"Posso dizer, como Nélida Piñon, que sou um
brasileiro recente. Nasci anfíbio. Tenho duas línguas e dois corações. Metade
adesão. Metade abandono. Trégua feroz. E surda guerra. Um solo a duas vozes. O
violino e o contrabaixo. E já não sei qual dessas vozes melhor me
pronuncia. Um verso de Luzi e outro de Drummond. O Maracatu de Mignone e
os crisântemos de Puccini.
Duas
pátrias e duas línguas.
A primeira veio dos olhos castanho-claros de minha
mãe, onde sorvi a língua toscana: a melodia sinuosa das colinas que impedem que
os de Lucca vejam os de Pisa, como disse Dante; o aroma puríssimo do azeite das
terras de Massarosa e o céu em chamas, à beira do crepúsculo; verbos e palavras
antigas, como acquaio, augello, polla, que se entrelaçam com a vegetação do
lago de Massaciuccoli; a altura das vogais, como a da torre da igreja de Pieve
a Elici, onde me perco num sonho de ascensão. Minha memória absorve passagens
da Divina comédia, como a de Paolo e Francesca:
“Quando
leggemmo il disïato riso
esser basciato da cotanto amante,
questi, che mai da me non fia diviso,
esser basciato da cotanto amante,
questi, che mai da me non fia diviso,
la bocca
mi basciò tutto tremante.
Galeotto fu 'l libro e chi lo scrisse:
quel giorno più non vi leggemmo avante.
Galeotto fu 'l libro e chi lo scrisse:
quel giorno più non vi leggemmo avante.
Mentre
che l'uno spirto questo disse,
l'altro piangëa; sì che di pietade
io venni men così com' io morisse.
E caddi come corpo morto cade”.
l'altro piangëa; sì che di pietade
io venni men così com' io morisse.
E caddi come corpo morto cade”.
A outra língua é a portuguesa, a que aprendi a amar
duas vezes, como brasileiro e filho de italianos. Língua de matriz antiga, de
ínvios mares e sertões bravios, do Esmeraldo de situ orbis; subúrbios da
Leopoldina e praias antigas, como Icaraí, Adão e Eva, Jurujuba; língua de
nações indígenas e africanas; língua de Vieira, contra as armas de Holanda; do
magma de Guimarães Rosa; das tempestades que varrem a obra de Clarice; do
abismo em que flutua o delírio de Brás Cubas. Todos repercutem em meu destino
de escritor. Como esquecer, afinal, a insuperável lição de Tétis?:
“Vês aqui
a grande Máquina do Mundo,
etérea e elemental, que fabricada
assi foi do Saber, alto e profundo,
que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
globo e sua superfície tão limada,
Deus: mas o que é Deus ninguém o entende,
que a tanto o engenho humano não se estende”.
etérea e elemental, que fabricada
assi foi do Saber, alto e profundo,
que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
globo e sua superfície tão limada,
Deus: mas o que é Deus ninguém o entende,
que a tanto o engenho humano não se estende”.
São estes os fantasmas que habitam minha nau peregrina. Vivo um atlântico de extremos. Naufrágio e calmaria. Destino e perdição. Qualquer coisa de intermédio que vai de mim para o outro. Da máquina do mundo ao amor de Francesca. Donde essa paixão visceral por Dante e Camões. Sou como um duplo cercado de espelhos. Imagem perdida na Ilha dos Amores ou nas praias do Purgatório. Vasco e Virgílio. Afinal, amor meus, pondus meum. Meu amor é meu peso, como lemos nas Confissões. E quanto a mim, não tenho outra saída senão a de multiplicar por dois minha densidade rarefeita.
A cadeira quinze resgata o quociente parcial da
soma desses duplos. O patrono é Gonçalves Dias e o fundador, Olavo Bilac. Quase
um compêndio de dois séculos. Seguem-se Amadeu Amaral, Guilherme de Almeida,
Odylo Costa Filho, dom Marcos Barbosa e o padre Fernando Bastos de Ávila.
Modifico o verso de Dante, no Limbo, e, dessa cadeira, posso dizer, com
modéstia e galhardia, que “io son settimo tra cotanto senno”.
Chego a Gonçalves Dias com oito anos de idade. O
sortilégio de sua redondilha foi a escola onde matriculei meus versos da
infância. Da “Loa da Princeza Sancta” sublinho essa passagem:
“Quando o Rey tinha-los juntos
Começava a discursar:
‘Os
iffantes já são homens,
Vou-me ás terras d’alem-mar
Armal-os hy cavalleiros;
Deos senhor m’ha de ajudar’”.
