domingo, 19 de maio de 2019

FACULDADE ESTÁCIO DE CURITIBA - IED - 2019.1 - ESTUDO DE CASOS I


Objetivo: Não é mostrar quem influenciou quem na história do pensamento e sim convidar os leitores a submeter suas próprias visões sobre justiça ao exame crítico para que compreendam melhor o que pensam e por quê. (Michel J. Sandel - O que é fazer a coisa certa - JUSTIÇA).
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"No verão de 2004, o furacão Charley pôs-se a rugir no Golfo do México e varreu a Flórida até o Oceano Atlântico. A tempestade, que levou 22 vidas e causou prejuízos de 11 bilhões de dólares, deixou também em seu rastro uma discussão sobre preços extorsivos.

Em um posto de gasolina , em Orlando, sacos de gelo de 2 dólares passaram a ser vendidos por 10 dólares. Sem energia para refrigeradores ou ar-condicionado em pleno mês de agosto, verão no hemisfério norte, muitas pessoas não tinham alternativa senão pagar mais pelo gelo. Árvores derrubadas aumentaram a procura por serrotes e consertos de telhados. Prestadores de serviços cobraram 23 mil dólares para tirar duas árvores de um telhado. Lojas que antes vendiam normalmente pequenos geradores domésticos por 250 dólares pediam agora 2 mil dólares. Por uma noite em um quarto de motel que normalmente custaria 40 dólares cobraram 160 a uma mulher de 77 anos que fugia do furacão com o marido idoso e a filha deficiente.

Muitos habitantes da Flórida mostraram-se revoltados com os preços abusivos. "Depois da tempestade vêm os abutres" foi uma das manchetes do USA Today. Um morador, ao saber que deveria pagar 10.500 dólares para remover uma árvore que caíra em seu telhado, disse que era errado que as pessoas "tentassem capitalizar à custa das dificuldades e da miséria dos outros". Charlie Crist, procurador-geral do estado, concordou: "Estou impressionado com o nível de ganância que alguns certamente têm na alma ao se aproveitar de outros que sofrem em consequência de um furacão."

A Flórida tem uma lei contra preços abusivos e, após o furacão, o gabinete do procurador-geral recebeu mais de 200 reclamações. Alguns dos reclamantes ganharam ações judiciais. Uma filial do Days Inn, em West Palm Beach, teve de pagar 70 mil dólares em multas e restituições por cobranças excessivas aos clientes.

Entretanto, quando Crist exigiu o cumprimento da lei sobre preços extorsivos, alguns economistas argumentaram que a lei - e o ultraje público - baseava-se em um equívoco. Nos tempos medievais, filósofos e teólogos acreditavam que a troca de mercadorias deveria ser regida por um "preço justo", determinado pela tradição ou pelo valor intrínseco das coisas. Mas nas sociedades de mercado, observaram os economistas, os preços são fixados de acordo com a oferta e a procura. Não existe o que se denomina "preço justo".

Thomas Sowell, economista partidário do livre mercado, considerou o termo "extorsão" aqui aplicado uma "expressão emocionalmente poderosa porém economicamente sem sentido, à qual a maioria dos economistas não dá atenção, porque vaga demais". Em artigo no Tampa Tribune, Sowell procurou explicar "como 'os preços abusivos' ajudaram os cidadãos da Flórida". As despesas aumentam "quando os preços são significativamente mais altos do que aqueles aos quais as pessoas estão acostumadas", escreveu Sowell. Mas "os níveis de preços aos quais você porventura está acostumado" não são moralmente sacrossantos. Eles não são mais "especiais ou justos" do que outros preços que as condições do mercado - incluindo as provocadas por um furacão - possam acarretar.

Preços mais altos de gelo, água engarrafada, consertos de telhados, geradores e quartos de motel têm a vantagem, argumentou Sowell, de limitar o uso pelos consumidores, aumentando o incentivo para que empresas de locais mais afastados forneçam as mercadorias e os serviços de maior necessidade depois do furacão. Se um saco de gelo alcança 10 dólares quando a Flórida enfrenta no calor de agosto, os fabricantes de gelo considerarão vantajoso produzir e transportar mais. Não há nada injusto nesses preços, explicou Sowell; eles simplesmente refletem o valor que compradores e vendedores resolvem atribuir às coisas quando as compram e vendem.

