sábado, 6 de agosto de 2016

Conceito de Amor Produtivo e a Responsabilidade

     Segundo Machado de Assis; "Basta amar para escolher bem". Numa página sublime, Erich Fromm em 'Análise do Homem' o descreve: "A experiência humana se caracteriza pelo fato do homem ser isolado e separado do mundo; não podendo suportar a separação, ele se vê impelido a procurar relacionar-se e unir-se com seu próximo. São muitas as maneiras pelas quais ele pode satisfazer essa necessidade, mas somente uma em que ele, como entidade original, permanece intato; somente uma em que seus próprios poderes se expandem à medida que ele se relaciona com os outros. É próprio do paradoxo da existência humana ter o homem simultaneamente de procurar proximidade e independência, união com outros e preservação de sua originalidade e particularidade (ligação à distância, de Charles Morris). Conforme mostramos, a solução para esse paradoxo - e para o problema moral do homem - é a produtividade.
     É possível relacionar-se com o mundo por meio de ação e de compensação. O homem produz coisas e, ao fazê-lo, exerce seus poderes sobre a matéria. O homem compreende o mundo, intelectual e emocionalmente, através do amor e através da razão. Seu poder de raciocínio habilita-o a penetrar a superfície e aprender a essência de seu objeto, relacionando diretamente com este. Seu poder de amor habilita-o a romper a muralha que o separa de outra pessoa e a compreender esta. Conquanto o amor e a razão sejam duas formas diferentes de compreender o mundo e nenhuma delas possa existir sem a outra, elas são manifestações de poderes diferentes, o da emoção e o do pensamento, e, por isso, devem ser estudadas separadamente.
     O conceito de amor produtivo é de fato bem diferente daquilo a que frequentemente se dá o nome de amor. É difícil encontrar-se palavra mais ambígua e desconcertante do que a palavra "amor". Ela é empregada para indicar quase que todo sentimento à exceção de ódio e aversão. Abrange tudo, desde o amor por sorvete ao amor por uma sinfonia, desde uma simpatia moderada ao mais ardoroso sentimento de intimidade. As pessoas acham que estão amando se estiverem "caídas" por alguém; dão o nome de amor à sua dependência e também ao domínio que exercem sobre outras. Elas crêem, com efeito, que nada é mais fácil do que amar; acham que a dificuldade está apenas em encontrar o objeto adequado e que seu insucesso em encontrar felicidade no amor deve-se exclusivamente à sua falta de sorte para encontrar o parceiro certo. Todavia, ao contrário de todo esse modo de pensar confuso e cerebrino, o amor é um sentimento muito específico, e, apesar de todo ser humano ter certa capacidade de amar, sua realização é uma das mais árduas conquistas. O amor autêntico tem suas raízes na produtividade e pode chamar-se, apropriadamente, "amor produtivo". Sua essência é a mesma, quer se trate de amor materno pelo filho, quer de nosso amor pelos semelhantes, quer de amor erótico entre dois indivíduos. [...] Embora os objetos do amor difiram e, consequentemente, a intensidade e a qualidade do próprio amor, certos elementos básicos podem ser considerados característicos de todas as formas de amor produtivo. São eles desvelo, responsabilidade, respeito e conhecimento.
     Desvelo e responsabilidade denotam que o amor é uma atividade e não uma paixão que subjugue a pessoa, nem um afeto pelo qual esta seja "afetada". O elemento de desvelo e responsabilidade no amor produtivo foi admiravelmente descrito no livro de Jonas. Deus disse a Jonas para ir a Nínive prevenir seus habitantes que seriam punidos se não se corrigissem. Jonas foge do cumprimento de sua missão porque receia que o povo de Nínive venha a arrepender-se e Deus lhe perdoe. Ele é um homem com um forte sentimento de ordem e da lei, mas sem amor. Entretanto, em sua tentativa de fuga vai parar no ventre de uma baleia, simbolizando o estado de isolamento e aprisionamento que lhe foi acarretado por sua falta de amor e solidariedade. Deus o salva e Jonas vai a Nínive. Ele prega aos habitantes conforme Deus lhe ordena e sucede exatamente o que receara. Os homens de Nínive arrependem-se de seus pecados, mudam de proceder e Deus os perdoa, resolvendo não destruir a cidade. Jonas fica intensamente zangado e desapontado: ele queria que fosse feita "justiça", e não misericórdia. Afinal, encontra algum consolo à sombra de uma árvore que Deus fizera nascer para protegê-lo do sol. Mas, quando Deus faz a árvore murchar, Jonas sente-se deprimido e queixa-se amargamente a Deus. Este responde: "Tiveste compaixão da cabaceira, pela qual não trabalhaste e que não fizestes crescer, que numa noite nasceu e noutra pereceu. E, não hei eu de ter compaixão da grande cidade de Nínive, em que estão mais de cento e vinte mil pessoas, que não sabem discernir entre sua mão direita e sua mão esquerda, e também muito gado"? A resposta de Deus a Jonas deve ser interpretada simbolicamente. Deus explica a Jonas que a essência do amor reside em "trabalhar" por algo e "fazer algo crescer", por amor e trabalho são inseparáveis. Ama-se aquilo por que se trabalha, e trabalha-se pelo que se ama.