Vou-me ás terras d’alem-mar
Armal-os hy cavalleiros;
Deos senhor m’ha de ajudar’”.
Decidi-me pelas terras de além-mar. Como um vassalo
da língua portuguesa. Já, com Olavo Bilac, guardo a poesia do espaço e das
estrelas, com que pretendo encerrar o discurso desta noite. Se com Amadeu
Amaral partilho o amor pelo poeta de Florença, com Guilherme de Almeida abraço
a coincidência dos opostos, em que corre a poesia, varada de rigor e paixão.
De Odylo Costa Filho sinto o acento das coisas que deixaram de ser, com
algum lirismo bandeiriano. E de dom Marcos Barbosa evoco as crônicas matutinas
da rádio Jornal do Brasil e a refinada tradução dos Salmos, que me faz pensar
em Merton e Claudel. Cada qual mereceria longas digressões, pontuadas
pelo mérito e pela biodiversidade de suas respectivas aventuras intelectuais.
Decido-me, no entanto, e em consonância com o regimento da Casa, a tecer o
elogio do padre Ávila, não sem antes referir as razões que dele me aproximam.
Desde menino eu me senti convocado pela distância,
medida em quilohertz ou anos-luz. Com o rádio de ondas curtas, eu pescava
no oceano da estática, as estações dos quatro continentes. E o pendor para as
línguas se fortificou naquela babel eletrônica. Com o telescópio, tive a emoção
de contemplar as luas de Júpiter e os anéis de Saturno. Tudo era motivo de
júbilo e de espanto. Mas foi com a Divina comédia que a paixão da
distância, ou a nostalgia do mais, adquiriu uma terra definitiva,
essencialmente literária. Terceira pátria. Ou margem. A filosofia da Idade
Média marcou o início da demanda rumo ao Todo Diferente. Eu mergulhava no
oceano da Suma teológica, nos tratados de Bernardo e Boaventura,
Anselmo e Agostinho. A teologia era condição necessária, embora não
suficiente, para adentrar a selva claro-escura da Comédia.
Aos poucos, e na faixa dos dezesseis anos, comecei
a migrar para os contrafortes da teologia moderna, escalados nas férias de
verão, em planos diversos e alturas: a teologia da morte de Deus, a teologia da
cruz, da libertação e da esperança. Hoje me volto aos estudos da mística
comparada e ao diálogo interreligioso, percurso que me levou ao amigo Faustino
Teixeira, poeta do diálogo, como também a Leonardo Boff, Arturo Paoli e ao
caríssimo Frei Betto. Não posso esquecer do jesuíta Paolo dall’Oglio, do
mosteiro de Deir Mar Musa al-Habashi, no deserto da Síria, de que guardo a
imagem tremenda do Alcorão: Deus está mais próximo do que a veia jugular (
وَنَحْنُ أَقْرَبُ إِلَيْهِ مِنْ حَبْلِ الْوَرِيدِ).
Nasci na tradição católica e mediterrânea,
dos santos e dos místicos, no encontro da cultura erudita com as formas
populares da devoção, fascinado pelo mistério do Rosto. Vivo com adesão
as páginas de Emmanuel Lévinas. E sob a influência de Massignon, visitei o
morro do Horto, com os romeiros do padre Cícero, a mesquita de al-Ualid, em
Damasco, o mosteiro de Sfânta Ana, em Orşova, as sinagogas de Jerusalém,
cidade três vezes santa, além de Shirâz e Isfahân, o santuário de
Aparecida e a catedral de São Pedro. Nessas estações, sondo o
tremendum et fascinans dos filhos de Noé ou de Abraão. Sou tomado pelo
canto 33 do Paraíso de Dante, quando o amor se transforma em luz intelectual e
avança Universo adentro. Sondo a luz tabórica da mística ortodoxa (a таборский
свет) e o sabor do Cântico de Salomão, do mel et lac sub lingua tua, na
sensação das coisas primordiais. Nesse percurso, busquei a poesia do diálogo, a
terra sacra da Diferença.
Precisei daqueles estudos para me acercar do
Inferno, Purgatório e Paraíso. Ao fim e ao cabo, fui tomado pela poesia do
Empíreo, onde se plasma o desafio de pronunciar o inefável e de traduzir o que
deixa a esfera do silêncio. Procuro a dimensão da lírica na interface com a
mística, para atingir a segunda navegação platônica, a poesia da poesia, para
correr melhores águas, sob o signo do inefável, da palavra áspera e sutil,
segundo os referentes da treva superluminosa, de Dionísio Areopagita.
