"Alteração da LINDB revoga parcialmente Lei de Improbidade Administrativa. (Luciano Ferraz é advogado e professor associado de Direito Administrativo na UFMG).
Revista Consultor Jurídico, 10 de maio de 2018, 8h00
A
Lei 13.655/18 que recentemente introduziu disposições sobre segurança
jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público
(artigos 20 a 30) no corpo da Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro – LINDB (Decreto-Lei 4.657/42), causou sentimentos de
diversas espécies nos diferentes extratos profissionais que se incubem
de laborar diuturnamente com a Administração Pública Brasileira.
Alguns
integrantes dos órgãos de controle, especialmente membros dos Tribunais
de Contas e do Ministério Público, posicionaram-se radicalmente contra a
sua promulgação, exigindo que o presidente da República opusesse veto
integral, sem considerar que se tratava de um projeto tramitado e
aprovado democraticamente pelo órgão constitucionalmente competente
(Congresso Nacional). Não deixaram de atribuir ao texto, nesse embate, é
claro, o signo do retrocesso e da “impunidade”, uma espécie de “freio
de mão” ao exercício discricionário e impiedoso da prerrogativa de
acusar.
O projeto de lei que ensejou a nova lei foi apresentado
pelo senador Antônio Anastasia, professor de Direito Administrativo
licenciado na UFMG.[1]
Contou com a participação dos professores Carlos Ari Sundlfeld,
Floriano de Azevedo Marques Neto e Flávio Unes Pereira, todos
experimentados juristas e conhecedores das agruras vividas pelos
administradores públicos bem intencionados neste país.
Com efeito,
o sentimento societário, panfletado em parte pela mídia (a voz das
ruas), de que todo administrador público é desonesto até prova em
contrário, tem provocado uma inexata compreensão da realidade da gestão
pública no país, rebaixando qualquer administrador público, mesmo o
eficiente e honesto, ao “grau de desinvestimento”.
Certamente, não
foram os processos contra gestores desonestos e venais — aqueles
indevidamente propagados como obstáculos à higidez da Lei 13.655/18 —,
que ensejaram a edição do diploma. Foram os processos perseguidores de
delitos de exegese e aqueles portadores de debates em torno de vertigens
de pequenas alturas. A lei é remédio contra a letargia decisória e o
temor de se decidir e ser processado... de se emitir parecer com
convicção e fundamento fático-jurídico e ser processado... de ser
contratado pela Administração Pública, com amparo na doutrina e na
jurisprudência do STF e orientado pelos órgãos de classe, e ser
processado... — a gestão pública no Brasil ficara [ficou]
fragilizada e até acuada, muitas vezes por conta de avaliações
apressadas e superficiais”.[2]
Nesse
sentido, como professor de Direito Administrativo, rendo minhas
homenagens à lei e anuncio a pretensão de escrever nesta coluna uma
série de textos que buscarão evidenciar sua serventia e fidedignidade
aos bons propósitos do Direito Administrativo e da Administração Pública
no Brasil.
O primeiro texto trata da revogação parcial procedida
pela nova lei (artigo 28) do artigo 10, caput da Lei de Improbidade
Administrativa, com reflexo inexorável para a interpretação de todos os
incisos desse preceito. Trata-se nada mais nada menos do que uma
reorientação, pela via legislativa, da jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça, que se havia firmado em torno da necessidade da
comprovação do dolo ou culpa grave[3], para fins de capitulação das condutas no artigo 10 da Lei 8.429/92.[4]
Com
efeito, a Corte Especial do STJ já havia se pronunciado no sentido de
que a culpa configuradora da improbidade administrativa deveria ser a
“culpa grave”. Nesse sentido,
“Conforme
pacífico entendimento jurisprudencial desta Corte Superior, improbidade é
ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta
do agente, sendo "indispensável para a caracterização de improbidade
que a conduta do agente seja dolosa para a tipificação das condutas
descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/1992, ou, pelo menos, eivada
de culpa grave nas do artigo 10". (AIA 30/AM, Rel. Ministro Teori Albino
Zavascki, Corte Especial, DJe 28/09/2011).
Entretanto, a
jurisprudência das turmas do STJ, especialmente da 2ª Turma, tem se
afastado dessa orientação e começou a se firmar no sentido de que a
configuração da improbidade administrativa se basta na comprovação da
culpa (simples). Veja-se, por todos:
O
entendimento do STJ é no sentido de que, para que seja reconhecida a
tipificação da conduta do réu como incurso nas previsões da Lei de
Improbidade Administrativa, é necessária a demonstração do elemento
subjetivo, consubstanciado pelo dolo para os tipos previstos nos artigos
9º e 11 e, ao menos, pela culpa, nas hipóteses do artigo 10. (AgRg no
AREsp 654.406/SE, Rel. Ministro Herman Benjamim, Segunda Turma, julgado
em 17/11/2015, DJe 04/02/2016.)[5]
Estabeleceu
o artigo 28 da Lei 13.655/18 que “o agente público responderá
pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou
erro grosseiro.” A nova disposição da LINDB afeta diretamente a regra do
artigo 10 da Lei 8.429/92, à medida em que transforma em pressuposto da
responsabilização do agente público (que decide ou emite opinião
técnica) exclusivamente o dolo e o erro grosseiro, afastando, pois, a
ideia de responsabilização por culpa stricto sensu.
