sábado, 30 de março de 2019

Faculdade Estácio de Curitiba - IED - 2019.1

UMA ORDEM IMAGINADA (MITO)

1) Em 1776 a.C., a Babilônia era a maior cidade do mundo. O mais famoso rei da Babilônia foi Hamurabi. Ele instituiu o Código de Hamurabi, que depois de listar seus julgamentos, expressa: "Essas são as justas leis que Hamurabi, o rei sábio, estabeleceu e, por meio delas, conduziu a terra no caminho da verdade e da retidão [...] eu sou Hamurabi, rei nobre. Não me eximi da minha responsabilidade para com a humanidade, entregue a meus cuidados pelo rei Enlil, e de cuja condução deus Marduk me encarregou."

1.1) O Código de Hamurabi afirma que a ordem social babilônica tem origem em princípios universais e eternos de justiça ditados pelos deuses. O princípio de hierarquia é de suma importância. As futuras gerações prestaram atenção nele.

2) A Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), afirma: "Consideramos estas verdades evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais,  que são dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura de felicidade."

2.1) Como o Código de Hamurabi, o documento fundacional norte-americano promete que, se os humanos agirem de acordo com seus princípios sagrados, milhões deles serão capazes de cooperar de maneira eficaz, vivendo em paz e segurança em uma sociedade justa e próspera. Tanto um como outro, foram documentos de seu tempo e lugar. Os dois textos nos apresentam um dilema óbvio. Tanto o Código de Hamurabi quanto a Declaração de Independência dos Estados Unidos afirmam definir princípios universais e eternos de justiça, mas de acordo com os norte-americanos todas as pessoas são iguais e conforme os babilônios as pessoas são decididamente desiguais. Em que sentido todos os humanos são iguais uns aos outros? Para a biologia, as pessoas não foram "criadas"; elas evoluíram. E certamente não evoluíram para ser "iguais". A ideia de igualdade está intrinsecamente ligada à ideia de criação. A evolução se baseia na diferença, e não na igualdade. Cada pessoa carrega um código genético um pouco diferente e é exposta, desde o nascimento, a diferentes influências ambientais. Isso leva ao desenvolvimento de diferentes qualidades que carregam consigo diferentes chances de sobrevivência. Portanto, "são criados iguais" deveria ser traduzido como "evoluíram de forma diferente". Não existem direitos na biologia. Há apenas órgãos, habilidades e características.

3) A Constituição Brasileira (1988), em seu preâmbulo, expressa: "Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assmbleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das constrovérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL."; " Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distro Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."

3.1) Para CELSO RIBEIRO BASTOS, os preâmbulos têm a função de "facilitar o processo de absorção da Constituição pela comunidade. São palavras pelas quais o constituinte procura fincar a legitimidade do Texto. É um retrato da situação de um momento, o da promulgação da Constituição". Quanto a ser o preâmbulo parte da Constituição, responde o constitucionalista pátrio, sob o ponto de vista normativo e preceptivo, que a resposta somente pode ser negativa, pois, os "dizeres dele constantes não são dotados de força coercitiva". 

O magistério de RIBEIRO BASTOS é no sentido de afirmar que, inobstante, não sendo ato juridicamente irrelevante, tem função auxiliar de interpretação do Texto Constitucional, mas não se pode querer fazer prevalecer um preceito normativo do que dele consta, sobre o que compõe o articulado. O Preâmbulo da Constituição de 1988, nas palavras do autos, quer significar o seguinte: "compõe-se de duas partes: a primeira destinada a firmar a legitimidade formal, e a segunda, por sua vez, é como que compensatória da magreza e do esqueletismo da primeira, elencando objetivos a serem perseguidos pelo Estado brasileiro". 

