domingo, 1 de maio de 2016

O Trabalho em Rui Barbosa: Oração aos Moços

     A mensagem de Rui Barbosa, sobre o trabalho, desenvolvido na Oração aos Moços, é densa e convidativa. Ele termina o texto: "Assim o queira Deus.". Quando inicia, diz: "Não quis Deus que os meus cinquenta anos de consagração ao direito viessem receber no templo do seu ensino em São Paulo o selo de uma grande bênção, associando-se hoje com a vossa admissão ao nosso sacerdócio, na solenidade imponente dos votos em que o ides esposar. Em verdade vos digo, jovens amigos meus, que o criador desta existência declinante com essas carreiras nascentes agora, o seu coincidir num ponto de interseção tão magnificamente celebrado, era mais do que eu merecia; e, negando-me a divina bondade num momento de tamanha ventura, não me negou o a que eu não devia ter tido a inconsciência de aspirar. Mas, recusando-me o privilégio de um dia tão grande, ainda me consentiu o encanto de vos falar, de conversar convosco, presente entre vós em espírito; o que é, também, estar presente em verdade. Assim que não me ides ouvir de longe, como a quem se sente arredado por centenas de quilômetros, mas de ao pé, de em meio a vós, como a quem está debaixo do mesmo teto e à beira do mesmo lar, em colóquio de irmãos, ou junto dos mesmos altares, sob os mesmos campanários, elevando ao Criador as mesmas orações, e professando o mesmo credo. Direis que isto de me achar assistindo, assim, entre os de quem me vejo separado por distância tão vasta, seria dar-se, ou supor que se está dando, no meio de nós, um verdadeiro milagre? Será. Milagre do maior dos taumaturgos. Milagre de quem respira entre milagres. Milagre de um santo, que cada qual tem no sacrário do seu peito. Milagre do coração, que os sabe chover sobre a criatura humana, como o firmamento chove nos campos mais áridos e tristes e orvalhava das noites, que se esvai, com os sonhos de antemanhã, ao cair das primeiras frechas de oiro do disco solar. Embora o relismo dos adágios teime no contrário, toleram-me o arrôjo de afrontar uma vez a sabedoria dos provérbios. Eu me abalanço a lhes dizer e redizer de não. Não é certo, como corre mundo, ou, pelo menos, muita e muitíssimas vezes não é verdade, como se espalha fama, que <longe da vista, longe do coração>. O gênio dos anexins, aí, vai longe de andar certo. Esse prolóquio tem mais malícia que ciência, mais epigrama que justiça, mais engenho que filosofia. Vezes sem conto, quando se está mais fora da vista dos olhos, então (e por isso mesmo) é que mais à vista do coração estamos; não só bem à sua vista, senão bem dentro nele. Não, filhos meus (deixai-me experimentar, uma vez que seja, convosco, este suavíssimo nome); não: o coração não é tão frívolo, tão exterior, tão carnal, quanto se cuida. Há, nele, mais que um assombro fisiológico: um prodígio moral. É o órgão da fé, o órgão da esperança, o órgão do ideal. Vê, por isso, com olhos d'alma, o que não vêem os do corpo. Vê ao longe, vê em ausência, vê no invisível, e até no infinito vê. Onde pára o cérebro de ver, outorgou-lhe o Senhor que ainda veja; e não se sabe até onde. Até onde chegam as vibrações do sentimento, até onde se perdem os surtos da poesia, até onde se somem os vôos da crença: até Deus mesmo, inviso como os panoramas íntimos do coração, mas presente ao céu e à terra, a todos nós presente, enquanto nos palpite, incorrupto, no seio, o músculo da vida e da nobreza e da bondade humana. Quando ele já não estende o raio visual pelo horizonte do invisível, quando sua visão tem por limite a do nervo ótico, é que o coração, já esclerótico, ou degenerescente, e saturado nos resíduos de uma vida gasta no mal, apenas oscila mecanicamente no interior do arcabouço, como pendula de relógio abandonado, que grita, com as derradeiras pancadas, os vermes e a poeira da caixa. Dele se retirou a centelha divina. Até ontem lhe banhava ela de luz todo esse espaço, que nos distancia do incomensurável desconhecido, e lançava entre este e nós uma ponte de astros. Agora, apagados esses luzeiros, que inundavam de radiosa claridade, lá se foram, com o extinto cintilar das estrelas, as entreabertas do dia eterno, deixando-nos, tão-somente, entre o longínquo mistério daquele termo e o aniquilamento da nossa miséria desamparada, as trevas de outro éter, como esse que se diz encher de escuridão o vago mistério do espaço. Entre vós, porém, moços que me estais escutando, ainda brilha em toda a sua rutilência o clarão da lâmpada sagrada, ainda arde em toda a sua energia o centro de calor, a que se aquece a essência d'alma. Vossa coração, pois, ainda estará incontaminado; e Deus assim o preserve. [...].".
     É assim mesmo que se expressa aquele que confia no espírito jovial. Eis que das virtudes quase não se fala mais. Isso não significa que não precisemos mais delas, nem nos autoriza a renunciar a elas. É melhor ensinar as virtudes, dizia Spinoza, do que condenar os vícios. É melhor a alegria do que a tristeza, melhor a admiração do que o desprezo, melhor o exemplo do que a vergonha. Não se trata de dar lições de moral, e sim de ajudar cada um a se tornar seu próprio mestre, como convém, e seu único juiz. Com que objetivo? Para ser mais humano, mais forte, mais doce. Virtude é poder, é excelência. As virtudes não nossos valores morais, encarnados, tanto quanto pudermos, vividos, em ato. Sempre singulares, como cada um de nós, sempre plurais, como as fraquezas que elas combatem ou corrigem. Não há bem em si: o bem não existe, está por ser feito, é o que chamamos virtudes. E o trabalho as representa em maior profundidade por que em ato. O discurso só é estéril.

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