domingo, 31 de julho de 2016

O PROBLEMA: O JULGAMENTO DOS VALORES

     "Certamente, eu disse, o conhecimento é o alimento da alma; e precisamos ter cuidado, meu amigo, para que o sofista não nos iluda quando elogia o que vende, como os vendedores atacadistas ou varejistas que vendem o alimento para o corpo; pois eles elogiam indiscriminadamente todos os artigos, sem saberem quais são os realmente benéficos ou prejudiciais: nem tampouco o sabem os fregueses deles, salvo um educador ou médico que porventura deles compre. Analogamente, os que conduzem os produtos do saber, e perambulam pelas cidades, vendem-nos ou distribuem-nos a qualquer freguês que deles esteja necessitando, elogiando-os da mesma maneira; embora eu não duvide, ó meu amigo, que muitos deles ignoram de fato o efeito deles sobre a alma, da mesma forma que seus fregueses, a menos que o que deles compre seja um médico da alma. Se, portanto, vós compreendeis o bem e o mal, podeis com segurança adquirir conhecimentos de Protágoras ou de qualquer outro; porém, se não é esse o caso, ó meu amigo, parai e não arrisqueis vossos mais caros interesses em um jogo de azar. Porquanto há perigo bem maior na aquisição de conhecimentos do que na compra de carne e bebidas..." (Platão, Protágoras).
     Assim é que Erich Fromm (Analise do Homem) inicia o discurso sobre 'O Problema'. Dissera ele: "Um espírito de orgulho e otimismo tem distinguido a cultura ocidental nestes últimos séculos: orgulho da razão como instrumento do homem para entender e dominar a Natureza; otimismo quanto à satisfação das mais agradáveis esperanças da humanidade, a consecução da felicidade máxima para o maior número. O orgulho do homem tem sido justificado. Graças à razão, ele edificou um mundo material cuja realidade supera até os sonhos e visões dos contos de fadas e utopias. Ele controla energias físicas que habilitarão a raça humana a conseguir as condições materiais necessárias a uma existência condigna e produtiva, e, apesar de muitas de suas metas não terem ainda sido atingidas, é difícil descrer de sua próxima concretização e de que o problema da produção - que era o problema do passado - está em princípio resolvido. Agora, pela primeira vez na História, o homem pode perceber que a ideia da unidade da raça humana e a conquista da Natureza em proveito do homem não mais são um sonho, porém uma possibilidade realista. Não tem ele razão para sentir-se orgulhoso e para confiar em si e no futuro da humanidade? Contudo, o homem moderno sente-se inquieto e cada vez mais perplexo. Ele labuta e lida, mas tem uma vaga consciência da futilidade de seus esforços. Enquanto cresce seu poder sobre a matéria, sente-se impotente em sua vida individual e em sociedade. Embora tenha criado maneiras novas e melhores para dominar a Natureza, tornou-se enleado em uma teia desses meios e perdeu de vista o fim que lhe dá significado - o próprio homem. Embora se tenha tornado senhor da Natureza, converteu-se em escravo da máquina construída por suas próprias mãos. Com todos os seus conhecimentos a respeito da matéria, ele ignora o que se prende às questões mais importantes e fundamentais da existência humana: o que é o homem, como é que deve viver e como as tremendas energias que há dentro dele podem ser liberadas e usadas produtivamente. A crise humana contemporânea conduziu a um recuo em relação às esperanças e ideias do Iluminismo, sob cujos auspícios teve início o nosso progresso político e econômico. A própria ideia de progresso é chamada de ilusão infantil e o 'realismo' , um novo nome para a total falta de fé no homem, é pregado para substituí-la. A ideia de dignidade e poder do homem, que deu a este a força e a coragem para as formidáveis realizações destes últimos séculos, é contestada ao alvitrar-se que temos de voltar a conformar-nos com sua absoluta importância e insignificância. Essa ideia ameaça destruir as próprias raízes de que germinou nossa cultura. As ideias do Iluminismo ensinaram ao homem que poderia confiar em sua própria razão como um guia no