Jeff Jacoby, comentarista econômico que escreve para o Boston Globe, criticou as leis para preços abusivos de forma semelhança: "Não é extorsão cobrar o que o mercado pode suportar. Não é ganância nem falta de pudor. É assim que mercadorias e serviços são fornecidos em uma sociedade livre." Jacoby reconheceu que "os picos de preços são irritantes, especialmente para alguém cuja vida acaba de ser lançada em um turbilhão por uma tempestade mortal". Mas a ira pública não é justificativa para que se interfira no livre mercado. Por meio de incentivos aos fornecedores para que produzam mais mercadorias necessárias, os preços aparentemente exorbitantes "trazem mais benefícios do que malefícios". Jacoby concluiu: "Infernizar os comerciantes não vai acelerar a recuperação da Flórida. Deixá-los trabalhar vai."

O procurador-geral Crist (um republicano que mais tarde seria eleito governador da Flórida) publicou um texto em um jornal de Tampa defendendo a lei contra o abuso de preços: "Em tempos de emergência, o governo não pode ficar à sombra enquanto são cobrados às pessoas preços inescrupulosos no momento em que elas tentam salvar suas vidas ou procuram as mercadorias básicas para suas famílias depois de um furacão." Crist repudiou a ideia de que esses preços "inescrupulosos" sejam reflexo de um comércio verdadeiramente livre: Não se trata de uma situação normal de livre mercado, na qual pessoas que desejam comprar algo decidem livremente entrar no mercado e encontram pessoas dispostas a vender-lhes o que desejam, na qual um preço obedece à lei da oferta e da procura. Numa situação de emergência, compradores coagidos não têm liberdade. A compra de artigos básicos e a busca de abrigo seguro são algo que lhes é imposto.

A discussão sobre abuso de preços provocada pelo furacão Charley levanta graves questões sobre moral e lei. É errado que vendedores de mercadorias e serviços se aproveitem de um desastre natural, cobrando tanto quanto o mercado possa suportar? Em caso positivo, o que, se é que existe algo, a lei deve fazer a respeito? O Estado deve proibir abuso de preços mesmo que, ao agir assim, interfira na liberdade de compradores e vendedores da maneira que escolherem? 

BEM-ESTAR, LIBERDADE E VIRTUDE

Essas questões não dizem respeito apenas à maneira como os indivíduos devem tratar uns aos outros. Elas também dizem respeito a como a lei deve ser e como a sociedade deve se comportar. São questões sobre justiça. Para responder a elas, precisamos explorar o significado de justiça. Na verdade, já começamos a fazer isso. Se você prestar atenção ao debate, notará que os argumentos a favor das leis relativas ao abuso de preços e contra elas giram em torno de três ideias: aumentar o bem-estar, respeitar a liberdade e promover a virtude. Cada uma dessas ideias aponta para uma forma diferente de pensar sobre justiça.

A defesa usual dos mercados sem restrições baseia-se em duas postulações - uma sobre bem-estar, outra sobre liberdade. Primeiro, os mercados promovem o bem-estar da sociedade como um todo por meio de incentivos para que as pessoas se esforcem a fim de fornecer as mercadorias que as outras desejam. (No dizer comum, frequentemente equiparamos o bem-estar à prosperidade econômica, embora bem-estar seja um conceito mais amplo, que pode incluir aspectos não econômicos do bem-estar social.) Em segundo lugar, os mercados respeitam a liberdade individual; em vez de impor um determinado valor às mercadorias e serviços, deixam que as pessoas escolham por si mesmas que valor atribuir ao que compram e vendem.