     A história de Jonas dá a entender que amor não pode ser dissociado de responsabilidade (ver Hans Jonas - Princípio Responsabilidade). Jonas não se sente responsável pela vida de seus irmãos. Ele, como Caim, poderia perguntar: "Sou eu o guardião de meu irmão?". A responsabilidade não é um dever imposto  de fora à pessoa, mas uma resposta desta a um pedido que ela julga interessar-lhe. Responsabilidade e resposta têm a mesma origem, respondere = "responder"; ser responsável quer dizer estar pronto a responder.
     O amor materno é o exemplo mais frequente e mais facilmente entendido de amor produtivo; sua própria essência vem a ser desvelo e responsabilidade. Durante o parto, o corpo da mãe "trabalha" pelo filho e, depois, seu amor consiste na labuta para fazer o filho crescer. O amor materno não depende de condições que a criança tenha de satisfazer para ser amada: é incondicional, baseado unicamente no pedido do filho e na resposta da mãe. Não é de admirar que o amor materno tenha sido um símbolo da mais alta forma de amor na arte e na religião. A palavra hebraica que indica o amor de Deus pelo homem e o amor deste por seu semelhante é rachamim, cujo radical rechem = útero.
     Não é tão evidente, no entanto, a conexão de desvelo e responsabilidade com o amor individual; crê-se que o fato de se apaixonar já é a culminação do amor, quando é deveras o começo e apenas uma oportunidade para a realização do amor. Acredita-se que o amor é o resultado de uma qualidade misteriosa graças à qual duas pessoas se sentem mutuamente atraídas, um acontecimento que ocorre sem esforço. Na verdade, a solidão do homem e seus desejos sexuais tornam fácil apaixonar-se e isso nada tem de misterioso, mas é um ganho que se perde rapidamente, uma vez alcançado. Ninguém é amado acidentalmente; a capacidade de cada um para amar produz amor - tal como mostrar-se interessado faz o indivíduo interessante. As pessoas preocupam-se com a questão de saber se são ou não atraentes, esquecendo-se que a essência de seu poder de sedução é sua própria capacidade de amar. Amar produtivamente uma pessoa implica cuidar de e sentir-se responsável pela vida dela, não só por sua existência física como também pelo incremento e desenvolvimento de todos os seus poderes humanos. Amar produtivamente não se coaduna com passividade nem com a atitude de mero observador face à vida da pessoa amada: implica esforço, cuidado e responsabilidade por seu desenvolvimento.
     A despeito da universalidade das religiões monoteístas do Ocidente e dos conceitos políticos progressistas que se exprimem na ideia de que "todos os homens são criados iguais", o amor à humanidade não se converteu em uma experiência comum. O amor à humanidade é encarado como uma realização que, na melhor das hipóteses, decorre do amor a um indivíduo, ou como um conceito abstrato a ser concretizado somente no porvir. Mas o amor ao homem não pode ser separado do amor a um indivíduo. Amar produtivamente uma pessoa significa relacionar-se com sua essência humana, com o que nela representa a humanidade. O amor a um indivíduo, enquanto divorciado do amor ao homem em geral, só pode referir-se ao que é superficial e acidental; por força, tem de permanecer pouco profundo. Apesar de se poder dizer que o amor ao homem difere do amor materno, porquanto a criança é indefesa e nossos semelhantes adultos não o são, também pode-se dizer que mesmo essa diferença só existe em termos relativos. Todos os homens carecem de ajuda e dependem uns dos outros. A solidariedade humana é uma condição indispensável à expansão de qualquer indivíduo.
     O desvelo e a responsabilidade são elementos constitutivos do amor, mas sem respeito por e conhecimento da pessoa amada, o amor degenera em dominação e possessividade. Respeito não é medo nem reverência; indica, segundo a origem da palavra (respicere = olhar), a capacidade de ver uma pessoa tal como é, de ter consciência de sua individualidade e originalidade. Não é possível respeitar alguém sem o conhecer; o desvelo e a responsabilidade seriam cegos se não fossem orientados pelo conhecimento da individualidade da pessoa. [...]". Enfim: viver como uma arte!

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