sexta-feira, 16 de agosto de 2019

FACULDADE ESTÁCIO DE CURITIBA – IED 2019.2 – Apresentação - AULA 1


FACULDADE ESTÁCIO DE CURITIBA – IED 2019.2 – Apresentação

AULA 1

Desde que Charles Bovary ingressou pela primeira vez na Faculdade de Medicina, “o programa de cursos que ele leu no quadro de editais o deixou atordoado: curso de anatomia, curso de patologia, curso de fisiologia, curso de farmácia e de botânica, curso de clínica e de terapêutica, sem contar o de higiene, o de clínica médica, todos nomes dos quais ele ignorava as etimologias e que eram como tantas portas de santuários cheios de majestosas trevas.”

Esteve deve ser o mesmo tipo de sentimento que experimentam o jovem universitário ou a jovem universitária que observa o currículo da Faculdade de Direito: Direito Privado, Direito Público, Antropologia, História, Ética, Psicologia  Aplicada ao Direito, Filosofia do Direito, Economia Política, Ciência Política, Direito Penal, Direito Civil, Direito Constitucional, Direito Internacional, Teoria Geral do Processo, Direito Processual Civil, Direito Processual Penal, Direito Empresarial, Direito Administrativo, Direito Tributário, Direito Previdenciário, Direito do Consumidor, Responsabilidade Civil, Mediação de Conflito. Que ele ou ela não se engane, garante o professor de Walter Yung, da Cátedra de Direito Civil da Universidade de Geneve, quanto à aprendizagem dessas matérias.

Nenhuma dessas matérias com nomes severos representa dificuldade intransponível. Que comece seus estudos com confiança, com uma firme resolução de trabalhar assiduamente: que ele ou ela escute, leia, aprenda, reflita, analise, participe ativamente dos trabalhos, desenvolva o vocabulário jurídico, domine os conceitos jurídicos (o direito requer uma linguagem própria), compare e conseguirá naturalmente dominar todos os conteúdos, hoje aparentemente terríveis mas que, em cinco anos, se lhe terão tornado familiares.

É necessário que o estudante saiba que todas essas ramificações diferentes não são independentes umas das outras, mas que se unem todas a um tronco comum, que é o Direito.
Seja bem-vindo a Introdução ao Estudo do Direito (IED)! Ao longo do semestre lidaremos com temas considerados fundamentais para o desenvolvimento do raciocínio jurídico. Esses temas, por sua vez, orbitarão permanentemente em torno de uma preocupação fundamental do direito que, muitas vezes, também envolve aspectos problemáticos. Servindo-nos de um neologismo, podemos dizer que essa preocupação está vinculada à decidibilidade de conflito, questão que pode levar ao que designaremos como o problema da decisão jurídica.

Que tipo de desafio, então, propõe a IED? A chave para entender essa matéria é percebê-la, desde logo, como uma introdução às estruturas fundamentais do direito e ao pensamento jurídico. IED levanta, assim, uma pretensão de lidar com assuntos que aparecerão em todas as outras matérias da graduação em direito, mas não com os temas que serão especificamente trabalhados em cada uma delas. O olhar de IED está voltado para aquilo que está por trás das leis e da prática daqueles que produzem e aplicam o direito. Discutiremos, nesse sentido, temas como o que é uma norma, como decisões jurídicas são e deveriam ser tomadas, o que garante o caráter sistemático das normas do direito, o que fazer quando o direito não dá uma resposta imediata para determinado problema, leitura expressiva, estudo de casos hipotéticos ou reais, propriedade, igualdade jurídica, separação dos poderes, como resolver casos, a passagem do mundo dos fatos ao mundo do direito, a estrutura do Poder Judiciário. Alguns dos textos que estudaremos são difíceis. Mesmo assim, seja paciente e perseverante em suas leituras.

Por exemplo, que é o Direito? De modo aproximado, o Direito pode ser conceituado como uma regra de conduta dos homens viventes em uma sociedade organizada, ou, de outro modo, o Direito é um produto da vida social. Atualmente, nenhuma coletividade humana pode subsistir sem o Direito. Há relações jurídicas entre países. A natureza do Direito deriva da natureza do homem em si mesmo. O homem só pode ser sujeito de direito e nunca objeto de direito. O homem é um ser dotado de inteligência e vontade, vivendo em sociedade com seus semelhantes. Dessa dupla constatação decorre, ao mesmo tempo, a possibilidade do Direito e a sua necessidade.

O Direito é possível porque os homens têm a faculdade de se conduzirem, isto é, de discernir onde está seu dever e de dirigir suas ações de maneira a realiza-lo. São capazes de compreender as regras pelas quais estão submetidos ou as que eles próprios adotaram e conforme elas querem viver.