Não é de surpreender que os opositores das leis contra abuso de preços invoquem esses dois argumentos usuais na defesa do livre mercado. Como os partidários das leis contra abuso de preços respondem? Em primeiro lugar, argumentam que o bem-estar da sociedade como um todo não é realmente favorecido pelos preços exorbitantes cobrados em momentos difíceis. Mesmo que os preços altos originem um maior fornecimento de mercadorias, esse benefício deve ser confrontado com a sobrecarga que tais preços impõem àqueles com menor potencial para adquirir os bens. Para os abastados, os preços inflacionados de um galão de gasolina ou um quarto de motel durante uma tempestade podem ser um aborrecimento a mais; mas, para aqueles com posses mais modestas, tais preços constituem uma dificuldade real, que pode levá-los a permanecer em locais perigosos em vez de buscar segurança. Os defensores das leis contra o abuso de preços argumentam que qualquer estimativa do bem-estar geral deve considerar a dor e o sofrimento daqueles que são obrigados a pagar mais por suas necessidades básicas durante uma emergência.

Em segundo lugar, os defensores das leis contra o abuso de preços sustentam que, em determinadas condições, o mercado livre não é verdadeiramente livre. Como diz Crist, "compradores sob coação não têm liberdade. Suas compras de artigos para suprir necessidades básicas, assim como a busca por abrigo seguro, são algo que lhes é imposto pela necessidade". Se você estiver fugindo de um furacão com a família, o preço exorbitante que paga pela gasolina ou por um abrigo não é realmente uma transação voluntária. É algo mais próximo da extorsão. Assim, para decidir se as leis de preços abusivos se justificam, precisamos avaliar essas relações entre bem-estar e liberdade.

Entretanto, precisamos também considerar outro argumento. Grande parte do apoio público às leis contra o abuso de preços vem de algo mais visceral do que bem-estar e liberdade. As pessoas se revoltam com "abutres" que se aproveitam do desespero alheio, e querem puni-los - e não recompensá-los com lucros inesperados. Tais sentimentos são muitas vezes descartados como emoções rancorosas que não devem interferir na política pública ou na lei. Como escreve Jacoby, "demonizar os vendedores não vai acelerar a recuperação da Flórida".

O ultraje ante o abuso de preços, no entanto, é mais do que uma raiva insensata. Ele põe em questão um argumento moral que deve ser levado a sério. O ultraje é o tipo específico de raiva que você sente quando acredita que as pessoas estão conseguindo algo que não merecem. Esse tipo de ultraje é a raiva causada pela injustiça.

Crist abordou a origem moral do ultraje ao descrever a "ganância que uma pessoa certamente tem na alma quando quer obter vantagem de alguém que sofre no rastro de um furacão". Ele não fez a ligação explícita dessa observação com as leis contra o abuso de preços. Mas existe algo implícito em seu comentário, como o seguinte argumento, que pode ser chamado de argumento da virtude: a ganância é um defeito moral, um modo mau de ser, especialmente quando torna as pessoas indiferentes ao sofrimento alheio. Mais do que um defeito pessoal, ela se contrapõe à virtude cívica.

Em tempos de dificuldades, uma boa sociedade se mantém unida. Em vez de fazer pressão para obter mais vantagens, as pessoas tentam se ajudar mutuamente. Uma sociedade na qual os vizinhos são explorados para a obtenção de lucros financeiros em tempos de crise não é uma sociedade boa. A ganância excessiva é, portanto, um vício que a boa sociedade deve procurar desencorajar, na medida do possível. As leis do abuso de preços podem não por fim à ganância, mas podem ao menos restringir sua expressão descarada e demonstrar o descontentamento da sociedade. Punindo o comportamento ganancioso ao invés de recompensá-lo, a sociedade afirma a virtude cívica do sacrifício compartilhado em prol do bem comum.

Reconhecer a força moral do argumento da virtude não é insistir no fato de que ele deva sempre prevalecer sobre as demais considerações. Você poderia concluir, em alguns casos, que uma comunidade atingida por um furacão deveria fazer um pacto com o diabo - permitir o abuso de preços na esperança de atrair de regiões distantes um exército de prestadores de serviços para consertar telhados, mesmo ao custo moral de sancionar a ganância. A prioridade é consertar telhados; as considerações de natureza social ficam para depois. O que se deve notar, entretanto, é que o debate sobre as leis contra o abuso de preços não é simplesmente um debate sobre bem-estar e liberdade. Ele também aborda a virtude - o incentivo a atitudes e disposições, a qualidades de caráter das quais depende uma boa sociedade.

