sexta-feira, 31 de maio de 2019

FACULDADE ESTÁCIO DE CURITIBA - IED - 2019.1 - FONTES DO DIREITO


A Dinâmica Jurídica

A estrutura das sociedades contemporâneas demanda uma alteração constante das normas jurídicas. Desde há muito os Estados contemporâneos já se estruturam instituindo normas jurídicas que preveem a forma de nascimento, qualificação e morte das demais normas do ordenamento. Não é de um brotar espontâneo que o direito moderno surge. Nem tampouco é de qualquer vontade do Estado que as normas jurídicas se impõem. Aquilo que seja ou não direito é declarado e considerado como tal a partir de imposições de poder cujas técnicas sejam muito claras e previstas formalmente.

Na Teoria Pura do Direito, Kelsen divide o estudo das normas em estática jurídica e dinâmica jurídica. Pela estática, analisar-se-ia tudo aquilo que é próprio de todas as normas jurídicas, os elementos necessários que identificam cada uma das normas do direito. Pela dinâmica, estudar-se-ia o conjunto das normas, o seu movimento, sua criação, sua extinção, suas qualidades que advêm da relação com outras normas, como a questão da validade. Na dinâmica jurídica, as normas passam a ser estudadas em conjunto, em ordenamento, porque normas revogam outras normas, normas validam outras normas que foram criadas etc. Assim sendo, a dinâmica jurídica, tomando as normas do direito em conjunto, incumbir-se-ia de explicar o movimento das normas, desde sua origem até seu perecimento, sua qualificação e sua correta inserção no meio das outras normas, do que surge, logo de início, a questão da origem das normas, as chamadas fontes do direito.

As fontes do direito

O conceito de fonte do direito será um dos temas necessários ao controle do direito. Saber de onde vem as normas é um dos postulados mais importantes para a ideia de coerência do ordenamento jurídico e, consequentemente, para que as necessidades da reprodução capitalista estejam respaldadas.
Ao reservar a si o poder de emanar normas, o Estado já impõe o fundamental desse controle social. E mais, ao determinar a um órgão específico - o legislativo - a produção das normas, já se estabeleceu o domínio específico do direito estatal por meio de uma reserva de competências formais. O monopólio da normatização nas mãos do Estado é o grande evento do poder de dominação do direito. Tal monopólio está diretamente ligado às próprias razões de controle do Estado, ou seja, o essencial está estruturado. Somente as normas emanadas do Estado serão normas jurídicas, e somente o Estado terá o poder de dizer a respeito do que seja juridicamente válido. Nenhuma norma poderá ser criada se atentar contra os preceitos normativos já estabelecidos. Para ser criada, ela precisará do respaldo das normas que estipulam como surgirão as novas normas e em relação a que temas poderá versar. Esse mecanismo de controle do surgimento das normas é o próprio conceito de validade normativa. Uma norma só surge, só é admitida no ordenamento jurídico, se outras lhe deram validade, tanto no aspecto formal - se foi criada pelo legislador competente do Estado, seguindo os trâmites competentes (regular processo legislativo)como votação, publicação no Diário Oficial etc. - quanto no aspecto material - se tal matéria de que trata a norma é passível de legislação, se tal legislador poderia versar sobre tais conteúdos etc.

O direito positivo é considerado fonte do direito e o peso de suas normas se dá respeitando-se a sua manifestação estrutural. Determinadas normas jurídicas impõem-se sobre outras por conta da sua hierarquia. Daí se dizer que a Constituição é a fonte do direito mais alta de cada Estado. Ela dá o arcabouço a partir do qual as demais manifestações jurídicas são consideradas válidas.

Tecnicamente e em sentido estrito, apenas a norma emanada do Poder Constituinte - a Constituição - e do Poder Legislativo ordinário, leva o nome de Lei. As demais (leis, decretos, regulamentos, portarias, resoluções, convenções e demais normas jurídicas do ordenamento são consideradas fontes do direito) e são assim consideradas, em sentido amplo.

Em muitos casos, os juristas costumam falar a respeito das fontes do direito reconhecendo, ao lado das fontes ditas positivas - aquelas advindas das previsões da legalidade estatal -, outras fontes, como a doutrina, a jurisprudência, os contratos, a equidade, os princípios do direito, o costume.  A doutrina é a opinião jurídica considerada abalizada, sólida, cujo poder de persuasão tenha o condão de moldar a prática jurídica. A jurisprudência é a consolidação de uma atividade emanada e prevista pelas normas do Estado. Os contratos são instrumentos elaborados por particulares ou assim considerados, mediante autorização do Estado. O costume é a prática reiterada e admitida como válida, no âmbito empresarial. A Junta Comercial de São Paulo dispõe de um instrumento para registro de costume. A equidade é tratada como fonte do direito por causa da sua revelação no momento da determinação jurídica do caso concreto. Os chamados princípios gerais do direito são admitidos como fonte do direito porque assim os são tratados pela lei positiva. 

