez, é como que compensatória da magreza e do esqueletismo da primeira, elencando objetivos a serem perseguidos pelo Estado brasileiro". 

A conclusão irrefutável é a de que RIBEIRO BASTOS coloca a redação do Preâmbulo da Constituição, como palavras e expressões redundantes, na medida em que são repetidas nos dispositivos constitucionais. Firma sua doutrina pela não força normativa dos preâmbulos constitucionais. Com a devida vênia, pode-se dizer que se trata de doutrina não aconselhável para uma iniciação ao estudo do direito material, pois, com tal posicionamento não recepciona os direitos individuais e fundamentais clássicos existentes no preâmbulo, nem tão pouco reconhece a materialidade dos modernos direitos sociais de caráter coletivo e difuso, ou supra-individual.

O pensamento de MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO reside na premissa da atribuição de uma ausência de força obrigatória do preâmbulo da Constituição Federal de 1988, pois, entende que se trata de um texto destinado a realizar uma indicação dos planos, objetivos e intenções do constituinte. Num estudo constitucional comparativo leciona que, "é inaplicável ao caso brasileiro a doutrina e a jurisprudência francesas que dão força obrigatória ao preâmbulo da Constituição de 1946 e ao da Constituição de 1958. Com efeito, o preâmbulo da Constituição de 1946, em especial, continha normas precisas e não meros princípios. Em conseqüência se podia entender, como se entendeu, que ele traduzisse normas obrigatórias". FERREIRA FILHO esboça a idéia de que o preâmbulo expressa, simplesmente, uma série de afirmações de princípios, que representam e devem ser assim interpretados como um ideal, e não como normas jurídico-constitucionais de aplicação e exigibilidade imediatas.

Na doutrina de JOSÉ CRETELLA JÚNIOR identifica-se um desprezo taxativo pela discussão envolve o preâmbulo constitucional, restringe-se a dissertar sobre a tradicional divisão doutrinária existente quanto a eficácia, o valor, ou a incidência das expressões jurídico-vocabulares lançadas pelos constituintes no preâmbulo. CRETELLA JÚNIOR conforma-se em lecionar que, "dividem-se as colocações em dois grupos distintos, o primeiro, acentuando a importância do Preâmbulo, ressaltando-lhe a relação com dispositivos do texto; o segundo, procurando minimizar a relação entre a peça vestibular e o próprio texto articulado. Na interpretação dos dispositivos constitucionais subseqüentes, os dizeres do Preâmbulo, se for o caso, se esclarecerem ou completarem o texto, devem ser levados em conta, para efeito de interpretação. Como o Preâmbulo é elemento integrante da Constituição, assim que promulgada, não há a menor dúvida de que a ele se deve recorrer, quando surgem problemas de hermenêutica, desde que, nessa peça vestibular ou introdutória, haja princípios que se relacionem de modo direto ou indireto com os dispositivos constitucionais questionados". 
Analisando os direitos: brasileiro e francês, o pensador das Arcadas expressa o entendimento de que na França a discussão tem sua relevância. Mas, no Brasil entende ser a discussão de uma inutilidade atroz. O autor disserta que, "na França, a discussão é importante, porque, por exemplo, nas Constituições de 1946 e 1958, os Preâmbulos, longos, se fundamentam nos princípios das Declarações de Direitos, mas, no Brasil, em que os Preâmbulos equivalem às invocações das epopéias clássicas ("E vós, Tágides minhas, dai-me ..."), não tendo relações com o texto, a não ser acidentais, qualquer polêmica será estéril e acadêmica".  Trata-se de uma doutrina de visão jurídico-material finita e limitada, não compreendendo o momento histórico do Direito como Ciência, e não apenas como sistema de normas. Não consegue enxergar a necessidade irrenunciável do Direito como instrumento provocador da realização sócio-material para os decênios.

Extremamente difícil é realizar uma afirmação quanto ao posicionamento doutrinário de PONTES DE MIRANDA, apesar do pensador alagoano examinar cada expressão usada no preâmbulo da Constituição de 1946, restringe-se a afirmar que eles têm o papel de dizer alguma coisa acerca de "qual o poder estatal, isto é, o poder de construir e reconstruir o Estado". Advertindo, porém, que, ainda quando os preceitos constitucionais aprofundem os traços gerais lançados no preâmbulo, "isso de modo nenhum autoriza a que se ponham de lado, na interpretação dos textos constitucionais, os dizeres do Preâmbulo. Todo Preâmbulo anuncia; não precisa anunciar tudo, nem, anunciando, restringe".  A mesma constatação pode se obter nos comentários à Constituição de 1967. 

Na lição de JOSÉ AFONSO DA SILVA, as normas do Preâmbulo da Constituição – assim como as das disposições transitórias –, são classificadas quanto a sua eficácia, como normas de aplicabilidade da Constituição. Chega, até mesmo, a fazer referência (CARL FRIEDRICH, CARL SCHMITT, VEDEL, GARCIA-PALAYO) às posições a favor da força normativa do preâmbulo constitucional. Para AFONSO DA SILVA, os preâmbulos constitucionais valem como orientação para a interpretação e aplicação das normas constitucionais. Leciona o autor que, "têm, pois, eficácia interpretativa e integrativa; mas, se matem uma declaração de direitos políticos e sociais do homem, valem como regra de princípio programático, pelo menos, sendo que a jurisprudência francesa, como anota LIET-VEAUX, lhes dá valor de lei, uma espécie de lei supletiva". 

O entendimento doutrinário esboçado por DALMO DE ABREU DALLARI acerca do preâmbulo constitucional, quando menciona que é objetivo assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, é no sentido de que "é muito importante notar que o Preâmbulo fala em assegurar o exercício dos direitos, o que tem significação mais concreta do que uma simples declaração dos direitos, sem preocupação com seu exercício". Portanto, define na sua doutrina humanista o ilustre professor das Arcadas que, "o Preâmbulo da atual Constituição brasileira é bem adequado a uma Constituição democrática, segundo as modernas concepções. Ele ressalta que a Constituição foi elaborada por processo democrático, mas acrescenta que a Constituição é um instrumento para a consecução de objetivos fundamentais da pessoa humana e de toda a Humanidade. Um dado final que tem grande importância é que na obra de vários constitucionalistas brasileiros contemporâneos, assim como na jurisprudência, já é referido o Preâmbulo como norma constitucional, de eficácia jurídica plena e condicionante da interpretação e da aplicação das normas constitucionais e de todas as normas que integram o sistema jurídico brasileiro". 