Algumas pessoas, entre elas muitas que apoiam as leis contra o abuso de preços, consideram frustrante o argumento da virtude. A razão: ele parece depender mais de julgamento de valores do que os argumentos que apelam para o bem-estar e a liberdade. Perguntar se uma diretriz vai acelerar a recuperação econômica ou travar o crescimento econômico não envolve o julgamento das preferências populares. Parte-se do pressuposto de que todos preferem mais rendimentos a menos, e não se julga como cada um gasta seu dinheiro. Da mesma forma, perguntar se em condições adversas as pessoas são realmente livres para escolher não requer que se avalie suas escolhas. A questão é se, ou até ponto, as pessoas estão livres em vez de coagidas.

A discussão sobre a virtude, em contrapartida, apoia-se na permissão de que a ganância é uma falha moral que o Estado deveria desencorajar. Mas quem deve julgar o que é virtude e o que é vício? Os cidadãos das diversas sociedades não discordam quanto a essas coisas? E não é perigoso impor julgamentos sobre a virtude por meio da lei? Em face desses temores, muitas pessoas sustentam que o governo deveria ser neutro no que diz respeito a virtude e vício; não lhe cabe tentar cultivar as boas atitudes ou desencorajar as más.

Assim, quando examinamos nossas reações ao abuso de preços, vemo-nos forçado em duas direções: sentimo-nos ultrajados quando as pessoas conseguem coisas que não merecem; a ganância predadora da miséria humana, no nosso entender, deveria ser punida, e não premiada. Apesar disso, ficamos preocupados quando os julgamentos sobre virtude são levados para o caminho da lei.

Esse dilema aponta para uma das grandes questões da filosofia política: Uma sociedade justa procura promover a virtude de seus cidadãos? Ou a lei deveria ser neutra quanto às concepções concernentes à virtude, deixando os cidadãos livres para escolher, por conta própria, a melhor forma de viver?

Segundo uma ideia comumente aceita, essa questão divide o pensamento político em antigo e moderno. Em um sentido importante, essa ideia está correta. Aristóteles ensina que a justiça significa dar às pessoas o que elas merecem. E para determinar quem merece o quê, devemos estabelecer quais virtudes são dignas de honra e recompensa. Aristóteles sustenta que não podemos imaginar o que é uma Constituição justa sem antes refletir sobre a forma de vida mais desejável. Para ele, a lei não pode ser neutra no que tange à qualidade de vida.

Em contrapartida, filósofos políticos modernos - de Immanuel Kant, no século XVIII, a John Rawls, no século XX - afirmam que os princípios de justiça que definem nossos direitos não devem basear-se em nenhuma concepção particular de virtude ou da melhor forma de vida. Ao contrário, uma sociedade justa respeita a liberdade de cada indivíduo para escolher a própria concepção do que seja uma vida boa. 

Pode-se então dizer que as teorias de justiça antigas partem da virtude, enquanto as modernas começam pela liberdade. Entretanto, vale notar desde o início que essa contraposição pode levar a conclusões equivocadas.

Se voltarmos nosso olhar para os argumentos sobre justiça que animam as diretrizes contemporâneas - não entre filósofos, mas entre homens e mulheres comuns - encontraremos um quadro mais complicado. É verdade que a maior parte das nossas discussões é sobre como promover a prosperidade e respeitar a liberdade individual, pelo menos superficialmente. Entretanto, na base mesma desses argumentos, e por vezes se opondo a eles, podemos muitas vezes vislumbrar outro grupo de convicções - sobre quais virtudes são merecedoras de honras e recompensas e que modo de viver de ser promovido por uma boa sociedade. Apesar de sermos devotados à prosperidade a à liberdade, não podemos absolutamente desconsiderar a natureza judiciosa da justiça. É profunda a convicção de que justiça envolve virtude e escolha: meditar sobre a justiça parece levar-nos inevitavelmente e meditar sobre a melhor maneira de viver.