Importa sublinhar a densidade do diálogo, mesmo que
se busque uma mística seca, desprovida de Deus ou de transcendência
pessoal. Em todo o caso, o princípio mínimo da ética da leitura consiste
na suspensão da descrença (suspension of disbelief), de modo que, como leitor,
creio no céu descrito por Ptolomeu, na função dos motores celestes e no motivo
das manchas da Lua. A literatura é o ágon do saber ecumênico, que me leva à
cova de Montesinos, com dom Quixote, ao mundo da Lua, com o paladino Astolfo,
ou aos sertões, onde refulge o rosto luminoso de Diadorim.
A
literatura e o rosto!
Minha suspensão da descrença aumentou após a grande
tempestade de areia, que me envolveu em 2009 na Arábia Saudita. Uma nuvem de
trezentos metros de altura, com velocidade aproximada de trinta nós. Meus olhos
se tornaram outros. Algo excessivos, talvez. Marcados pela urgência de uma nova
educação dos sentidos, como queria Dante na viagem para Beatriz.
Chego ao padre Ávila, portanto, levado pelas mãos
dessas afinidades eletivas. Sem descurar da cultura laica, absorvo essas
questões de fundo sub specie intellectualis.
Valho-me das memórias de Fernando, A alma de um
padre, de leve sotaque agostiniano, ao indagar a voragem da memória e
sua intensa prospecção:
“Sinto-me descer como que por um poço vazio que, de
repente, se abre para uma grande nave subterrânea [...] Esses espaços
interiores são como galerias noturnas iluminadas apenas pelo meu próprio
olhar.”
E, contudo, o livro não se mostra varado por uma
áspera beleza, como Papini, dramático e noturno, como no admirável O nariz do
morto, de Antonio Carlos Villaça, ou ainda harmonioso e ensolarado, como
em Minha formação, de Joaquim Nabuco. É, antes de tudo, um livro
apolíneo, com ligeiras encrespações, que se dissolvem, tão logo se
desvelam, na superfície do fluxo narrativo. Um livro quase sereno: a história
de uma alma, o prefácio de uma segunda vida, interminável, perfeita e
simultânea, conforme a expressão de Boécio.
Mas voltemos à Terra, para a história
de uma alma, sim, mas dentro de um corpo, o software e o hardware, como
propôs Umberto Eco, não sem uma ponta de ironia, ao amigo e cardeal
Martini.
Filho de José Bastos de Ávila e de Cinyra Muniz
Freire, Fernando nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 17 de março de 1918,
numa Copacabana, hoje, impensável:
“A rua em que nasci era tranquila, com casas
esparsas que tinham jardins e quintais com árvores de abio, cambucá, abricó,
sapoti. Grandes terrenos baldios separavam as residências e nas minhas
incursões nunca ia além do traçado da rua Barata Ribeiro, onde começava o
deserto residencial até a rua Tonelero.”
Uma percepção da natureza avulta em seu diapasão
lírico, que o acompanhará, sem interrupção, até os últimos dias de vida, quando
completou a viagem de volta para a última Roma, em seis de novembro de
2010. Noventa e dois anos de vida – setenta e cinco dos quais dedicados
ao sacerdócio, sem dispensar os embates da História com a Metafísica,
all’eterno dal tempo, na dialética de Dante.
Fernando completou o antigo primário na escola
Sarmiento, de cujo passado restaram flashes de sonhos e folguedos infantis. O
colégio Santo Inácio veio depois, trazendo-lhe os germens impressentidos da
vocação.
Em 1930, Fernando ingressou na Escola Apostólica de
Nova Friburgo, partilhando a mesma emoção de Sérgio, às
portas de O ateneu:
“Na tarde daquele dia, minha mãe me levou à estação
de Mauá. Quando da plataforma do trem, eu a vi sumindo, desatei a chorar. Na
inocência de meus 11 anos, talvez eu pressentisse que um novo destino
começava para mim”.
Segue-se um período de formação, em que permanece
afastado da família e sob árdua disciplina, livre, contudo, de américos e
aristarcos da obra de Raul Pompéia, que lhe toldassem o delicado
horizonte em que havia de crescer.
O noviciado veio cinco anos depois, ainda sob o
guarda-chuva da ratio studiorum, dos últimos raios de uma
escolástica crepuscular, ávida de coligir etiquetas e aplicá-las ao coração de
universais e transcendentais, fora dos rumores do mundo, alcançado melhor a
priori, no manejo de uma lógica sem nervos, em território de escombros, por
onde vagam esquálidos fantasmas.