Além disso o Direito é necessário, porque é preciso que a vida em sociedade transcorra em ordem. Se não houvesse o Direito, tudo seria incerto e caótico. Não se saberia como regular as próprias ações, porque não se poderia prever as ações dos outros. Não se poderia saber se o veículo que se aproxima circulará por um lado ou outro lado da rua. Mesmo que todos os homens fossem sensatos e virtuosos, teriam necessidade de regras para dirigir sua vida privada e profissional, para organizar o trabalho nas fábricas, nos escritórios ou nos campos, para fazer funcionar o comércio, os mercados, os hospitais, as escolas.

Sem Direito não se poderia casar nem divorciar, nem ser proprietário, nem comprar, nem vender. O Direito não é reservado a grandes ocasiões. É uma prática cotidiana. O Direito, pois, interessa a cada um de nós, até mesmo para viajar de ônibus, ou para consertar a bicicleta.

O primeiro elemento do Direito é o elemento real ou social. O Direito se refere a uma realidade social, a um dado social. Ele não se basta a si mesmo. Existe em função de uma sociedade a administrar. Ele é especialmente o reflexo do estado de uma sociedade humana. O Direito de um país em dado momento, por exemplo o Direito brasileiro no último quartel do século XX, não está suspenso no ar. Não é obra arbitrária de um legislador. As leis de um país devem corresponder às necessidades sociais, morais e econômicas da coletividade que elas devem gerir.

Há também a questão das fontes do Direito e em nosso sistema, a principal delas é a lei.

“As leis, escreveu Montesquieu, devem ser apropriadas ao povo para o qual foram feitas e seria por acaso que as de uma nação pudessem convir a outra”. Este ponto de vista de Montesquieu, em parte, pode estar antiquado, nos dias de hoje, em relação à Europa. No mundo atual, tende-se a ultrapassar as divisas nacionais e aspira-se a estabelecer uma legislação uniforme, acima das fronteiras dos Estados, em certos domínios do Direito. A Organização das Nações Unidas, a Organização Internacional do Trabalho, o Conselho da América Latina de Livre Comércio, a Comunidade Econômica Europeia e outros organismos ainda se esforçam por organizar as regras jurídicas em vigor. É um objeto que será abordado em diversas matérias da Faculdade e os estudantes poderão opinar sobre a questão.

Como se disse, o Direito é, pois, um produto da vida social. Por isso evolui e se transforma sem cessar, apesar da eternidade de certos de seus princípios. No Brasil há a todo momento leis que estão em processo de revisão diante da Câmara dos Deputados, Senado Federal, Assembleias Legislativas Estaduais, Assembleia Distrital e Câmara de Vereadores. A lei Previdenciária, para tomar um exemplo, foi submetida a várias revisões sucessivas para adaptá-la às novas necessidades. Interroga-se sobre a necessidade ou não de uma revisão total da Constituição Federal de 1988, uma revisão do Código Tributário Nacional, da Lei Eleitoral etc. Uma revisão do Código Civil e do Código de Processo Civil e da CLT foi realizada recentemente. Sem cessar, novas leis tornam-se necessárias pelo progresso da ciência, da tecnologia e das artes. Também se fazem necessárias, de alguns anos para cá, as leis sobre utilização pacífica da energia atômica. A conquista do espaço suscitou a eclosão de um novo ramo do Direito – o Direito Espacial, bem como o advento da internet. O Direito se transforma também sob a impulsão de novas ideias, de aspirações e de novas concepções morais, em particular no domínio social. O avanço de uma sociedade se traduz pelo progresso de suas instituições jurídicas. A maior parte dos grandes problemas políticos que o Brasil tem enfrentado são problemas jurídicos ou que têm uma importância jurídica.

O segundo elemento do Direito é de ordem lógica e formal. O Direito se exprime pela linguagem e as palavras da linguagem representam conceitos, noções. Ele tem uma linguagem própria, como toda ciência, e tal linguagem aparece, às vezes, desagradável e profunda, mas não se deve confundi-la com o “estilo administrativo”; visa a dar aos textos jurídicos a maior precisão possível. O Código Civil brasileiro, como o Código Civil francês, é respeitado pela elegância e concisão de seu estilo. Por esta primeira razão a ciência do Direito tem necessidade de lógica.

Existe uma segunda razão: os conceitos e os princípios que formam a substância do Direito têm entre si relações lógicas de que é preciso conhecer a análise, ligações de inclusão e exclusão, relações de gênero e espécie, de antecedente e consequente etc.