TRÊS ABORDAGENS DA JUSTIÇA

Para saber se uma sociedade é justa, basta perguntar como ela distribui as coisas que valoriza - renda e riqueza, deveres e direitos, poderes e oportunidades, cargos e honrarias. Um sociedade justa distribui esses bens da maneira correta; ela dá a cada indivíduo o que lhe é devido. As perguntas difíceis começam quando indagamos o que é devido às pessoas e por quê. Já começamos a ter dificuldades com essas questões. Já identificamos três maneiras de abordar a distribuição de bens: a que leva em consideração o bem-estar, a que aborda a questão pela perspectiva da liberdade e a que se baseia na virtude. Cada um desses ideais sugere uma forma diferente de pensar sobre a justiça. Vamos explorar os pontos fortes e fracos dessas três maneiras de pensar sobre a justiça.

Chaim Perelman (Ética e Direito) aborda, pelo menos, seis noções a saber: 1ª). A cada qual a mesma coisa. Segundo essa concepção, todos os seres considerados devem ser tratados da mesma forma, sem levar em conta nenhuma das particularidades que os distinguem. Seja jovem ou velho, doente ou saudável, rico ou pobre, virtuoso ou criminoso, nobre ou rústico, branco ou negro, culpado ou inocente, é justo que todos sejam tratados da mesma forma, sem discriminação alguma, sem discernimento algum. No imaginário popular, o ser perfeitamente justo é a morte que vem atingir a todos os homens, sem levar em consideração nenhum de seus privilégios; 2ª). A cada qual segundo seus méritos. Eis uma concepção da justiça que já não exige igualdade de todos, mas um tratamento proporcional a uma qualidade intrínseca, ao mérito da pessoa humana. Como definir esse mérito? Qual medida comum encontrar entre os méritos e deméritos de diferentes seres? Haverá, em geral, semelhante medida comum? Quais serão os critérios que se devem levar em conta para a determinação desse mérito? Cumprirá levar em conta o resultado da ação, a intenção, o sacrifício realizado, e em que medida? Habitualmente, não só não respondemos a todas essas perguntas, mas nem sequer as formulamos. Se estamos embaraçados, dizemo-nos que será depois da morte que os seres serão tratados segundo seus méritos, que se determinará, com a ajuda de uma balança, seu "peso" de mérito e de demérito e que o resultado dessa "pesagem" indicará, por assim dizer automaticamente, a sorte que lhes será reservada. A vida do além, o paraíso e o inferno, constituem a justa recompensa ou o justo castigo da vida terrestre. Apenas o valor moral intrínseco do indivíduo será o critério do juiz, cego a todas as outras considerações; 3ª). A cada qual segundo suas obras. Essa concepção da justiça tampouco requer um tratamento igual, mas um tratamento proporcional. Só que o critério já não é moral, pois já não leva em conta a intenção, nem os sacrifícios realizados, mas unicamente o resultado da ação. O critério, ao abandonar as exigências relativas ao agente, satisfaz-nos menos do ponto de vista moral, mas se torna de uma aplicação infinitamente mais fácil e, em vez de constituir um ideal quase irrealizável, essa fórmula da justiça permite só levar em conta, o mais das vezes, elementos sujeitos ao cálculo, ao peso ou à medida. É nessa concepção, que aliás admite muitas variantes, que se inspira o pagamento do salário dos operários, por hora ou por peça, que se inspiram os exames e os concursos em que, sem se preocupar com o esforço fornecido, levam-se em conta apenas o resultado, a resposta do candidato, o trabalho que apresentou; 4ª). A cada qual segundo suas necessidades. Essa fórmula da justiça, em vez de levar em conta méritos do homem ou de sua produção, tenta sobretudo diminuir os sofrimentos que resultam da impossibilidade em que ele se encontra de satisfazer suas necessidades essenciais. É nisso que que essa fórmula da justiça se aproxima mais de nossa concepção de caridade. É óbvio que, para ser socialmente aplicável, essa fórmula deve basear-se em critérios formais das necessidades de cada qual, pois as divergências entre tais critérios ocasionam