Mais que censurar uma razão desenganada (antes do
socorro de Garrigou-Lagrange ou de Jolivet), tratava-se de levar a cabo
uma ansiada quebra de paradigma, que se fazia urgente para alcançar, de
modo frontal, os desafios de um mundo em conflito e tensões ideológicas. A
philosophia perennis, como queriam Farges e Barbedette, apostilando o alto
pensamento de São Tomás, dispunha da mesma consistência de uma bolha de sabão,
não passando de um raso anteparo, que pretendia isolar, ou antes, proteger o
sujeito do contágio dos modernos, tal como vemos em Mundos mortos, de Octavio de
Faria, na figura complexa e, até certo ponto, fascinante, do padre Luís,
afogado, muito embora, nas águas mornas de um labirinto pietista.
Fernando recebe sólida formação clássica, de que
muito se vale na parte mais espessa de sua obra. Soube reunir dois mundos que
se pensavam irredutíveis. E, de ambos auferiu visadas abertas. Não só não
se fechou para a modernidade, como decidiu arrostar as demandas sociais e
filosóficas da era dos extremos, para tomar a fórmula de Hobsbawn.
Fernando viajou em 1945 para Roma, cidade declarada
aberta, como no filme de Rossellini, e por onde passavam, entre as ruínas
morais e políticas do Pós-Guerra, não apenas Anna Magnani e Aldo Fabrizi, mas,
sobretudo, para o nosso homenageado, Giorgio La Pira e Giuseppe Dossetti. No tempo
em que o futuro acenava com uma longa duração, Fernando terminou o mestrado em
Filosofia e Teologia na cinco vezes centenária Universidade Gregoriana, di
quella Roma onde Cristo è romano, sobre a qual, aliás, escreveu Affonso Arinos
páginas gloriosas.
Sentia por Roma uma atração plural, como humanista
e homem da Igreja, a Roma de Gibbon e de von Pastor, a cidade de
César e do Papa, as antiqualhas do fórum e o altar de Bernini: “Uma das
coisas que mais me deliciava em Roma era subir até a Igreja de Santa Maria in
Ara Coeli”. E completa: “deslumbrava-me a Roma clássica [...] uma verdadeira
emoção em ver com meus olhos o cenário onde ocorreram os grandes lances da
história.”
Vencido o abismo da vocação, foi ordenado sacerdote
em 1948, quando sopravam os ventos da teologia de Chenu, Congar, Rahner e
de Lubac, arautos do Concílio Vaticano II, que a Igreja não conseguiu de
todo absorver, criando, em muitas partes, uma certa eclesiologia do impasse.
Como sacerdote, Fernando defendeu sua tese de
doutorado, L’immigaration au Brésil, junto à Faculdade de Ciências Políticas e
Sociais da Universidade de Lovaina, de cujo percurso textual emerge uma vasta
saudade do presente, bem como uma premência irremovível dos problemas de nosso
país. Da riqueza dos estudos na Bélgica, aprofundados na França, responde
a Introdução à sociologia, compêndio que formou toda uma geração de cientistas
nos anos sessenta e setenta. Aflorava no espírito de Fernando o interesse
crescente pelo social, na ótica dos mais pobres, dos anawim, dos que vagam nos
livros do Antigo Testamento e se multiplicam na periferia do capitalismo.
A publicação do Manifesto Solidarista respondia
pelos anseios de mudança, ao mesmo tempo em que pensava uma alternativa
aos projetos então considerados radicais. De base estritamente reformista, o
programa tomou distância do conflito entre Capital e Trabalho, ou das teses de
livre mercado, onde predomina a invisible hand, colocando-se o drama da
desigualdade social entre parênteses, segundo as tendências conservadoras
daquele período.
O manifesto de Fernando constitui uma declaração de
princípios, que, se hoje pode soar tímida, não esconde a nobreza de propósitos,
na defesa das liberdades individuais, em conjunção com a doutrina social
da Igreja, que começava a ocupar boa parte de sua redação. Assim,
ao redigir Antes de Marx: as raízes do humanismo cristão, Fernando cobrava do
autor de Das Kapital uma suposta dívida contraída com os
pensadores católicos, que o precederam:
“A crítica do capitalismo como sistema global já se
consumara, antes da publicação do Manifesto do Partido Comunista, em 1848.