Já na doutrina de MAURÍCIO ANTONIO RIBEIRO LOPES  constata-se que estão consagrados no Preâmbulo da Constituição de 1988, diversos valores fundamentais ou superiores da Constituição. Valores fundamentais estes que não podem ser interpretados como palavras e expressões redundantes, ou vazias, ou mesmo como normas constitucionais programáticas que nunca se realizam. Caso assim fossem, poder-se-iam chamar-se taxativamente de normas programáticas para um futuro inatingível. A lição do representante das Arcadas é no sentido de que o preâmbulo tem natureza jurídica e exigibilidade imediata, detentor de força normativa, norma constitucional exeqüível em si mesma.
A síntese que se pode realizar do ensinamento de RIBEIRO LOPES pode ser assim esboçada numa citação contundente quando afirma que, "os valores incorporados pela Constituição a seu contexto têm, é evidente, a natureza de valores políticos. Políticos na sua proveniência e que se objetivando em normas passaram a ser jurídicos e como tal exigíveis, pois trazem as propriedades de validez e eficácia inerentes a estas. A circunstância de se situarem no plano constitucional – o plano mais elevado do ordenamento jurídico –, que é a sua sede logicamente adequada, impõe a conseqüência da exigibilidade imediata. Não há, por isso, possibilidade lógico-jurídica de fazer depender os seus efeitos de normas de integração como se sustenta às vezes, ora na doutrina, ora no campo da jurisprudência dos tribunais". 

4) Os pássaros voam não porque têm o direito de voar, mas porque têm asas. E não é verdade que esses órgãos, habilidades e características são "inalienáveis", Muitos deles passam por mutações constantes e podem muito bem se perder completamente com o tempo. O avestruz é uma ave que perdeu a capacidade de voar. Portanto, "direitos inalienáveis" deveria ser traduzido como "características mutáveis". E quais são as características que evoluíram nos humanos? "Vida", certamente. Mas "liberdade"? Isso não existe na biologia. Assim como igualdade, direitos e empresas de responsabilidade limitada, a liberdade é algo que as pessoas inventaram e que só existe em nossa imaginação. De uma perspectiva biológica, não faz sentido dizer que os humanos em sociedades democráticas são livres, ao passo que os humanos em sociedades ditatoriais não o são. E quanto a "felicidade"? Até o momento as pesquisas biológicas foram incapazes de propor uma definição clara de felicidade ou uma maneira de medi-la objetivamente. A maioria dos estudos biológicos reconhece apenas a existência de prazer, que é mais facilmente definido e medido. Portanto, "a vida, a liberdade e a procura da felicidade" deveria ser traduzido como "a vida e a procura de prazer".  Os defensores da igualdade e dos direitos humanos talvez fiquem escandalizados com essa linha de raciocínio. Sua reação provavelmente será: "Nós sabemos que as pessoas não são iguais biologicamente! Mas se acreditarmos que somos todos iguais em essência, isso nos permitirá criar uma sociedade estável e próspera". Não se deve desenvolver nenhum argumento contra isso. É exatamente o que pode dizer com "ordem imaginada". 
5) Convém observar que o Direito não existe senão para regular o convívio, isto é, para regular relações intersubjetivas ou impessoais. Assim, têm-se duas ideias correlatas: a de Direito, como conjunto de normas jurídicas e a de relação jurídica, como relação interpessoal por ele regulada. Que seu objeto é o Direito positivo (ou direito posto), mas considerado o Direito positivo de um Estado determinado, num dado momento histórico-cultural, ou como direito em certo ponto do espaço-tempo, com suas peculiaridades histórico-sócio-culturais. Que o Direito-objeto, além de estudado e descrito pela ciência, é normativo. Já a ciência que o estuda e descreve, no entanto, não é normativa, porém descritiva, como ensina o jurista Eros Roberto Grau. E denomina-se a parte teórica de sistemática jurídica, enquanto à prática empresta-se a denominação de técnica jurídica.

sábado, 23 de março de 2019

Faculdade Estácio de Curitiba - IED 2019.1 - Direito e Sociedade


A expressão Direito e Sociedade implica inúmeras outras. Por exemplo: Conceito, Relação, Indivíduos, Furto, Roubo, Ordem, Paz, Contrato, Autoridade, Sociologia, Estado, Política, Religião, Economia, Antropologia, Psicologia, Moral, Ética, Escola, Família, Educação, Ideologia, Arte, Guerra, Propriedade, Justiça etc..

Vamos tomar de empréstimo algumas análises a seguir.

"Hamid Bdina Neto, sustenta que: O homem vive em sociedade e a relação que se estabelece entre as pessoas está sujeita a conflitos, tornando necessário que regras solucionam suas desavenças. Por isso, somente ao homem inserido num contesto social é que se torna relevante o direito como modo de evitar a necessidade de soluções privadas violentas. Assim sendo, para eliminar ou resolver conflitos e organizar as relações entre as pessoas é que existem normas jurídicas.

O direito tem a função de organizar a sociedade, de manter a sua funcionalidade, evitar que ela se torne instintiva. O ser humano vive em sociedade e é subordinado ao direito que foi criado pelo próprio homem. Muitos autores, filósofos e pensadores escrevem a respeito do indivíduo, sociedade e direito. A seguir fragmentos de seus pensamentos definirão a relação esses três elementos.

A SOCIEDADE E O DIREITO

O filósofo Aristóteles, fundou sua própria escola, o Liceu. Ele ministrava aulas nos jardins, seus alunos aprendiam enquanto andavam em sua companhia, respondiam e formulavam indagações e faziam observações.