diversas variantes dessa fórmula. Assim, levar-se-á em conta um mínimo vital que cumprirá assegurar a cada homem, seus encargos familiares, sua saúde mais ou menos precária, os cuidados requeridos por sua pouca idade ou por sua velhice etc. Foi essa fórmula da justiça que, impondo-se cada vez mais na legislação social contemporânea, pôs em xeque a economia liberal em que o trabalho, assimilado a uma mercadoria, estava sujeito às flutuações resultantes da lei da oferta e da procura. A proteção do trabalho e do trabalhador, todas as leis sobre o salário mínimo, a limitação das horas de trabalho, o seguro desemprego, doença e velhice, o salário-família etc., inspiraram-se no desejo de assegurar a cada ser humano a possibilidade de satisfazer suas necessidades mais essenciais; 5ª). A cada qual segundo sua posição. Eis uma fórmula aristocrática da justiça. Consiste ela em tratar os seres não conforme critérios intrínsecos ao indivíduo, mas conforme pertença a uma ou outra determinada categoria de seres. As mesmas regras de justiça não se aplicam a seres pertencentes a categorias por demais diferentes. Assim é que a fórmula "a cada qual segundo sua posição" difere das outras fórmulas da justiça no fato de ela, em vez de ser universalista, repartir os homens em categorias diversas que serão tratadas de forma diferente. Na Antiguidade reservava-se um tratamento diferente aos indígenas e aos estrangeiros, aos homens livres e aos escravos; no início da Idade Média, trataram-se diferentemente os senhores francos e os autóctones galo-romanos; mais tarde, distinguiram-se os nobres, os burgueses, os cléricos e os servos ligados à gleba. Atualmente, trata-se de forma diferente, nas colônias, os brancos e os negros; no exército há regulamentos diferentes para os oficiais, os suboficiais e os soldados. Conhecem-se distinções baseadas nos critérios de raça, de religião, de fortuna, etc. O caráter que serve de critério é de natureza social e, a maior parte do tempo, hereditário, portando, independente da vontade do indivíduo. Se consideramos essa fórmula da justiça aristocrática é porque é sempre preconizada e energicamente defendida pelos beneficiários dessa concepção, que exigem ou impõem um tratamento diferente para as categorias de seres por eles apresentadas como superiores. E tal reivindicação é habitualmente apoiada pela força conferida quer pelas armas, quer pelo fato de ser uma maioria defrontada com uma minoria sem defesa; 6ª). A cada qual segundo o que a lei lhe atribui. Está fórmula é a paráfrase do célebre "cuique suum" dos romanos. Se ser justo é é atribuir a cada qual o que lhe cabe, cumpre, para evitar um círculo vicioso, poder determinar o que cabe a cada homem. Se atribuímos à expressão "o que cabe a cada homem" um sentido jurídico, chegamos à conclusão de que ser justo é conceder a cada ser o que a lei lhe atribui. Essa concepção nos permite dizer que um juiz é justo, ou seja, íntegro, quando aplica às mesmas situações as mesmas leis. Ser justo é aplicar as leis do país. Tal concepção da justiça, contrariamente a todas as precedentes, não se arvora em juiz do direito positivo, mas se contenta em aplicá-lo. É evidente que essa fórmula admite em sua aplicação tantas variantes quantas legislações diferentes houver. Cada sistema de direito admite uma justiça relativa a esse direito. O que pode ser justo numa legislação, pode não o ser numa legislação diferente: com efeito, ser justo é aplicar, ser injusto é distorcer, em sua aplicação, as regras de um determinado sistema jurídico. E. Dupréel opõe essa concepção a todas as outras. Qualifica-a de "justiça estática", por ser baseada na manutenção da ordem estabelecida, e lhe opõe todas as outras consideradas como as formas da "justiça dinâmica", por poderem trazer a modificação dessa ordem, das regras que a determinam. "Fator de transformação, a justiça dinâmica se mostra um instrumento do espírito reformador ou progressista, como ele se autodenomina. A justiça estática, propriamente conservadora, é fator de fixidez. 