Todos os pontos vulneráveis do modelo tinham sido denunciados com clareza
inequívoca, pelo catolicismo social. Muitos elementos integrados por Marx em
sua síntese, como dados originais, de fato ele os encontrou elaborados numa
corrente de pensamento que inundara o espaço cultural europeu. Antes de Marx,
pensadores cristãos já conheciam o mecanismo da plus-valia e tinham descoberto,
no processo espoliador do capitalismo, a causa secreta da questão social.”
Mesmo que bem comprovadas tais aproximações,
nenhuma delas poderá embargar a energia e a imaginação dialética de Marx,
eliminando-lhe a espessura filosófica e a densidade, que faltou, com
efeito, aos que o teriam precedido, no plano rigoroso de uma
elaboração sistêmica, operando apenas com uma semântica de conceito nômades e
dispersos. E, no entanto, o estudo se revela singular, por trazer ao debate
como que um grande arquipélago, senão de todo esquecido, ao menos raramente
visitado.
Como homem do diálogo, Fernando convocou a
sociologia para examinar as cordas vocais do sujeito teológico. E tomou
distância, tanto da perspectiva de Mannheim (do Standortsgebundenheit des
Denkers), quanto do marxismo mecânico, segundo o qual a literatura não passa de
falsa consciência, e a fortiori, a teologia, não passando de uma desprezível
monstruosidade. O livro Fé cristã e compromisso social, escrito em parceria com
Pierre Bigo, releva os condicionantes da produção teológica:
“Ainda que a teologia seja uma só, existem modos
diversos de realizar a tarefa teológica. A razão pela qual se constrói a
teologia é sempre uma razão histórica. O teólogo não é um ser errático,
desarraigado da realidade. Ele participa dos condicionamentos de seu tempo
tanto materiais como espirituais. A elaboração teológica é sempre afetada pelo
lugar social que ocupa o teólogo dentro da Igreja e dentro da sociedade”.
De acordo com essa hermenêutica, aponta-se para a
relação delicada, entre o núcleo duro da teologia clássica e as nascentes
teologias, que desejo aqui chamar de regionais. Todas marcadas pela crítica do
sujeito, por uma demanda de novos olhares.
Parece-me oportuno abordar o sentimento teológico,
por onde se espraia a obra do padre Ávila, como parte de um diálogo radial ou
multidisciplinar, que lhe é caro. Sublinho, para tanto, um episódio de sua
infância, agora na casa de Botafogo, quando subia a pedreira, desde o
quintal: “até um alto patamar de onde descortinava quase todo o bairro.
Ali, do alto, eu me perdia a contemplar aquele horizonte de casas simples e
pequenos jardins [,] as tardes de São João com os deslumbrantes ocasos que
palpitavam com as dezenas de lanterninhas dos balões”.
Da precisão dessa reminiscência, desprende-se um
lirismo das alturas. Como se inaugurasse o colóquio da misteriosa transparência
do mundo, sem tirar daquele episódio a trama social que o circunscreve, nas
festas de São João, na pedreira dos fundos da casa, diante de cujos
detalhes atingimos uma chave de leitura que explica algo daquele menino,
sem esgotar, contudo, o sentimento de uma tarde antiga.
Feita a ressalva de ordem sociológica, urge
perscrutar a transparência em que flutuam aqueles balões peregrinos.
Subir e descer, como nas festas de São João, os
mistérios da teologia, eis o que fazem os estudiosos, quando optam pela forma
alta ou baixa da cristologia, partindo do Verbo ou de Jesus, sem perder de
vista o espaço de transição das coisas terrenas e celestes, anjos e
estrelas, tempo e eternidade, refletidos no espelho da
criação, no meio intradivino.
Para o teólogo Gisbert Greshake, não se deve perder
a ideia da criação no seio trinitário, a partir do Verbo, que responde pela
gênese do Universo. Seria preciso ultrapassar o recorte excessivamente
biográfico, uma bela, embora limitada, expressão jesuânica, que dilui seu
alcance universal.
Todo um cuidado para não raptar a profusa dimensão
do Logos em Jesus. Os pensadores cristãos da primeira década
deste século tendem a referendar a ideia de um Cristo cósmico,
mediante uma teologia dupla, alta e baixa, positiva e negativa, que
se comove com o rosto humano de Jesus no mistério trinitário, tal como disse
Dante: “or fu sì fatta la sembianza vostra!”.
Trata-se de uma forma de migração do imanente
para o transcendente, suprimindo-se o abismo feroz da exegese que os separou
durante séculos, com uma barreira de todo intransponível. A
categoria da transparência surge como forma de articular a passagem entre esses
dois reinos, à primeira vista irredutíveis. A transparência não é um ponto
cego, mas um olhar transitivo.