O método de Aristóteles era analítico. Para o filósofo conhecer a verdade era sentir o mundo. Ele jamais procuraria uma verdade universal e sim observaria as características e as explicaria detalhadamente. Para Aristóteles a observação deveria ser cuidadosa, analisando os fatos da vida com prudência. A respeito do homem em sua obra A Política dizia: É evidente, pois, que a cidade faz parte das coisas da natureza, que o homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade, e que aquele que, por instinto, e não porque qualquer circunstância o inibe, deixa de fazer parte de uma cidade, é um ser vil ou superior ao homem. Tal indivíduo merece, como disse Homero, a censura cruel de ser um sem família, sem leis, sem lar. Porque ele é ávido de combates, e como as aves de rapina, incapaz de se submeter a qualquer obediência. (ARISTÓTELES, 2010, p.13).

A diferença entre o homem e os demais animais, portanto, é que o homem é um animal político, ou seja, vive em sociedade e precisa administrar seus interesses.

Outro autor que escreveu sobre o tema foi Thomas Hobbes. Hobbes era contratualista, porque acreditava que o estado e a sociedade surgiram de um contrato estabelecido entre os homens. Em sua obra Leviatã, ele reconhece que existem diferenças entre os homens, do ponto de vista físico ou espiritual. Mas esta diferença: não é suficientemente considerável para qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele. Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo. (THOMAS, 1988, p.74).

Esta afirmação de Hobbes revela sua ideia de que os homens faziam um contrato para organizar o Estado e a sociedade, de maneira que todos reunissem suas virtudes e abrissem mão de algumas vantagens pessoais, em benefício de todos os integrantes da sociedade.

Outro pensador que avaliou a condição do indivíduo perante a sociedade foi Freud.

Sigmund Freud nasceu no de 1856 em Freiberg, que fazia parte do império Austríaco e hoje faz parte da República Tcheca. Freud é considerado o pai da psicanálise. Para o psicanalista Sigmund Freud em seu livro Psicologia das massas e análise do eu, o indivíduo é definido como: [...] Membro de uma tribo, um povo, uma casta, uma classe, uma instituição ou como elemento de um grupo de pessoas que, em certo momento e com uma finalidade determinada se organiza em uma massa. (SIGMUND, 2009, p.37).

Mais recentemente, revelou-se importante para a avaliação das atuais características das relações sociais modernas o pensamento do sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Ele faz uma crítica ao homem contemporâneo: A apresentação dos membros como indivíduos é a marca registrada da sociedade moderna. Essa apresentação, porém, não foi uma peça de um ato: é uma atividade reencenada diariamente. A sociedade moderna existe em sua atividade incessante de “individualização”, assim como as atividades dos indivíduos consistem na reformulação e renegociação diárias da rede dos entrelaçamentos chamados “sociedade”. Nenhum dos dois parceiros fica parado por muito tempo. E assim o significado da “individualização” muda, assumindo sempre novas formas- à medida que os resultados acumulados de sua história passada solapam as regras herdadas, estabelecem novos preceitos comportamentais e fazem surgir novos prêmios no jogo. A “individualização” agora significa há cem anos e do que implicava nos primeiros tempos da era moderna- os tempos da exaltada “emancipação” do homem da trama estreita da dependência da vigilância e da imposição comunitárias. (Zygmunt, 2001, p.39).

De acordo com Aristóteles, o homem se distingue dos demais seres vivos porque é capaz de diferenciar o bem e o mal, o justo do injusto. O filósofo afirma que a prudência e a virtude são conferidas aos homens para que ele não se torne feroz e decida suas ações apenas por amor e por comida. Segundo ele “A justiça é a base da sociedade. (ARISTÓTELES, 2010, p.13).


Mas se a justiça é a base da sociedade, examinar a relação entre a sociedade e o direito depende da apuração do conceito de justiça. A definição de justiça no Dicionário Houaiss: Qualidade do que está em conformidade com o que é direito; maneira de perceber, avaliar o que é direito, justo. Exemplo: Não há como questionar a justiça de sua causa. (HOUAISS, 2009).

Em seu livro Ética a Nicômacos, a respeito da justiça Aristóteles escreveu que: A justiça é a observância do meio-termo, mas não de maneira idêntica à observância de outras formas de excelência moral, e sim porque ela se relaciona com o meio-termo, enquanto a injustiça se relaciona com os extremos. E a justiça é a qualidade que nos permite dizer que uma pessoa está predisposta a fazer, por sua própria escolha, aquilo que é justo, e, quando se trata de repartir alguma coisa entre si mesma e outra pessoa, ou entre duas pessoas, está disposta a não dar demais a si mesma e muito pouco à outra pessoa daquilo que é nocivo, e sim dar a cada pessoa o que é proporcionalmente igual, agindo de maneira idêntica em relação a duas outras pessoas. A justiça por outro lado, está relacionada identicamente com o injusto, que é excesso e falta, contrário à proporcionalidade, do útil ou do nocivo. Por esta razão a injustiça é excesso e falta, no sentido de que ela leva ao excesso e à falta- no caso da própria pessoa, excesso do que é útil por natureza e falta do que é nocivo, enquanto no caso de outras pessoas, embora o resultado global seja semelhante ao do caso da própria pessoa, a proporcionalidade pode ser violada em uma direção ou na outra. No ato injusto, ter muito pouco é ser tratado injustamente, e ter demais é agir injustamente (ARISTÓTELES, 1999, p.101).

Hans Kelsen em seu livro O Problema da Justiça ele diz: A Justiça poderia ser uma aspiração política e filosófica de forte ordem prática, de indispensável e reconhecido fundamento Moral. Todavia, a Justiça não guardaria qualquer relação necessária com a Ciência do Direito ou com o Direito positivo- afinal, ele poderia ser estudado, ensinado e aplicado independentemente de ser ou não justo. (Hans, 1998, p.).