A análise sumária das concepções mais correntes da noção de justiça mostrou-nos a existência de pelo menos seis fórmulas da justiça - admitindo a maioria delas ainda numerosas variantes -, fórmulas que são normalmente inconciliáveis. Embora seja verdade que, graças a interpretações mais ou menos forçadas, a afirmações mais ou menos arbitrárias, se pode querer relacionar essas diferentes fórmulas umas com as outras, elas não deixam de apresentar aspectos da justiça muito distintos e o mais das vezes opostos. Ante tal estado de coisas, três atitudes permanecem possíveis. A primeira consistiria em declarar que essas diversas  concepções da justiça não têm absolutamente nada em comum, que é abusivamente que as qualificam da mesma forma criando uma confusão irremediável, que a única análise possível consistiria na distinção desses diferentes sentidos, admitindo ao mesmo tempo que não são unidos por nenhum vínculo conceitual. Se assim for, seremos levados, para evitar qualquer mal-entendido, a qualificar de forma diferente cada uma dessas seis concepções. Ou não reservaremos o nome de justiça a nenhuma delas, ou então consideraremos uma delas como a única que possamos qualificar de justa. Esta última forma de proceder nos conduziria, por um rodeio, à segunda atitude. Esta consiste na escolha, entre as diversas formas de justiça, de uma só, da qual tentariam convencer-nos que é única admissível. a única verdadeira, a única real e profundamente justa. Ora, é exatamente essa forma de raciocinar que queríamos evitar a todo custo, é contra ela que prevenimos o leitor. às razões que teríamos de escolher uma fórmula, os contraditores oporiam razões tão válidas quanto elas para escolher outra: o debate, em vez de levar ao acordo das mentes, só serviria para atritá-las de um modo ainda mais violento, porque cada um defenderia com mais energia a sua própria concepção; de todo modo, a análise da noção de justiça não teria avançado muito mais com isso. É por esse motivo que damos nossa preferência à terceira atitude, que se imporia a delicadíssima tarefa de pesquisar o que há em comum entre as diferentes concepções da justiça que se poderiam formular; ou, pelo menos, - para não nos impormos a irrealizável condição de pesquisar o elemento comum a uma profusão infinita de concepções diferentes - buscaríamos o que há em comum entre as concepções da justiça mais correntes, que são as que distinguimos aqui.

DILEMAS MORAIS

A vida em sociedades democráticas é cheia de divergências entre o certo e o errado, entre justiça e injustiça. Algumas pessoas defendem o direito ao aborto, outras o consideram um crime. Algumas acreditam que a justiça requer que o rico seja taxado para ajudar o pobre, enquanto outras acham que não é justo cobrar taxas sobre o dinheiro recebido por alguém como resultado do próprio esforço (IR). Algumas defendem o sistema de cotas na admissão ao ensino superior como uma forma de remediar erros do passado, enquanto outras consideram esse sistema uma forma injusta de discriminação invertida contra as pessoas que merecem ser admitidas pelos próprios méritos. 

Algumas rejeitam a tortura de suspeitos de terrorismo por a considerarem um ato moralmente abominável e indigno de uma sociedade livre, enquanto outras a defendem como um recurso extremo para evitar futuros ataques. Eleições são vencidas e perdidas com base nessas divergências. As chamadas guerras culturais são combatidas por esses princípios. Dadas a paixão e a intensidade com as quais debatemos as questões morais na vida pública, podem ficar tentados a pensar que nossas convicções morais estão fixadas para sempre, pela maneira como fomos criados ou devido a nossas crenças, além do alcance da razão. Entretanto, se isso fosse verdadeiro, a persuasão moral seria inconcebível e o que consideramos ser um debate público sobre justiça e direitos não passaria de uma saraivada de afirmações dogmáticas em uma inútil disputa ideológica. Quando exibe sua pior face, nossa política se aproxima dessa condição. Mas não precisa ser assim. Às vezes uma discussão pode mudar nossa opinião. Como, então, podemos raciocinar claramente no disputado terreno da justiça e da injustiça, da igualdade e da desigualdade, dos direitos individuais e do bem comum? Uma das maneiras de começar é observando como a reflexão moral aflora naturalmente quando nos vemos diante de uma difícil questão de natureza moral. Começamos com uma opinião, ou convicção, sobre a coisa certa a fazer. Então, refletimos sobre a razão da nossa convicção e procuramos o princípio no qual ela se baseia. Diante de uma situação que põe em questão esse princípio, ficamos confusos. 