estabelecimento de normas éticas e válidas e de que poderia contar consigo mesmo, dispensando a autoridade da Igreja e da revelação para distinguir o bem do mal. O lema Iluminismo, 'Atreva-se a saber', querendo dizer 'Confie em seu conhecimento', tornou-se o incentivo para os empreendimentos e realizações do homem moderno. A dúvida crescente sobre a autonomia e a razão do homem criou um estado de confusão moral em que o homem se vê desprovido de orientação, seja da revelação, seja da razão. O resultado é a aceitação de uma posição relativista segundo a qual os julgamentos dos valores e as normas éticas são puramente questões de gosto ou preferência arbitrária e de que neste setor não é possível fazer nenhuma afirmação com validade objetiva. Porém, como o homem não pode viver sem valores e normas, este relativismo torna-o fácil presa de sistemas irracionais de valores. Ele reverte a uma posição que fora ultrapassada pelo Iluminismo grego, pelo Cristianismo, pelo Renascimento e pelo Iluminismo oitocentista. As exigências do Estado, o entusiasmo pelas qualidades mágicas dos líderes poderosos, as máquinas potentes e o sucesso material tornaram-se as fontes de suas normas e julgamentos dos valores. Devemos deixar que assim permaneça? Devemos consentir na alternativa entre religião e relativismo? Devemos aceitar a abdicação da razão em assuntos éticos? Devemos crer que as escolhas entre liberdade e escravidão, amor e ódio, verdade e falsidade, integridade e oportunismo, vida e morte são apenas os resultados de outras tantas preferências subjetivas? Com efeito, há outra alternativa. Normas éticas válidas podem ser formuladas pela razão humana, e sempre por esta. O homem é capaz de discernir e de fazer julgamentos dos valores tão válidos quanto quaisquer outros oriundos de sua razão. A grande tradição do pensamento ético humanista lançou os alicerces de sistemas de valores apoiados na autoridade e na razão do homem. Esses sistemas foram formulados partindo da premissa de que para se saber o que é bom ou mau para o homem faz-se mister conhecer a natureza do homem. Eles foram também, por conseguinte, pesquisas psicológicas. Se a ética humanista se baseia no conhecimento da natureza do homem, a Psicologia moderna, e em particular a Psicanálise, deveria ter sido um dos mais poderosos estímulos para o desenvolvimento dessa ética. Sem embargo, malgrado a Psicanálise tenha aumentado enormemente o conhecimento do homem, ela não ultrapassou nosso conhecimento acerca de como o homem deve viver e do que ele deve fazer. Sua função principal tem sido de 'desmascaramento', de demonstrar que os julgamentos dos valores e as normas éticas são expressões racionalizadas de desejos e medos tradicionais - e amiúde inconscientes - e que, portanto, não podem fazer jus ao caráter de validade objetiva. Apesar desse desmascaramento ter sido profícuo por si mesmo, tornou-se cada vez mais estéril ao não conseguir passar de mero trabalho de crítica. [...] Os valores supremos da ética humanista não são a renúncia própria nem o egoísmo, porém o amor-próprio; não a negação do indivíduo, porém a afirmação de seu verdadeiramente humano. Para que o homem confie em valores, cumpre que conheça a si mesmo e a capacidade de sua natureza para ser bom e produtivo.". 
     O objetivo da análise de Fromm é o homem moderno e o mundo por ele construído, que supera os sonhos e as visões das Utopias; o homem que trabalha e luta, mas tem um vago sentimento de futilidade a respeito da atividade que desenvolve e não pode evitar a inquietação e a perplexidade que dele se apossam. Enquanto aumenta o seu poder sobre a matéria, sente-se menos potente na sua vida individual e em sociedade, parecendo haver-se enredado na malha por ele próprio tecida. Domina os elementos, mas perde a visão do único fim que dava real significado ao seu esforço: o próprio homem. Daí sentir-se angustiado, triste, inseguro: tem medo de tudo; a dúvida lhe acompanha. Ele precisa sair do medo à liberdade.

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