No livro Filosofia do Direito, o jurista Alysson Leandro Mascaro comenta sobre a concepção platônica no livro As leis a respeito do direito: A concepção platônica sobre o justo é muito peculiar e especial. Difere totalmente da visão que o jurista moderno tenha sobre o direito. Para o pensamento de Platão, torna-se muito difícil dissociar direito de justiça, o que é reforçado pelo fato de que a mesma palavra, díkaion, é utilizada de maneira intercambiável no texto platônico para essas duas ideias. (ALYSSON, 2014, p.54).

Como se disse no início do trabalho, agora referendado pelos estudiosos do direito, cabe ao sistema jurídico organizar a sociedade.

A má utilização do direito pode acabar com os direitos humanos. Na 2ª guerra mundial, na Alemanha nazista, milhões de pessoas foram presas e mortas, pelo simples fato de serem, judeus, testemunhas de jeová, homossexuais, ciganos etc. Tais atrocidades foram protegidas pela lei alemã da época. Fazendo o uso da própria lei, após a derrota dos nazistas, eles foram processados, julgados e condenados pelos crimes tinham cometido. A utilização correta da lei traz o que pode ser considerado justiça.
O direito pune, porém não impede o ato de ocorrer. As ações contra a lei são punidas por ela própria. Sabemos que o direito atribui ao Estado o poder coercitivo, conferindo-lhe a exclusividade do uso da violência. Por intermédio da punição prevista na lei e que todas as pessoas conhecem, são aplicadas penas consideradas justas aos que praticam crime. Esta lógica tem por objeto a proteção de toda a sociedade.

O direito é uma invenção do ser humano, da sociedade, ele é um fenômeno histórico arraigado nas sociedades. A estrutura do direito tem especificidade no capitalismo. O direito vem em razão social e visa trazer a justiça. Sem a sociedade não existe o direito e sem o direito a sociedade torna-se desordenada. No livro Elementos Da Teoria Geral do Estado, o autor Dalmo de Abreu Dallari explica a origem da Sociedade: A vida em sociedade traz evidentes benefícios ao homem, mas, por outro lado, favorece a criação de uma série de limitações que, em certos momentos e em determinados lugares, são de tal modo numerosas e frequentes que chegam a afetar seriamente a própria liberdade humana. (DALMO, 1971, p.7).

Jean-Jacques Rousseau em sua obra O Contrato Social, escreveu a respeito da preocupação não só com a celebração, mas com a preservação da soberania política da vontade geral. Além disso ele escreveu a respeito da sociedade dizendo que: É a família, portanto, o primeiro modelo das sociedades políticas; o chefe é a imagem do pai, o povo a imagem dos filhos e havendo nascido todos livres e iguais, não alienam a liberdade a não ser em troca da sua utilidade. Toda a diferença consiste em que, na família, o amor do pai pelos filhos o compensa dos cuidados que estes lhe dão, ao passo que, no Estado, o prazer de comandar substitui o amor que o chefe não sente por seus povos. (JEAN, 1999, p. 22).

No livro A Sociedade Dos Indivíduos, o autor Norbert Elias observou o seguinte: A sociedade, como sabemos, somos todos nós; é uma porção de pessoas juntas. Mas uma porção de pessoas juntas na Índia e na China formam um tipo de sociedade diferente da encontrada na América ou na Grã-Bretanha; a sociedade composta por muitas pessoas individuais na Europa do século XII era diferente da encontrada nos séculos XVI ou XX. E, embora todas essas sociedades certamente tenham consistido e consistam em nada além de muitos indivíduos, é claro que a mudança de uma forma de vida em comum para outra não foi planejada por nenhum desses indivíduos. Pelo menos, é impossível constatarmos que qualquer pessoa dos séculos XII ou mesmo XVI tenha conscientemente planejado o desenvolvimento da sociedade industrial de nossos dias. Que tipo de formação é esse, esta “sociedade” que compomos em conjunto, que não foi pretendida ou planejada por nenhum de nós, nem tampouco por todos nós juntos? Ela só existe porque existe um grande número de pessoas, só continua a funcionar porque muitas pessoas, isoladamente, querem e fazem certas coisas, e no entanto sua estrutura e suas grandes transformações histórias independem, claramente, das intenções de qualquer pessoa em particular. (NORBERT, 1994, p.13).

Anthony Giddens em seu livro As Consequências da Modernidade procura apontar um conceito de sociedade: O conceito de “sociedade” ocupa uma posição focal no discurso sociológico. “Sociedade” é obviamente uma noção ambígua, referindo-se tanto à “associação social” de um modo genérico quanto a um sistema específico de relações sociais. Preocupo-me aqui apenas com o segundo destes usos, que certamente figura de uma maneira básica em cada uma das perspectivas sociológicas dominantes. Embora os autores marxistas possam às vezes favorecer o termo “formação social” em relação à “sociedade”, a conotação de “sistema fechado” é análoga.
Nas perspectivas não marxistas, particularmente aquelas relacionadas à influência de Durkheim, o conceito de sociedade com a qual virtualmente todo manual se inicia- “sociologia é o estudo das sociedades humanas” ou “sociologia é o estudo das sociedades modernas”- expressa claramente esta concepção. Poucos, se é que os há, autores contemporâneos seguem Durkheim tratando a sociedade de uma maneira quase mística, como uma espécie de “super-ser” ao qual os membros individuais exibem bem apropriadamente uma atitude de reverência. Mas a primazia da “sociedade” como a noção central da sociologia é muito amplamente aceita. (ANTHONY, 1991, p.21).

Em seu livro Introdução ao Estudo do Direito o jurista Alysson Leandro Mascaro explica o que é o direito, tendo como base filósofos e pensadores. Uma das definições que o autor dá a respeito do direito em seu livro é: O direito é compreendido como uma forma normativa porque os Estados no capitalismo, assumem o papel de garantir politicamente a reprodução social tornando-se distintos daqueles que dominam economicamente a sociedade. Os Estados operam normativamente. Mas não é a norma que fez o direito. A norma é uma forma pela qual o direito se exprime, mas a forma de sua constituição e de sua operacionalização advém diretamente de estruturas sociais concretas. (ALYSSON, 2013, p.66).