Sentir a força dessa confusão e a pressão para resolvê-la é o que nos impulsiona a filosofar. Expostos a tal tensão, podemos rever nossa opinião sobre a coisa certa a fazer ou repensar o princípio que inicialmente abraçávamos. Ao nos depararmos com novas situações, recuamos e avançamos em nossas opiniões e nossos princípios, revisando cada um deles à luz dos demais. Essa mudança no nosso modo de pensar, indo e vindo do mundo da ação para o mundo da razão, é no que consiste a reflexão moral. Essa forma de conceber a discussão moral, como uma dialética entre nossas opiniões sobre determinadas situações e os princípios que afirmamos ao refletir, tem uma longa tradição. Ela remonta aos diálogos de Sócrates e à filosofia moral de Aristóteles. Entretanto, não obstante sua origem tão antiga, ela está aberta ao seguinte desafio: Se a reflexão moral consiste em harmonizar os julgamentos que fazemos com os princípios que afirmamos, como pode tal reflexão nos levar à justiça ou à verdade moral? Mesmo se conseguíssemos, durante toda a vida, alinhar nossas intuições morais e os princípios que fundamentam nossa conduta, como poderíamos confiar no fato de que o resultado seria algo mais do que um amontoado de preconceitos com coerência interna? A resposta é que a reflexão moral não é uma busca individual, e sim coletiva. Ela requer um interlocutor - um amigo, um vizinho, um camarada, um compatriota. Às vezes o interlocutor pode ser imaginário, como quando discutimos com nossa consciência. Mas não podemos descobrir o significado da justiça ou a melhor maneira de viver apenas por meio da introspecção. Na República, de Platão, Sócrates compara os cidadãos comuns a um grupo de prisioneiros confinados numa caverna. Tudo que veem é o movimento das sombras na parede, um reflexo de objetos que não podem apreender. Apenas o filósofo, nesse relato, pode sair da caverna para a luz do dia, sob a qual vê as coisas como realmente são. Sócrates sugere que, tendo vislumbrado o sol, apenas o filósofo é capaz de governar os habitantes da caverna, se ele, de alguma forma, puder ser induzido a voltar para a escuridão onde vivem. Na opinião de Platão, para captar o sentido de justiça e da natureza de uma vida boa, precisamos nos posicionar acima dos preconceitos e das rotinas do dia a dia. Ele está certo, creio, mas apenas em parte. Os clamores dos que ficam na caverna devem ser levados em consideração. Ss a reflexão moral é dialética - se avança e recua entre os julgamentos que fazemos em situações concretas e os princípios que guiam esses julgamentos - necessita de opiniões e convicções, ainda que parciais e não instruídas, como ponto de partida. A filosofia que não tem contato com as sombras na parede só poderá produzir uma utopia estéril. Quando a reflexão moral se torna política, quando pergunta que leis devem governar nossa vida coletiva, precisa ter alguma ligação com o tumulto da cidade, com as questões e os incidentes que perturbam a mente pública. Debates sobre desigualdade de renda e sistemas de cotas, preços extorsivos, serviço militar e casamente entre pessoas do mesmo sexo, aborto etc., são o que sustenta a filosofia política. Eles nos estimulam a articular e justificar nossas convicções morais e políticas, não apenas no meio familiar ou entre amigos, mas também na exigente companhia de nossos compatriotas. Mais exigente ainda é a companhia de filósofos políticos, antigos e modernos, que discorrem, às vezes de forma radical e surpreendente, sobre as ideias que animam a vida cívica - justiça e direitos, obrigação e consenso, honra e virtude, moral e lei. Aristóteles, Immanuel Kant, John Stuart Mill e John Rawls figuram, todos eles, nesse domínio e com eles o diálogo é produtivo.

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