Diante de uma possível história da transparência,
Teilhard de Chardin mereceria um capítulo a parte, ao definir o problema nesses
termos:
“Como essas matérias translúcidas que ficam todas
iluminadas por um raio de luz que nelas se encerra, o mundo, para o
místico cristão, aparece banhado da luz interna que lhe intensifica o
relevo, a estrutura e as profundezas.”
Tese fundamental para ampliar a tensão atópica da
imanência com a transcendência, e, sobretudo, para combater a
negação do mundo, a morte dos sentidos, que, desde o Fédon, inauguram uma
tradição, dentro do Ocidente, tornada mais aguda com Plotino,
na desleitura do Parmênides.
A transparência é o centro da visão da natureza,
que inspira o padre Ávila, ideia que o leva a atingir as partes dispersas
do texto do mundo, feito de múltiplas camadas, segundo a tradicional exegese
cristã, como quando, mutatis mutandis, Dante se vale de um
repertório de formas análogas às da Terra, com as quais elabora o terreno
evanescente do Paraíso. A transparência é um dos maiores trunfos da
poesia dantesca, a que lhe facultou diluir o impacto de uma elevada taxa de
abstração, que pudesse anuviar a transparente beleza da última
Cantiga.
O padre Ávila insiste naquele modo diáfano de
interpretar o livro do mundo, para além de balões peregrinos e lanterninhas,
quando aborda, por exemplo, um variado acervo de temas ligados à
natureza, como no elogio da palmeira: “admirável sucesso arquitetônico da
natureza. De tronco tão longo e duro, como é que chegam, com tanta perfeição,
até a flecha no alto as mensagens enviadas pelas raízes obscuras?! Quando as
vejo alinhadas em fila dupla, elas me lembram a coluna perfeita de uma catedral
invisível a céu aberto”.
Eis um condensado de imagens, em que a palmeira
traduz a um só tempo sua condição vegetal, ao lado da vertente arquitetônica e
da figura teológica. A transparência desenha uma superfície metafórica, ao
longo da qual se projeta uma igreja invisível, marcada por dois planos
interagentes, das raízes obscuras à pura altitude, com a misteriosa
flecha ascensional, teilhardiana, a celebrar os mistérios da criação, como nas
sinfonias de Olivier Messiaen, nas vozes dos pássaros imateriais, que também
voam nos versos de Hopkins e Jorge de Lima.
A dimensão da natureza ameaçada levou estudiosos
das mais diversas áreas ao conceito da transparência. A ela se referem
essencialmente os teólogos da libertação, que entendem o planeta como
protagonista de um drama árduo, da Terra crucificada, como Cristo, no
calvário dos rios e dos mares poluídos, junto aos pobres de todos os
quadrantes, com os quais o planeta se identifica, dos que esperam e
forjam a libertação. Para esses teólogos, o pecado social ou estrutural levou a
sora nostra madre terra aos limites da sobrevivência, no rastro de
uma constelação pós-capitalista.
Em paralelo, Hans Küng esboça um projeto ambicioso,
de uma ética planetária, vivida nos extremos da modernidade, como forma de
criar um mundo em diálogo, sem elidir o acervo das diferenças que unem os
povos.
Desde os anos de 1990, o padre Ávila condena a
corrosão do caráter no mundo capitalista, quase que ao lado de Richard Senett,
chamando a atenção, no livro Meio ambiente, para o fato de que a Igreja sempre
defendera a natureza, a partir de um ethos difuso, longe das escolhas de um
museu natural ou de um quadro redutor de mera preservação. A Igreja, segundo
Fernando, “já alertara para a exaustão dos modelos quantitativos, já denunciara
o egoísmo dos grupos e nações, já fizera apelos patéticos em favor da
solidariedade”.
Um quadro terrível, é bem verdade, que não dilui o
domínio da espera, cuja dicção ressurge, mais uma vez, na coletânea de ensaios
Folhas de outono, onde Fernando sublinha três tendências que parecem
alvissareiras: a consolidação da dignidade da pessoa humana, a
compreensão de uma ampla interdependência dos povos e a convicção
do valor inestimável da ecologia. Seguindo de perto as intuições de Teilhard de
Chardin, ele sublinha as idéias gerais de O fenômeno humano. O homem não
é o fim da evolução, mas a flecha ascendente de um processo que se aterma no
ponto Omega, na supercentração de tudo em Deus, de acordo com a primeira
epístola de São Paulo aos Coríntios – εν πάσι πάντα θεόϛ, a
nostalgia do transparente, na comunhão do mundo com Deus.