Para ele também: O direito é, essencialmente, um fenômeno histórico. Em sua evolução houve vários entendimentos a respeito de sua identificação. Se os antigos romanos chegavam a dizer que o direito é uma arte, no mundo moderno não se diz o mesmo, pois o direito agora está mergulhando em formas sociais necessárias e procedimentos já estabelecidos previamente, regulados por normas, hierarquias e técnicas. Assim se quiséssemos captar numa mesma ciência duas abordagens distintas sobre fenômenos também distintos, essa ciência estaria prejudicada. (ALYSSON, 2013, p.32).

Além disso Alysson Leandro Mascaro diz: O direito apresenta-se como um vasto campo de relações que devemos analisar e, para isso, são necessárias inúmeras ciências que venham, em conjunto e aglutinadas entre si, definir certos objetos que historicamente possam ser nomeados por “jurídicos”, e a partir daí entender suas razões estruturais. É preciso reconhecer que a técnica que permeia as normas jurídicas é grande parte desses objetos, mas não tudo. Por isso uma ciência do direito ou é um conhecimento amplo, dialético, envolvendo várias ciências e analisada dentro da história social, ou então ela será um conhecimento empobrecido, meramente técnico e restrito. (ALYSSON, 2013, p.36).

Em seu sentido como ideologia Alysson Leandro Mascaro escreveu nesse mesmo livro dizendo que: No seio das relações sociais, a forma jurídica estabelece uma dominação não só por meio das suas estruturas técnicas, mas também por meio da sua ideologia. Quando o direito das sociedades capitalistas, por meio das suas normas, declara que todos são iguais perante a lei, na verdade está procedendo uma dominação ao mesmo tempo técnica e ideológica. Técnica porque está excluindo o privilégio da nobreza, por exemplo, e tratando de maneira formalmente igual ao contratante e ao contratado, e isso é de interesse ao capitalismo, na medida em que o Estado executará a qualquer um que contratar caso não cumpra o contrato. Ideológica porque deixa entender uma igualdade que só é formal, mas não concreta. Ao tratar igualmente o capitalista e o proletário, o direito nivela, com a mesma medida, dois sujeitos desiguais, sem igualar suas condições. Assim ao invés de demonstrar a desigualdade real entre as partes o direito esconde. (MASCARO, 2013, p.30).

O autor do artigo Justiça, Política e Direitos Humanos: As instituições Jurídicas e a Manutenção do Justo Meio na Esfera Política, Arthur Roberto Capella Giannattasio, mostra que o direito é um instrumento garantidor e fundamental para os Direitos Humanos, mas que se utilizado de maneira abusiva e maliciosa pode acabar com os Direitos Humanos.

No artigo, o autor invoca o pensamento de Hans Kelsen: Hans Kelsen (2000), conforme apresentado em sua Teoria Pura do Direito. Para o autor, Direito seria um conjunto de normas- isto é, de uma posição normativa (dever-ser) fruto da vontade do legislador- objetivamente reconhecidas como obrigatórias. A juridicidade delas adviria do fato de elas deterem nelas (normas primárias), ou em normas a elas correlatas (normas secundárias), uma sanção coercitiva. O Direito poderia ser resumido, grosso modo, como ordem coercitiva. (GIANNATASIO,, p.3).

O mesmo autor aponta a concepção de direito para Miguel Reale: Para este autor, o Direito seria Manifestação de experiência cultural em que há uma específica relação dialética entre três fatores componentes do Direito: fato, valor e norma. Estes jamais permanecem estagnados em seus campos de abrangência e restam permanentemente implicados em uma constante relação tensa entre fato e valor, de onde resulta o momento normativo. É este terceiro elemento (norma) que fornece uma solução superadora e integrante nos limites circunstanciais de lugar e de tempo, que une os dois mundos (natureza e valor). Na distinção entre Direito e Moral, o primeiro seria bilateral (dois polos), atributivo (exigibilidade de condute entre homens), coercível e heterônomo, ao passo que a última seria apenas bilateral, não pressupondo exigibilidade de conduta entre homens (atributividade), nem impositividade (coercitividade). (GIANNATASIO, 2015, p.4).

Outro autor por ele citado é Emil Lask, ele diz que: Para Emil Lask (FERRAZ JR, 1976), o Direito é seria fruto da relação- ou a própria relação- entre a realidade empírica e os resultados do processo de aprimoramento cultural de uma sociedade (valores relevantes ou “significações culturais”), a qual estaria em contínuo desenvolvimento histórico no interior de forma jurídica- a norma seria o resultado de tais sínteses culturais, ou ainda a expressão mais imediata de tais sínteses (as sínteses elas mesmas tornadas dever-ser). No embate entre Direito e Moral, o primeiro se diferenciaria por deter maior probabilidade de cumprimento. (GIANNATASIO, 2015, p.4).

Arthur Roberto Capella Giannattasio a respeito de Gustav Radbruch diz que o autor: [...] Apresenta, em sua Filosofia do Direito, a percepção de que o Direito seria um fato, uma realidade, precisamente por ser uma obra humana- isto é, um bem cultural, o qual teria sido constituído em função do valor Justiça. A diferença entre Direito e Moral seria dada pela seguinte distinção: uma ação seria considerada jurídica quando fosse considerada boa para a vida em comum, ao passo que a ação seria reputada moral quando fosse boa em si mesma. (GIANNATASIO, 2015, p.4).

Na conclusão de seu artigo o autor Arthur Roberto Capella Giannattasio fala o que seria em sua visão o direito ideal: Longe de simplesmente seguir o “dar a cada o que é seu” por meio do direito, a instauração de um Direito Político poderia conferir condições institucionais outras para realizar o ideal de Justiça. Conforme proposição adotada por este trabalho, uma sociedade justa seria aquela que teria recebido uma disposição justamente ordenada das possibilidades de influência nos processos de decisão política fundamentais. Ou ainda, uma sociedade que preserva no meio o local do Direito e do Poder, sem hipostasiar a posição normativa de qualquer dos termos fundamentais opostos na cidade. (GIANNATASIO, 2015, p.23).