A conclusão irrefutável é a de que RIBEIRO BASTOS coloca a redação do Preâmbulo da Constituição, como palavras e expressões redundantes, na medida em que são repetidas nos dispositivos constitucionais. Firma sua doutrina pela não força normativa dos preâmbulos constitucionais. Com a devida vênia, pode-se dizer que se trata de doutrina não aconselhável para uma iniciação ao estudo do direito material, pois, com tal posicionamento não recepciona os direitos individuais e fundamentais clássicos existentes no preâmbulo, nem tão pouco reconhece a materialidade dos modernos direitos sociais de caráter coletivo e difuso, ou supra-individual.

O pensamento de MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO reside na premissa da atribuição de uma ausência de força obrigatória do preâmbulo da Constituição Federal de 1988, pois, entende que se trata de um texto destinado a realizar uma indicação dos planos, objetivos e intenções do constituinte. Num estudo constitucional comparativo leciona que, "é inaplicável ao caso brasileiro a doutrina e a jurisprudência francesas que dão força obrigatória ao preâmbulo da Constituição de 1946 e ao da Constituição de 1958. Com efeito, o preâmbulo da Constituição de 1946, em especial, continha normas precisas e não meros princípios. Em conseqüência se podia entender, como se entendeu, que ele traduzisse normas obrigatórias". FERREIRA FILHO esboça a idéia de que o preâmbulo expressa, simplesmente, uma série de afirmações de princípios, que representam e devem ser assim interpretados como um ideal, e não como normas jurídico-constitucionais de aplicação e exigibilidade imediatas.

Na doutrina de JOSÉ CRETELLA JÚNIOR identifica-se um desprezo taxativo pela discussão envolve o preâmbulo constitucional, restringe-se a dissertar sobre a tradicional divisão doutrinária existente quanto a eficácia, o valor, ou a incidência das expressões jurídico-vocabulares lançadas pelos constituintes no preâmbulo. CRETELLA JÚNIOR conforma-se em lecionar que, "dividem-se as colocações em dois grupos distintos, o primeiro, acentuando a importância do Preâmbulo, ressaltando-lhe a relação com dispositivos do texto; o segundo, procurando minimizar a relação entre a peça vestibular e o próprio texto articulado. Na interpretação dos dispositivos constitucionais subseqüentes, os dizeres do Preâmbulo, se for o caso, se esclarecerem ou completarem o texto, devem ser levados em conta, para efeito de interpretação. Como o Preâmbulo é elemento integrante da Constituição, assim que promulgada, não há a menor dúvida de que a ele se deve recorrer, quando surgem problemas de hermenêutica, desde que, nessa peça vestibular ou introdutória, haja princípios que se relacionem de modo direto ou indireto com os dispositivos constitucionais questionados". 
Analisando os direitos: brasileiro e francês, o pensador das Arcadas expressa o entendimento de que na França a discussão tem sua relevância. Mas, no Brasil entende ser a discussão de uma inutilidade atroz. O autor disserta que, "na França, a discussão é importante, porque, por exemplo, nas Constituições de 1946 e 1958, os Preâmbulos, longos, se fundamentam nos princípios das Declarações de Direitos, mas, no Brasil, em que os Preâmbulos equivalem às invocações das epopéias clássicas ("E vós, Tágides minhas, dai-me ..."), não tendo relações com o texto, a não ser acidentais, qualquer polêmica será estéril e acadêmica".  Trata-se de uma doutrina de visão jurídico-material finita e limitada, não compreendendo o momento histórico do Direito como Ciência, e não apenas como sistema de normas. Não consegue enxergar a necessidade irrenunciável do Direito como instrumento provocador da realização sócio-material para os decênios.

Extremamente difícil é realizar uma afirmação quanto ao posicionamento doutrinário de PONTES DE MIRANDA, apesar do pensador alagoano examinar cada expressão usada no preâmbulo da Constituição de 1946, restringe-se a afirmar que eles têm o papel de dizer alguma coisa acerca de "qual o poder estatal, isto é, o poder de construir e reconstruir o Estado". Advertindo, porém, que, ainda quando os preceitos constitucionais aprofundem os traços gerais lançados no preâmbulo, "isso de modo nenhum autoriza a que se ponham de lado, na interpretação dos textos constitucionais, os dizeres do Preâmbulo. Todo Preâmbulo anuncia; não precisa anunciar tudo, nem, anunciando, restringe".  A mesma constatação pode se obter nos comentários à Constituição de 1967. 