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ESTUDO DE CASO III (Fone: Medida por Medida - O Direito em Shakespeare - José Roberto de Castro Neves)

Em Trabalhos de Amor Perdidos, o rei de Navarra e seus nobres amigos fazem um voto em comum: abandonar os prazeres da carne por três anos para se dedicarem apenas ao estudo da filosofia. Passam os amigos e o rei a pensar nas regras para esse fim: "Que nenhuma mulher se aproxime a menos de uma milha da minha corte" e "Se algum homem for encontrado falando com uma mulher no prazo de três anos, sofrerá a humilhação pública que haja por bem impor-lhe a corte", promulga o rei. 

Essas regras são tão antissociais que clamam por ser violadas. Shakespeare brinca exatamente com esse limite da lei: a razoabilidade, o bom senso. Que lei pode ir contra a natureza humana? Pórcia, de O Mercador de Veneza, salienta o tema: "O cérebro pode promulgar leis contra a paixão; porém a natureza ardente salta por cima de um frio decreto".

Entre os companheiros do rei de Navarra, há o gaiato Biron. Embora assine o juramento - verdadeira promessa unilateral -, ele critica a intransigência e o exagero da norma. Biron assina o documento diante da insistência do Rei, mas adverte que "esses juramentos e essas leis não tardarão a ser violados". A mensagem é a de que não pode haver uma regra que viole a natureza humana.

Com a visita à de Navarra da princesa de França e de seu séquito feminino, o juramento passa por uma provação. Os autores do juramento se disfarçam, mas acabam descobertos. Declaram os seus amores, mas são forçados, para não infringir a promessa, a aguardar o fim do prazo do voto de castidade.

Há, na peça, uma divertida passagem (Ato IV, Cena 3), na qual se expõe o descumprimento do voto de abstinência por todos os signatários do juramento. Biron entra em cena e, num monólogo, explica sua culpa por estar apaixonado por Rosaline. Ao ver que o rei está por entrar, Biron se esconde. O rei, então, imaginando-se sozinho, lê um poema que fizera para a princesa de França, no qual declara seu amor. Em seguida, o rei nota que outro amigo, Longaville, também preso pelo juramento, se aproxima. É a vez do rei se ocultar. Longaville, também imaginando-se só, lê seu soneto apaixonado para Maria, outra acompanhante da princesa. Chega, ainda, Dumaine, outro que prometeu ficar longe das mulheres, e Longaville se esconde. Dumaine também lê, em voz alta, sua declaração de amor para outra participante do séquito da Princesa de França. Ao final de sua fala, Dumaine ainda suscita como seria bom se o rei, Biron e Longaville, os demais signatários da promessa, também estivessem apaixonados, porque, segundo ele, "Ninguém é culpado quando todos tresvariam".

Nessa hora, Longaville sai de seu esconderijo, para desmascarar Dumaine. Para surpresa de Longaville, o rei também surge para criticar os dois pela violação do juramento. É quando Biron salta e revela que também o rei não honrou sua palavra. Biron ainda chama à razão - "Mostremo-nos agora para flagelar a hipocrisia" -, pois não seria mesmo possível cumprir uma regra tão contrária à natureza humana. Afinal, "Atentem para as juras que fizeram/ Jejuar e estudar sem ver mulher/ É traição contra a sua juventude."

Os signatários do juramento chegam a um consenso, depois da ponderação de Biron: "éreis insensatos abjurando as mulheres e seríeis ainda mais se mantivésseis vosso juramento. [...] esqueçamos uma vez mais os nossos juramentos, para salvar-nos a nós mesmos, se não nos quisermos sacrificar mantendo os nossos votos. A religião pede que perjuremos assim. A caridade é toda a lei divina. E quem poderia separar o amor da caridade? Concordam, então, em abandonar suas promessas.