CONCLUSÃO

A pesquisa sobre as concepções de sociedade e direito, como revelam as análises e a pesquisa da obra dos autores cujo pensamento foi invocado no texto demonstram a relevância do direito para a busca de uma sociedade organizada e justa. Por intermédio do direito, o homem pode organizar suas relações conflituosas e manter um contrato social em que se busque de modo renovado o fim último que é, na concepção de Aristóteles a construção de uma sociedade justa.".

Em Francesco Carnelutti (Como Nasce o Direito - I Direito e Economia): "Ao começar a falar-lhe noutro dia, apresentei o exemplo de alguém que, ao passar diante de uma frutaria rouba ou compra uma maçã. Estes atos, do roubo ou da compra, são jurídicos: porém, antes que ao campo do direito, pertencem ao da economia.

São atos econômicos todos aqueles mediante os quais os homens tratam de satisfazer suas necessidades. A palavra economia, que vem do grego, até expressa literalmente essa ideia, porquanto oikos quer dizer 'casa'. A casa é um direito fundamental do homem, e até da sociedade, já que provê o ambiente dentro do qual a família, que é a célula da sociedade, pode realizar o milagre da propagação da espécie mas, sobretudo, o da formação do indivíduo.

As necessidades dos homens são ilimitadas, e os bens são limitados. Contraditoriamente, enquanto satisfazem certas necessidades, os bens estimulam outras. Para distinguir o homem dos demais animais, a fórmula mais satisfatória é dizer que o homem nunca está contente. Quanto mais tem, mais quer ter. Por isso é que os homens, como ocorre com as nações, fazem a guerra.

Agora temos que saber o que é a guerra. A ideia que temos dela costuma ser crua e aproximativa. Mesmo a ciência não se preocupa em defini-la exatamente. Quem fala de guerra pensa em dois povos que se combatem com armas.

Essa é, diríamos, a guerra vista com o telescópio. Para compreender o que é a guerra, é preciso empregar, contudo, também o microscópio. Vista de perto, adverte-se que o conceito de guerra depende do conceito de propriedade.

Também a propriedade é um fenômeno econômico, em vez de jurídico. É singular que ele também, como a economia, estabeleça relação com a casa; em latim, o vocabulário correspondente a propriedade é dominium, e este vem de domus, que quer dizer 'casa'. O fato econômico é aquele em virtude do qual alguém, quando tomou algum objeto que lhe serve para satisfazer uma necessidade, quer reter para si esse objeto: o esforço para tomá-lo se prolonga no esforço para conservá-lo. 

Estabelece-se uma relação física entre o homem e o bem, o qual fica retido sob seu domínio, o
u seja, na esfera submetida a sua força física. Observa-se, nele, uma vinculação entre casa e o corpo do homem, que é o que lhe pertence mais do que qualquer outra coisa. Forma-se, em torno do indivíduo, uma espécie de círculo ou de recinto, que é precisamente a domus, a casa, entendida não só como abrigo, mas também como conjunto de coisas que lhe servem para a vida.

A divisa da economia é, felizmente, homo homini lupus ['o homem, para o homem, um lobo'].

Economicamente, o homem se comporta a outro homem como um animal de presa. Em vez de permanecer, cada um, com o que conseguiu apreender, vê-se tentado a roubar do outro. A guerra não é, em sua raiz, mais que esse ato de roubar. É invasão do domínio, em outras palavras. Os limites entre o patrimônio de um homem e o de outro homem, em vez de serem respeitados, são violados.

Não devemos crer, pois que, a guerra se combate unicamente entre os povos e só com armas. À guerra macroscópica, corresponde a guerra microscópica. Também o furto tem a essência da guerra, e não só o roubo, que é o furto com violência, mas também o furto com destreza. Antes de acontecer entre povos, a guerra ocorre entre indivíduos. Se nos parecem estranhas a vinculação e até a identidade entre furto e a guerra, é porque consideramos esse fato sob o aspecto jurídico, e não sob o econômico. Mas, se não começarmos pela economia e, portanto, não desenvolvendo o conceito de guerra em toda a sua amplitude, não compreenderemos o direito. Observemos, então que a guerra produz desordem, ou melhor ainda, é desordem. Da ordem, ideia fundamental para compreender o mundo e a vida, basta falar de forma simples: há desordem quando as coisas não estão em seu devido lugar. Sabem que a guerra se resume na desordem? Recordam-se do que era a Itália há pouco menos de dez anos? Não se podia viver naquele caos.

O segrado de direito está precisamente nisto: que os homens não podem viver no caos. A ordem lhes é tão necessária como o ar que respiram. Como a guerra corresponde à desordem, a ordem corresponde à paz. A guerra, pois, não termina com a paz, mas tende a esta. O que põe fim à guerra é o pactum, e a raiz de pacto é pax. Outra palavra expressiva é contrato, que no fundo, quer dizer o mesmo: colocando fim à guerra, os homens, ao invés de estarem uns contra os outros, tratam de ficar juntos.
Também o contrato, como a propriedade, é um fenômeno econômico, antes que jurídico. Ao combaterem, os homens alegam que têm necessidade uns dos outros. O homem é essencialmente sociável. Em outras palavras, homem e sociedade são dois lados de uma mesma moeda. Robinson Crusoé é o fruto da fantasia de um novelista, porém se colocou ao lado de Viernes, sem o qual não poderia ter feito uma novela sequer. Necessidade de paz e necessidade dos demais homens é a mesma coisa. Como o domínio, como a guerra, assim também o tratado de paz é, portanto, um produto da economia pura.