A esfera da consciência é a razão primeira da
gênese humana. Para Teilhard, “hoje mesmo, para qualquer marciano capaz de
analisar tanto psíquica como fisicamente as radiações siderais, a primeira
característica de nosso planeta seria certamente o fato de este lhe aparecer
não com o azul dos seus mares ou com o verde de suas florestas – mas
fosforescente de Pensamento”.
Uma espécie de salto sem precedentes da natureza,
um mistério irrevogável. E prossegue:
“O que pode haver de mais revelador para a nossa
ciência moderna é saber que todo o precioso, todo o ativo, todo o progressivo
originariamente contidos no retalho cósmico de onde saiu o nosso mundo, se
acha, agora concentrado na ‘coroa’ de uma Noosfera.”
Essa grande poética da vida, com sua feição, ao
mesmo tempo severa e apaixonada, repousa no conceito de finalidade, que
tanto aborreceu Jacques Monod, em Le hasard et la nécessité,
igualmente revisto, por sua vez, e criticado mais tarde por Ilya
Prigogine, com A nova aliança. Mas é assunto que levaria longe demais.
Importa fixar a poesia da vida, em Teilhard e em nosso
homenageado.
Ainda em Folhas de outono, Fernando sublinha a
causa final da antropogênese, em Teilhard, destinada ao nascimento de Cristo “o
mais prodigioso evento na história do cosmos”, que prepara “a realização
progressiva do plano do amor infinito de um Deus, que é a própria
transcendência”.
O resumo teilhardiano do padre Ávila, acerca da
plenitude dos tempos, encerra-se com a expressão do amor, que move o sol e as
demais estrelas. E lembro com Olavo Bilac:
“Quem
poderá contar tantas estrelas?
Toda a abóbada está iluminada:
E o olhar se perde e cansa-se de vê-las.
Toda a abóbada está iluminada:
E o olhar se perde e cansa-se de vê-las.
Surgem
novas estrelas imprevistas...
Inda outras mais despontam...
Mas acima das últimas que avistas,
Há milhões e milhões que não se contam...”
Inda outras mais despontam...
Mas acima das últimas que avistas,
Há milhões e milhões que não se contam...”
Milhões de estrelas, que na cosmologia atual
revelam, no desvio para o vermelho, a velocidade de fuga das galáxias, que se
deslocam entre nuvens de aglomerados estelares, segundo o modelo atual do
Universo. Ou, mais propriamente, do Multiverso, com seu volume de infinitos,
pontes de Einstein-Rosen, viagens ao passado, de acordo com os
cálculos de Kurt Gödel, nas curvas de tempo fechado.
Um cosmos regido pela teoria das supercordas, que
promove o diálogo possível e desafiador entre a relatividade geral e a mecânica
quântica, como no livro do físico Brian Greene, The hidden reality. Hoje,
o maior fantasma da física não é Deus, mas uma certa desconfiança, em
níveis bem demarcados, da matemática.
Feito este comentário a latere, sabemos quanto é
preciso abraçar uma economia de pressupostos auto-sustentáveis para que o
planeta não se reduza, no terceiro milênio, ou bem antes disso, a um estranho
fragmento sideral, como no desenho “Futurama”, de Matt Groening, em que
os animais, que hoje conhecemos, convivem com espécies híbridas, mutantes e
extraterrenas, ao lado de uma bizarra população de robôs, movidos a
etanol.
Para pensar a vida no planeta, deve-se olhar para o
céu, como fez Bilac, na contemplação da Via Láctea que “como um pálio
aberto cintila.” E, ainda, nesta senda de esperança – na trama de uma
ecologia cósmica – sigo o altíssimo poema de Joaquim Cardozo, na
última viagem do trem subindo ao céu, em sua propensão para o infinito, sob a
chuva torrencial de zeros. A viagem segue
“no âmago
desse espaço, último e total
Sem métrica e metria, sem ordem física,
Sem orientação e sem origem;
-No centro dos centos, do anúncio de todos os possíveis,
Erguido em Glória, em Majestade, em Grandeza,
O acontecimento Branco
Divino?Eterno.”
Sem métrica e metria, sem ordem física,
Sem orientação e sem origem;
-No centro dos centos, do anúncio de todos os possíveis,
Erguido em Glória, em Majestade, em Grandeza,
O acontecimento Branco
Divino?Eterno.”
Na luz difusa da Terra e da poesia, o mistério
abraça o imponderável. E como Dante, frente à beleza de Beatriz, devemos
realizar uma espécie de salto, à beira de um precipício descontínuo
- saltar lo sacrato poema.