Contudo, a princesa de França e seu séquito, cientes do juramento, impõem ao rei de Navarra e aos seus amigos que honrem a promessa unilateral, aguardando o final do prazo da abstinência, tal como fora jurado. Afinal, segundo um conceito moral e jurídico, as promessas devem ser cumpridas. Entretanto, até isso ocorrer, há muita conversa. Não sem bom motivo, o título da peça é Trabalhos de Amor Perdidos, porque, de fato, apesar do esforço, o amor não se consuma.

Não escapou a Shakespeare o fato de que as pessoas podem, elas próprias e sozinhas, criar obrigações que as vinculem em relação a terceiros, inicialmente desconhecidos e indeterminados. Depois de estabelecidos esses deveres - como nas promessas unilaterais -, os promitentes não têm como, isoladamente, desistir das obrigações que criaram. No caso de Trabalhos de Amor Perdidos, embora todos os signatários do juramento tenham desistido, arrependidos de sua promessa, a princesa de França ainda pode exigir deles que honrem o prometido. E assim se dá.

O tema suscita uma questão jurídica: quais as situações da vida que fazem nascer deveres jurídicos? Como surgem as obrigações jurídicas? Essa questão guarda a maior relevância, pois muitas vezes se busca averiguar exatamente se determinado fato é bom o suficiente para criar deveres jurídicos. Essa questão já era discutida, com alguma profundidade, no Direito Romano. São fontes das obrigações os fatos aptos a gerar deveres de uma parte (que passa a ser o devedor) e o direito da outra (a credora, que terá o poder de exigir um comportamento da outra, consistente no cumprimento do dever). 

Os atos ilícitos, os negócios jurídicos (os contratos e os atos unilaterais) e a lei funcionam como fontes de obrigação. Se alguém comete uma ilegalidade e, por conta disso, causa dano, o prejudicado pode reclamar uma indenização. O ilícito que causou dano faz nascer a obrigação de reparar. O contrato é outra fonte das obrigações reconhecida há muito. O acordo de duas pessoas acerca de um determinado comportamento as vincula, criando uma obrigação para elas. A lei, também, tem o condão de impor obrigações. Cada vez mais situações são admitidas pelo ordenamento como aptas a gerar deveres. Não raro, a discussão entre as partes consistirá precisamente em identificar se há, ou não, um fato que as obriga.

O intérprete é responsável pela correta leitura do texto legal (ou da norma estabelecida contratualmente). Cabe a ele apreciar a profundidade e extensão do que foi dito. Mais vale compreender como a mensagem chegou ao destinatário do que como ela saiu do seu emitente. Entre a vontade, a declaração e a confiança, esta última deve preponderar. Com efeito: "O sucesso do chiste vem do ouvido de quem o ouve, e nunca da palavra de quem fala."

A interpretação é um dos temas mais ricos do Direito. Interpretar é retirar o verdadeiro sentido do texto. No ensinamento de Francisco Marino (Interpretação do Negócio Jurídico, São Paulo, Saraiva, 2011, p. 57), o sentido não deve ser indevida e sub-repticiamente introduzido pelo intérprete, porém extraído de forma representativa. Em suma, a interpretação das regras (legais ou contratuais) pode ser: a) literal, atentando-se aos termos, às palavras, àquilo que foi escrito; b) teleológica, numa análise lógica, apreciando-se o propósito da lei ou do negócio; c) sistemática, considerando a regra inserida dentro do ordenamento jurídico e das demais regras; e d) histórica, apreciando a época da edição da lei e suas circunstâncias.

Especificamente em relação às leis, pode haver a interpretação autêntica. Isso ocorre quando, depois de publicada uma norma, surjam dúvidas acerca do alcance desta e, em decorrência disso, o próprio órgão ou pessoa que a emitiu edite uma segunda lei para esclarecer a primeira.

Evidentemente, se a nova norma ultrapassa a primeira em extensão (e ambas tiverem a mesma hierarquia), a segunda estará derrogando a primeira naquilo em que houver divergência. O mesmo conceito é refletido no seguinte diálogo entre Teseu e Hipólita em O Sonho de Uma Noite de Verão: "Hipólita: Isto é a coisa mais  estúpida que jamais ouvi em minha vida. Teseu: A melhor obra desse gênero é feita de ilusões e a pior não é pior quando a imaginação a conserta. Hipólita: Então, é devida à tua imaginação e não à deles".

Nessa passagem, os personagens comentam uma peça a que estão assistindo. Trata-se de uma peça dentro de outra (uma brincadeira matelinguística que Shakeaspeare usou algumas vezes, com em A Megera Domada e Hamlet).