Porém, enquanto se mantém no terreno puramente econômico, o contrato não oferece, à paz, nenhuma garantia. Economicamente, o contrato é a expressão de um equilíbrio alcançado pelas forças contrárias dos combatentes. Em uma luta, chega-se inevitavelmente ao ponto morto, quando algum dos dois tem a sensação de não poder obter um resultado melhor do que o já alcançado, de maneira que seguir combatendo redundaria somente em perda. Então, os combatentes fazem a paz. Mas esta é uma expressão eufórica, que não corresponde à realidade. Com efeito, mais do que de paz, trata-se de uma trégua. De fato, quando, depois do necessário repouso, um dos adversários acredita ter forças que lhe permitem melhorar a situação estabelecida pela trégua, reinicia-se a luta. No campo da economia, portanto, nunca há paz verdadeira. Toda a história da economia é uma sucessão de lutas e tréguas, pois a pausa entre duas guerras não é a paz verdadeira.

A conclusão que tiramos disso é que a economia não é suficiente para colocar ordem entre ps homens e satisfazer, assim, o que constitui a necessidade suprema do indivíduo e da sociedade.
Em (Como Nasce do Direito - II - Direito e Moral).

Se quiséssemos resumir em uma breve fórmula as razões pelas quais os homens não conseguem viver em paz no terreno da economia, poderíamos dizer que a economia é o reino do eu, ou seja, do egoísmo. No terreno da economia, encontram-se os diversos egoísmos, tanto dos homens quando dos povos. Por isso, é, por si mesmo, o reino da desordem.

Para por ordem no caos econômico e, desse modo, fazer com que os homens vivam em paz, é necessário substituir o egoísmo pelo altruísmo, o eu pelo tu. Se a economia é o reino do eu, o reino do tu é a moral. Em relação a isso, falou Kant sobre o respeito; porém, a fórmula cristã, incomparavelmente mais clara e vigorosa, propõe o amor ao próximo como solução do problema. É evidente que, se quem tem dá espontaneamente a quem não tem, amando-o como a si mesmo, e, se quem recebe se contenta com o recebido, porque também este indivíduo responde como amor, desaparece a guerra.

Da mesma maneira, é claro que, quando se compõem, no amor, os conflitos de interesses entre os homens, já não há lugar ao emprego da força para estes sejam contidos. Por isso, a moral, como reino que é do amor, é também o reino da liberdade. 

Tudo isso é fácil de dizer; todavia, quando se trata de colocar em prática, hic sunt leones ['aqui há leões']. Cristo ensinou que o amor ao próximo e o amor a Deus se implicam reciprocamente, daí que o amor ao próximo seja a perfeição do homem. Mas quanto é necessário para ser perfeito? Amar o outro quer dizer identificar-se com ele, colocar o outro no mesmo nível que a si mesmo. E isso não pode ser menos do que a meta do percurso, longo e penoso, à qual, salvo exceções de certos caracteres privilegiados, os indivíduos, como os povos, não podem chegar senão mediante um lento processo de toda a vida. Mas e até lá?


A necessidade que os homens têm de eliminar a guerra é imediata. É necessário, a qualquer custo, por ordem no caos. Se o amor ainda não germina na terra, é preciso encontrar um substituto. Se quem tem não dá espontaneamente a quem não tem, deve-se convencer o primeiro a fazê-lo. É preciso inventar algo que consiga, a respeito da economia, os mesmos efeitos que a moral. E, se não forem os mesmos, paciência, ao menos se possam aproximar deles. Esse substituto da moral é o direito. Tem-se, então, uma ponte entre a moral e a economia; conclui-se uma espécie de compromisso entre elas. Porém, logo será explicado como isso pode ocorrer.

Todos compreendem que acontece assim: se quem tem não dá a quem não tem, antes que se inicie a guerra entre eles é preferível que alguém tire de quem tem para dar a quem não tem. Mas quem será esse alguém? 

Não há resposta se não se parte do fato de que os homens são distintos entre si: mais ou menos fortes, mais ou menos jovens, mais ou menos inteligentes, mais ou menos belos, mais ou menos bons, e nunca é idêntica a medida do "mais" ou do "menos". Inclusive nas sociedades primitivas, há indivíduos privilegiados, que exercem naturalmente sobre os outros, que a função de chefe ou de cabeça. Menemio Agripa, com o famoso apólogo, se aproximou da verdade mais do que creram ele mesmo e os demais. A sociedade tem uma cabeça  pela mesma razão por que a tem o corpo humano. Não é que a sociedade se assemelhe a um organismo vivo: ela é um organismo vivo. A sociologia é um capítulo da biologia. A cabeça, entre outras coisas, vê e ouve, enxerga e escuta. É singular o parentesco filosófico entre caput y capio, de que vem nosso capire, 'captar' ou 'compreender'. O chefe capta ou compreende mais que os demais, ou melhor ainda, capta ou compreende pelos demais.

O que a cabeça ou o chefe compreende é, simplesmente, aquilo que deve eliminar a guerra. Sua compreensão é lenta e cansativa. Geralmente, sente a necessidade de eliminar a guerra para fazer a guerra: jogo de palavras que se esclarece precisando: eliminar a guerra entre os seus, para fazer a guerra contra os demais. A história, incluindo a pré-história, demonstra que a guerra vai, progressivamente, deslocando-se dos indivíduos aos povos. Os romanos, por exemplo, para guerrear contra os demais povos e conquistar pouco a pouco, não só na Itália, mas boa parte do mundo então conhecido, teria necessidade de ordem interna. "Concordia minimae res crescunt, discordia maximae dilabintur" ["Pela concórdia, as coisas mínimas crescem; pela discórdia, até as maiores sucumbem"], dizia sua sabedoria. Se não tivessem permanecido concordes e unidos, não teriam podido impor-se aos demais povos.

No entanto, para que os romanos se impusessem aos outros povos, era necessário que alguém se impusesse aos romanos. Posto que estes não tinham em si uma dose de moralidade suficiente para abster-se espontaneamente da guerra entre si mesmos, era necessária uma cabeça para que fizessem por força o que não sabiam fazer por amor. A imposição, naturalmente, não pode ser mais que o efeito de um mandato. O chefe é aquele que manda (iubet). Precisamente em sua denominação (ius), o direito se vincula à ordem. E o que é uma ordem?