Enfim, a lógica e a precisão da linguagem são necessárias desde que se trata de definir os termos empregados nas leis, contratos, petições ou nos julgamentos. Como se deve definir o furto, o roubo, o estelionato, a fraude, a simulação, o homicídio etc. Da definição dada pode depender a condenação ou a liberdade de um acusado e, por consequência, a liberdade de um cidadão. O que é exatamente um estado, um tratado internacional, um governo, o reconhecimento “de jure” e o reconhecimento “de facto” do qual se fala frequentemente nos jornais? O que é liberdade de imprensa e quais são seus limites? O que é liberdade de expressão e quais são seus limites? O que se chama democracia direta, regime parlamentar, voto presidencial, cidadão, representação proporcional, vulnerabilidade? Todas essas noções e muitas outras devem ser estritamente definidas para serem corretamente aplicadas.

O terceiro elemento do Direito, e não o menos importante, é o elemento ético ou o moral. O Direito, temos dito, tende a realizar a justiça. Enquanto objeto da ciência e de estudo, o Direito é uma parte do bem e do mal. Ele não é uma ciência da natureza que procura conhecer o que é, mas uma ciência da conduta humana, uma ciência social aplicada, uma ciência normativa que procura o que deve ser.

O jurista enuncia julgamentos de existência desde que constate que tal ou tal coisa é prescrita pela lei. Mas sua atividade própria consiste em colocar julgamentos de valor. Ele não diz somente: isto está prescrito, isso é desejável, aquilo é injusto e condenável. A atitude intelectual de um membro do governo ou de deputado que prepara um projeto de lei ou que delibera sobre tal projeto é a procura da solução que lhe pareça a melhor. Tal é a atitude de um Juiz que se pronuncia sobre um litígio entre 2 cônjuges, entre 2 comerciantes ou que estabelece sobre o gênero de pena ou medida a impor a um culpado, do árbitro que define uma contestação entre dois Estados. Esses dois cônjuges, estão eles desunidos a ponto de a vida em comum se ter tornado insuportável? A qual dos cônjuges, agora divorciados, convém conferir a guarda dos filhos? Como deve ser a partilha de eventuais bens entre eles? Portanto, a todo momento o jurista deve apreciar as situações, medir o justo e o injusto. A Ciência jurídica é uma ciência de valores.

Os valores encontram sua expressão nos princípios fundamentais que inspiram a Constituição e as leis que determinam seu sentido. Tais são para o Direito brasileiro a independência do país, a forma democrática do Estado, os direitos e liberdades do cidadão, a proteção da pessoa humana, o respeito da palavra dada, a observação da boa fé nas relações sociais.

Ter-se-á objeção de que este quadro dos valores consagrados pelo Direito brasileiro é muito otimista e contradiz a realidade? Dir-se-á que o Mundo atual apresenta, sobretudo, o espetáculo do egoísmo, da malícia (esperteza), da inveja e da violência, todas coisas que são a negação do Direito e da justiça? É necessário responder que o Direito não é o que é, mas o que deve ser. Ele prescreve as condutas que são necessárias à manutenção da sociedade e à realização da Justiça na medida ou no modo em que os homens são capazes de as observar efetivamente desde que façam um esforço que se pode, razoavelmente, exigir deles. As leis exprimem um ideal, mas um ideal acessível, plausível, factível. Não obstante, elas são frequentemente violadas, porque muitos indivíduos são negligentes, indiferentes ou mal intencionados. É por isso que as leis comportam sanções contra aqueles que não as observam, impondo-lhes multas, prisões, condenação em perdas e danos. É, portanto, falso tachar o Direito de idealista e desconhecedor da realidade. Mas também é totalmente falso acusar as leis de proteger o egoísmo e o embuste. As leis são imperfeitas. Elas procuram, associadas a outras forças sociais, diminuir a soma de injustiças que existem no mundo, mas só o conseguem em pequena parte.
É sobre três aspectos – social, lógico e ético que o jurista deve encarar o Direito. Um jurista com boa formação deve possuir qualidades que correspondem a essas três características. Em primeiro lugar, deve conhecer a sociedade de seu tempo, suas necessidades, suas aspirações, ser sensível ao gozo das influências sociais, à evolução das ideias e dos costumes; em segundo lugar, deve ter ideias claras, raciocinar direito, conduzir seus pensamentos ordenadamente e, finalmente, deve ser animado por um autêntico ideal de justiça.

As qualidades requeridas para exercer com sucesso e dignidade a profissão jurídica não são, pois, só de ordem intelectual, são também de ordem moral. O Direito não é somente uma ciência, é também uma arte, “ars boni et aequi” (a arte do bem e do justo), segundo a definição que já era dada pelos Romanos. A arte do legislador que  edita as leis, aquela do advogado que aconselha um cliente, aquela do Juiz que interpreta e aplica a lei necessita de pureza, de bom senso e de profundo conhecimento do humano.

Tais são as qualidades que deveriam comprovar aqueles que se lançam na luta apaixonante das carreiras jurídicas.
Cada qual traz em si, ao menos em estado latente, essas qualidades. Cada qual pode se esforçar e desenvolvê-las. Cada qual pode se esforçar em seu primeiro aprendizado de jurista no seio da Faculdade de Direito.