Para não encompridar a viagem, no trem de que vos
faço passageiros, informo que chegamos ao destino.
O modo generoso com que fui recebido nesta Casa me
emociona. Não pelos 34 dos 38 votos possíveis, ou pelo fato de entrar aos 47
anos. Mais que os números, que se apequenam diante “desta abóboda infinita”,
comove-me o afeto que venho recebendo. Tenho pouco a oferecer. Não passo de um
leitor voraz. Sempre curioso. E em tudo independente. Com saudades
de Machado e do futuro. Meu lema para o mundo dos livros e para as formas do
diálogo é o de Alfieri: io volli, e volli sempre, e fortissimamente
volli. Não me inclino a distinguir a idade ou geração de meus
interlocutores. O pensamento habita o tempo aion. Assim, sou
o acadêmico mais velho desta Casa, ao passo que Cleonice Berardinelli ou
Evaristo de Morais Filho são os mais jovens. Na “minha faixa
etária” aproximo Lygia e Ana Maria, Cony e Rouanet.
Desejo evocar Evandro Lins e Silva, uma das figuras
de proa da história do Brasil, que há mais de uma década lançou meu nome para a
ABL. Lembro igualmente de três acadêmicos que me conhecem há mais de vinte
anos. Nélida Piñon: com sua inteligência meridiana e generosa, a pentear-me os
cabelos, desalinhados pelo regime de ventos que sopram em A república dos
sonhos. Sua leitura confirmou o estatuto de duas línguas e uma amálgama
superior; Eduardo Portella: na Biblioteca Nacional ou no encontro, tramado pelo
acaso, na porta da livraria La Hune, num fim de tarde em Paris.
Declaro-me aqui atento leitor de sua obra e nutro a esperança de que me
considere amigo, dentro e fora da página; e para não aumentar a vertigem da
lista, termino com Tarcísio Padilha: homem de absoluta integridade, da família
dos raros pensadores, cuja visão de mundo coincide com a própria vida. O
princípio-esperança o representa de forma inadiável.
Não posso não assinalar, no livro imaterial das
grandes amizades, meu reconhecimento a Luciana Villas-Boas e Sérgio Machado,
pela cumplicidade refinada, constante e generosa. Aos amigos desta
noite, de tantas línguas, países, religiões, agradeço comovido. Saúdo os
funcionários da Biblioteca Nacional, de que destaco o trabalho admirável de
Célia Portella. Cumprimento, em nome dos que trabalham na Academia
Brasileira de Letras, nossa querida dona Carmen.
Termino com um poema de Meridiano celeste &
bestiário, através do qual declaro parte de minhas dívidas, nomeando meus
amáveis credores: Constança Hertz, a irmã Rosalie Baptista, Elizabeth Paulon,
Ana Miranda e Sauro Lunardini. Não me esqueço da memória de Nise da
Silveira. E, particularmente, de Quintilia Lorenzoni, Egidio Lucchesi e
Elena Dati:
“Obrigado
céu em
chamas
infância
melancolia
obrigado
gerânios
antúrios
quintais
infinitos
praias do
Leme e Arpoador
obrigado
rádio
relógio
movendo
meus anseios
e eu não
dando pelas horas
(depois
do sol
quem
ilumina seu lar
é a
galeria silvestre
obrigado
por tarefa
tão
sublime
essa de
iluminar
todas as
casas)
obrigado
parque
xangai
largo da
penha dezenove
obrigado
tardes e
madrugadas
bazares
especiarias
amores e
devaneios
obrigado
línguas e
povos
de todos
os quadrantes
objetos
do céu profundo
anéis de
Saturno
crateras
da Lua
e
espinhas no rosto adolescente
obrigado
febres
pela herança
de torpor
e imprecisão
que
deixais ao partir
obrigado
Vieira e
os dias
que
passei guardando
as armas
de
Portugal contra as de Holanda
obrigado
sonhos
noturnos
igrejas
barrocas e mesquitas
primeiras
orações e terço azul escuro
obrigado
cães
gatos passarinhos
que por
mim passaram
e me
fizeram mais sutil
obrigado
inocência
que me resta
cinismo
que me atenta
obrigado
sangue
difamação
joelhos feridos
ao cair
da bicicleta
e de há
muito cicatrizados
desertos
e façanhas
breves e
bizarras
mas que
me são
e me
atravessam
obrigado
amigos
não tenho
palavras e silêncios
espadas
flamejantes
e mares
de calor
muito
obrigado
obrigado
de verdade
Marco
Lucchesi
agradecido”
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