Antes de tudo, um preceito: é uma indicação de uma conduta a ser seguida: "faça isto", "não faça aquilo". Trata-se de uma indicação que, por si só, pode persuadir quem a recebe; no caso, quem a faz, é um verdadeiro chefe e, como tal, está provido de autoridade. Porém, quando se trata de seus interesses, e sobre tudo dos referentes ao patrimônio, é difícil que um homem se preste ao sacrifício de não procurar sua própria satisfação ou de pelo menos, limitá-la.

Por isso, ambora pareça suficiente, nem sempre o preceito basta; inclusive, em várias circunstâncias, não bastaria se não estivesse reforçado por uma ameaça à qual se dá o nome da sanção. Dessa maneira, passa a ser uma ordem: se você fizer o que eu lhe poíbo que faça, será castigado; se você não der o que lhe é ordenado que dê, perderá o que tem. A sanção introduz a força na noção de direito, porque, naturalmente, enquanto não se obedece ao preceito, necessita-se da força para ser posta em ação. Esse elemento da força constitui a verdadeira diferença entre o direito e a moral, daí a naturalidade do direito, em comparação com a sobrenaturalidade da moral. Por essa razão, o direito nasce sob o signo da contradição: serve-se da guerra para combater a guerra: para que o bandido não ataque o transeunte, o policial ataca o bandido.

Contudo, se o policial distingue o direito da moral, o uniforme distingue o guarda do bandido, precisamente porque o bandido faz apenas economia, ao passo que o policial  faz direito, porquanto este ostenta o signo da dignidade que tem. Isso quer dizer que, se o meio de que ambos se servem é sempre a força, o propósito ao qual se dirigem é diverso: o bandido combate para si, e o policial pelos demais. O direito é, pois uma combinação de força e de justiça, motivo pelo qual exibe aquele emblema em que a espada está ao lado da balança.".

Em Flávio Fernando de Souza (Ensaios entre Filosofia e Educação): "O que torna a escola imprescindível numa sociedade é a necessidade de uma ponte intencional e sistemática entre o passado e o futuro. Ela é um ponto de passagem de uma geração para a outra, a partir da transmissão de um patrimônio simbólico comum, de uma tradição, o que dá aos professores a legitimação do que fazem. [...] A escola, enquanto construção histórica e social, constitui um sistema aberto que interage com seu entorno a todo tempo, conformando-se a diversas circunstâncias e contextos temporais, geográficos e culturais."

Em Juliana Fischer de Almeida (Ensaios entre Filosofia e Educação - Cidadania e Comunidade em Rousseau: A Educação no Auxílio à Formação da Consciência Cívica):" As relações entre os cidadãos são traduzidas pela mútua cooperação e pela participação deles na comunidade. [...] A autentica República é aquela em que a autoridade soberana reside na vontade geral, sendo uma condição formal e não material da ordem social, pois o conteúdo de cada sistema legislativo dependerá dos mais variados tipos de sociedade. É a própria condição formal da vontade geral que delimitará as instituições positivas, ou seja, constituídas para serem legitimas, preservando a essência humana, qual seja: a liberdade. [...] Quando se obedece à vontade geral, a dependência pessoal inexiste, não havendo necessidade de dominar o outro. O cidadão que obedece à lei não depende da vontade diferente da sua, pois pertence a um corpo do qual ele é membro e não tem a intenção deliberada de prejudicar a si mesmo. É nesses moldes que o homem é livre. [...] O indivíduo, para se tornar um cidadão da República, aos moldes do pensamento de Rousseau, deve amar a pátria e não servir aos interesses do poder político que não levam em consideração a natureza humana; deve tornar sua felicidade e liberdade indissociáveis do bem geral, fazendo com que a consciência de uma virtude cívica forme a plenitude do seu ser, não como ser humano, mas como cidadão de uma pátria. [...] Para se construir uma República, segundo pensamento rousseauniano, não bastam os preceitos políticos, mas os critérios antropológicos e pedagógicos devem estar presentes.".

Em Tiago Eurico de Lacerda (Ensaios entre Filosofia e Educação): "Segundo Almeida "a sublimação das pulsões de destruição confunde-se, ela também, com a arte enquanto jogo, ilusão, mentira, logro, enganao ou ficção necessária". [...] Nietzsche pensa agora a arte na sua possibilidade de afirmação (e celebração jubilosa) do homano de forma integral. Ou seja, a arte pode libertar o homem da seriedade e do peso diante da vida e por isso o filósofo menciona a necessidade de uma "arte dançante" (GC, 107), para o homem possa, por si mesmo, pairar e dançar acima da moral que quer determinar de forma fixa aquilo que é o homem e a vida, afastando-o de sua própria vivência e experimentação de si mesmo. A ideia se encontra presenta no aforismo 278, no qual Nietzsche fará uma analogia da dança, falando da necessidade de que a "alta cultura" ou a "grande cultura" precisa do esforço e da disciplina (traduzidos pela ideia de "força e flexibilidade") da dança: tal como a cultura precisa do rigor da ciência e das ilusões "da poesia, da religião e da metafísica" (HH, 278). Assim o mesmo movimento que leva o homem à destruição e desconhecimento de si mesmo pode encontrar seu gozo nas pulsões de arte para criar e (re) interpretar a vida a todo instante.".

Em Eduardo Couture (Os Mandamentos do Advogado): "Como arte, tem suas regras e estas, como todas a regras da arte, não são absolutas, mas, ao contrário, ficam confiadas à inesgotável aptidão criadora do homem. O advogado foi feito para o direito; não o direito para o advogado. A arte de manipular as leis sustenta-se, acima de tudo, na excelsa dignidade da matéria confiada às mãos do artista. [...] Como ética, a advocacia é um exercício constante da virtude. A tentação passa sete vezes por dia pelo advogado. Este pode fazer de sua missão, como já foi dito, a mais nobre de todas as profissões, ou o mais vil de todos os ofícios." "Procura considerar a advocacia de tal maneira que, no dia em que teu filho te peça conselho sobre seu futuro, consideres uma honra para ti aconselhá-lo que se torne advogado.".