Que procuram os estudantes que acabam de atravessar pela primeira vez os portais da Faculdade Direito? Talvez não estejam totalmente conscientes. Não se enganam, entretanto, se esperam ampliar, de uma parte, a cultura humanista que têm recebido no transcorrer de seus estudos anteriores e, de outro lado, os meios de exercer uma profissão, de ganhar a vida e de fazer carreira. Esses dois pontos de vista, mais ou menos indissociáveis em sua mente, devem ser, entretanto, distintos, a fim de assegurar a cada um o lugar que lhe convém no estudo do Direito.

É natural que o estudante sonhe, ao entrar na Faculdade, com a profissão que abraçará mais tarde. É possível que a preocupação com seu futuro o leve a ambições intelectuais. Não se poderia, em todo caso, reprova-lo por preocupar-se desde agora com a carreira que um diploma em Direito lhe poderia oferecer. Os estudos universitários são verdadeiramente a via que conduz à diversas profissões jurídicas. Entretanto, a Faculdade de Direito não é uma escola profissional. Ela não prepara o estudante diretamente ao exercício de uma profissão determinada: a administração, o notariado, a advocacia, o foro, a diplomacia ou a segurança. Ela não poderia. Ela se esforça para dotar os estudantes de conhecimentos fundamentais e de formação geral que são ao mesmo tempo necessários e comuns a todas as profissões jurídicas.

O exercício de uma profissão jurídica, bem como de todas as profissões liberais, deve ser embasado em uma cultura. Não seria senão rotina realizar receitas já prontas. Um jurista, digno desse nome, deve captar o sentido profundo das regras que ele aplica, conhecendo sua origem, finalidade e conteúdo. É, portanto, antes de tudo uma cultura que a Faculdade se esforça em dispensar aos estudantes. Uma cultura é uma soma de conhecimentos científicos, tecnológicos e artísticos, é também um modo de pensar, uma orientação habitual da mente a respeito de certos problemas.
Uma soma de conhecimentos a princípio. Foi dito anteriormente ser o Direito um objeto de ciência, da ciência que estuda as noções e os princípios. Não há cultura sem conhecimento, nem conhecimento sem memória. O estudante tem muito a aprender e ele deverá alojar pouco a pouco um bom número de conhecimento em sua memória. Eles aí se fixarão se ele se dedicar com atenção ao ensinamento que lhe é oferecido e com ele construído, não com interrupções e sobressaltos, mas todo dia, com regularidade. Bem entendido, não se trata de gravar tudo o que deveria saber um jurista consumado, um prático experimentado, mas os conhecimentos de base que lhe permitirão adquirir por ele mesmo, no decorrer de sua carreira, os conhecimentos particulares que lhe serão úteis na profissão escolhida, conforme ensinamentos apregoados pela lógica anteriormente, ou seja, pensar de modo organizado.

Uma cultura é também uma formação da mente. Mais importante, pois, que o saber quantitativo, mesmo limitado aos conhecimentos de base, é a formação da mente, a aquisição de um “espírito jurídico”, de método. A finalidade dos estudos de Direito não é tanto conhecer antecipadamente as dificuldades e respectivas soluções.

A cultura jurídica será o fruto de cinco anos de estudos. No curso superior o estudante receberá exposições sistemáticas; aprenderá quais são as situações sociais que requerem uma regulamentação jurídica e a quais soluções se apegam o legislador e os tribunais no Brasil e nos países estrangeiros.
Nas aulas, palestras e exercícios práticos, o estudante será colocado diretamente em presença de questões teóricas e práticas e aprenderá por quais métodos se deve pesquisar para resolvê-las.

A propósito da cultura, dizíamos ainda que a cultura jurídica deve ser considerada como uma parte da cultura geral. É muito desejável que os estudantes de Direito não negligenciem de perfazer, também, sua cultura em outros domínios segundo suas aptidões e suas preferências. Deve estudar oratória forense, por exemplo. Deve ter em mente que isto tudo é um processo; não tem fim. O estudo deve ser continuado.

Um jurista que não é jurista não pode ser um jurista completo e arrisca-se a ser somente um bom técnico. Ao contrário, se tiver uma vasta cultura, ele captará melhor o conteúdo dos problemas que se lhe propõem, saberá situá-los em seu contexto social e moral e agirá com grande autoridade.

A Faculdade Estácio de Curitiba, desejando boas vindas a todos os  estudantes que confiam a própria formação a seus professores, tem a esperança plausível de que tomarão gosto pela ciência do Direito e que encontrarão no seu estudo as satisfações intelectuais a que têm direito.

Nenhum comentário:

Postar um comentário