A
antinomia entre o artigo 10 da Lei 8.429/92 e a Lei 13.655/18 é
resolvida pelo critério da incompatibilidade, mercê da aplicação da
regra do artigo 2º, §1º da LINDB: “a lei posterior revoga a anterior
quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”.
A
norma do artigo 28 da Lei 13.655/18, com relação aos casos por ela
especificados, ao estabelecer um âmbito de responsabilização
administrativa mais restrito do que a lei anterior (artigo 10 da Lei
8.429/92), é com ela incompatível, determinando-lhe, pois, a insubsistência parcial.[6]
Destarte,
registrando meu entendimento particular de que a improbidade
administrativa sempre pressupõe dolo (ver a respeito a nota de rodapé 3
deste texto), a tendência que vinha se firmando na jurisprudência do STJ
no sentido da possibilidade da condenação por improbidade
administrativa com lastro na simples culpa para os casos do artigo 10 da
Lei 8.429/92, com todas as vênias, caiu por terra.
[1]
Após a iniciativa no âmbito do Poder Legislativo, consoante anota
Carlos Ari Sundfled, “o apoio do Executivo foi inicialmente obtido no
governo Dilma, por iniciativa do então Ministro da Fazenda, Joaquim
Levy, ao ensejo dos trabalhos de comissão de juristas criada em agosto
de 2015 para formular propostas para a melhoria do ambiente de negócios
no Brasil. A comissão contribuiu também com novas ideias, uma das quais
seria acolhida pela relatora no Senado, Simone Tebet, e viria a
constituir o art. 30 da LINDB, sobre o caráter vinculante das súmulas
administrativas e de outros instrumentos jurídicos semelhantes, para
estabilizar os entendimentos da administração pública. Depois, já
durante o governo Temer, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e
Social da Presidência, em sua 46ª reunião plenária, em 7 de março de
2017, defendeu esse fortalecimento da legislação sobre segurança
jurídica. Assim, o projeto acabou sendo aprovado no Senado em abril e na
Câmara agora em outubro (SUNDFELD, Carlos Ari. Uma lei geral inovadora
para o Direito Público”. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/controle-publico/uma-lei-geral-inovadora-para-o-direito-publico-01112017. Acesso em 09.05.2018.
[2] SUNDFELD, Carlos Ari. Um alei geral inovadora para o Direito Público. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/controle-publico/uma-lei-geral-inovadora-para-o-direito-publico-01112017. Acesso em 09.05.2018.
[3]
Registro meu particular entendimento de que o ato de improbidade é e
sempre foi um ato doloso, apresentando-se como parcialmente
inconstitucional o art. 10 da Lei 8.429/92, quando admite a
responsabilização por culpa (mesmo que grave). A ideia de improbidade
administrativa, mercê da necessidade de lesão simultânea ao Direito e à
Moral, não se coaduna com a mera ideia de culpa, que pressupõe a
licitude dos fins da conduta almejada pelo agente. A distinção entre
dolo e culpa nos é apresentada pela doutrina do Direito Penal. “No
sistema originário do finalismo, a culpa stricto sensu passou a integrar
–tal como o dolo – o tipo. Ambos foram retirados da culpabilidade e
levados ao tipo. [...] Há uma base material única (ação voluntária) que
serve aos distintos conceitos (dolo e culpa). O que os diferencia é a
finalidade que se persegue: no crime doloso o fim a alcançar é
criminoso, ou seja, a conduta orienta-se segundo um fim ilícito. No
culposo, o fim a alcançar não é criminoso, ou seja, a conduta não se
orienta segundo um fim em si ilícito”. (CAMPOS PIRES, Ariosvaldo de.
Compêndio de Direito Penal. Parte Geral. Vol. I, Rio de Janeiro:
Forense, 2005. p. 147).
[4]
É desnecessário reescrever que a jurisprudência punitivista do STJ, em
matéria de improbidade administrativa, criou uma ficção jurídica de
dano, o dano in re ipsa, em ordem ampliar o espectro de condenação por
culpa, com base no artigo 10 da Lei 8.429/92. Sobre o tema, ver aqui
nesta coluna o artigo de minha autoria “Dano in re ipsa cria, sem lei,
novo tipo de improbidade administrativa” https://www.conjur.com.br/2017-mai-04/interesse-publico-dano-in-re-ipsa-cria-tipo-improbidade-administrativa.
[5] No mesmo sentido: REsp 1.637.839/MT, rel. min. Herman Benjamin, julgado em 13/12/2016, DJe 19/12/2016.
[6]
A relação entre o art. 10, caput da Lei de Improbidade Administrativa e
o art. 28 da Lei 13.655/18 é bastante semelhante à relação entre o art.
114 da Lei 8.112/90 e do art. 54 da Lei 9784/99. Embora as leis
posteriores tenham um campo de abrangência mais elástico, o conteúdo
deontológico delas torna as leis anteriores incompatíveis, pelo menos
parcialmente, com as leis novas. Sobre este tema da inexistência de
conflito entre o art. 114 da Lei 8.112/90 com o art. 54 da Lei 9.784/99,
é obrigatória a leitura de ESTEVES LIMA, Arnaldo. O Processo
Administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, Belo
Horizonte: Del Rey. 2014. p. 111-136.".
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