Cumpre aferir o alcance da mensagem pelo prisma de quem a recebe. Deve-se apreciar que expectativa justa aquela mensagem poderia despertar no destinatário. Segundo Hamlet, "Nada em si é bom ou mau, tudo depende daquilo que pensamos."

No campo da interpretação dos contratos, deu-se, classicamente, ênfase maior à vontade do emitente, isto é, buscava-se extrair no negócio seu sentido tomando-se por base qual seria o interesse do proponente. Era a teoria da vontade. Assim a redação do artigo 85 do Código Civil brasileiro de 1916: "Nas declarações de vontade, se atenderá mais a sua intenção que ao sentido literal da linguagem". No entanto, o Código Civil brasileiro de 2012, ofereceu no artigo 112, novo enfoque: "Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem." O legislador, portanto, passou a dar maior relevo ao que foi efetivamente declarado. Antônio Junqueira de Azevedo apontava que "A nosso ver, a vontade não é elemento do negócio jurídico; o negócio é somente a declaração da vontade". Eis a teoria da declaração. Busca-se chegar ao desejo das partes pelo que foi efetivamente declarado.

Mais recentemente, fala-se da teoria da confiança. "A chamada teoria da confiança, que encontrou forte aceitação nos autores italianos, sustenta o entendimento de que, havendo desacordo entre vontade e declaração, esta deve prevalecer, quando, tendo em vista as circunstâncias em que feita, seja apta a incutir no destinatário a convicção de que corresponde à vontade do declarante". Vê-se essa teoria como uma forma de sintetizar as teorias da vontade e da declaração. ["Como fundamento" e explicação da vinculabilidade dos negócios jurídicos (confiança como fundamento dos negócios ou Teoria da Confiança) a doutrina civilista pretende sintetizar uma espécie de ponto de equilíbrio entre a "Teoria da Vontade" e a "Teoria da Declaração" Judith Martins-Costa - Comentários ao Novo Código Civil, vol. V, tomo II, 2ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2009, p. 67]. 

Avalia-se a confiança despertada analisando-se a manifestação da contraparte. Averigua-se qual teria sido a razoável percepção do destinatário. Para que haja segurança social, necessário que se respeite a confiança despertada na manifestação.

No mundo shakespeariano, a tradução coloca sempre em prova o tema da interpretação. Millôr Fernandes, que verteu para o português Hamlet, A Megera Domada, As Alegres Matronas de Windsor e Rei Lear, esclareceu: "Fica dito: não se pode traduzir sem ter uma filosofia a respeito do assunto. Não se pode traduzir sem ter o mais absoluto respeito pelo original e, paradoxalmente, sem o atrevimento ocasional de desrespeitar a letra do original exatamente para lhe captar melhor o espírito. Não se pode traduzir sem o mais amplo conhecimento da língua traduzida mas, acima de tudo, sem o fácil domínio da língua para a qual se traduz. Não se pode traduzir sem cultura e, também, contraditoriamente, não se pode traduzir quando se é um erudito, profissional utilíssimo pelas informações que nos presta - que seria de nós sem os eruditos em Shakespeare? - mas cuja tendência fatal é empalhar a borboleta. Não se pode traduzir sem intuição. Não se pode traduzir sem ser escritor, sem estilo próprio, sem originalidade, sem senso profissional. Não se pode traduzir sem dignidade."

Traduzir pressupõe uma interpretação, assim como qualquer leitura reclama uma interpretação. Comumente evoca-se o antigo brocardo: "in claris non fit interpretatio" ou "in claris cessat interpretatio", no sentido de que nas declarações claras não haveria interpretação. Isso, contudo, não é verdade. A interpretação está em toda parte, mesmo nos textos mais singelos. Nos casos simples, a interpretação é evidente, sem suscitar maiores desafios, mas ela estará lá.

Shakespeare é uma constante provocação ao intérprete, a ponto de permitir que cada leitor construa seu próprio Shakespeare, pela interpretação particular que venha a adotar. Como ressalta o clássico Harold C. Goddard: Não é 'Shakespeare, porém o seu Shakespeare, o meu Shakespeare, o nosso Shakespeare, um Shakespeare que possa nos salvar". O raciocínio jurídico funciona da mesma forma: ele se alimenta da interpretação, desse processo de extração do sentido das coisas. Como explica Dworkin, "a interpretação cria o texto".

No Direito, o intérprete tem mais força do que o legislador, acentuara Zygmunt Bauman (em Legisladores e Intérpretes, Rio de Janeiro, Zahar, 2010).

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