Na lição de JOSÉ AFONSO DA SILVA, as normas do Preâmbulo da Constituição – assim como as das disposições transitórias –, são classificadas quanto a sua eficácia, como normas de aplicabilidade da Constituição. Chega, até mesmo, a fazer referência (CARL FRIEDRICH, CARL SCHMITT, VEDEL, GARCIA-PALAYO) às posições a favor da força normativa do preâmbulo constitucional. Para AFONSO DA SILVA, os preâmbulos constitucionais valem como orientação para a interpretação e aplicação das normas constitucionais. Leciona o autor que, "têm, pois, eficácia interpretativa e integrativa; mas, se matem uma declaração de direitos políticos e sociais do homem, valem como regra de princípio programático, pelo menos, sendo que a jurisprudência francesa, como anota LIET-VEAUX, lhes dá valor de lei, uma espécie de lei supletiva". 

O entendimento doutrinário esboçado por DALMO DE ABREU DALLARI acerca do preâmbulo constitucional, quando menciona que é objetivo assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, é no sentido de que "é muito importante notar que o Preâmbulo fala em assegurar o exercício dos direitos, o que tem significação mais concreta do que uma simples declaração dos direitos, sem preocupação com seu exercício". Portanto, define na sua doutrina humanista o ilustre professor das Arcadas que, "o Preâmbulo da atual Constituição brasileira é bem adequado a uma Constituição democrática, segundo as modernas concepções. Ele ressalta que a Constituição foi elaborada por processo democrático, mas acrescenta que a Constituição é um instrumento para a consecução de objetivos fundamentais da pessoa humana e de toda a Humanidade. Um dado final que tem grande importância é que na obra de vários constitucionalistas brasileiros contemporâneos, assim como na jurisprudência, já é referido o Preâmbulo como norma constitucional, de eficácia jurídica plena e condicionante da interpretação e da aplicação das normas constitucionais e de todas as normas que integram o sistema jurídico brasileiro". 

Já na doutrina de MAURÍCIO ANTONIO RIBEIRO LOPES  constata-se que estão consagrados no Preâmbulo da Constituição de 1988, diversos valores fundamentais ou superiores da Constituição. Valores fundamentais estes que não podem ser interpretados como palavras e expressões redundantes, ou vazias, ou mesmo como normas constitucionais programáticas que nunca se realizam. Caso assim fossem, poder-se-iam chamar-se taxativamente de normas programáticas para um futuro inatingível. A lição do representante das Arcadas é no sentido de que o preâmbulo tem natureza jurídica e exigibilidade imediata, detentor de força normativa, norma constitucional exeqüível em si mesma.
A síntese que se pode realizar do ensinamento de RIBEIRO LOPES pode ser assim esboçada numa citação contundente quando afirma que, "os valores incorporados pela Constituição a seu contexto têm, é evidente, a natureza de valores políticos. Políticos na sua proveniência e que se objetivando em normas passaram a ser jurídicos e como tal exigíveis, pois trazem as propriedades de validez e eficácia inerentes a estas. A circunstância de se situarem no plano constitucional – o plano mais elevado do ordenamento jurídico –, que é a sua sede logicamente adequada, impõe a conseqüência da exigibilidade imediata. Não há, por isso, possibilidade lógico-jurídica de fazer depender os seus efeitos de normas de integração como se sustenta às vezes, ora na doutrina, ora no campo da jurisprudência dos tribunais". 

4) Os pássaros voam não porque têm o direito de voar, mas porque têm asas. E não é verdade que esses órgãos, habilidades e características são "inalienáveis", Muitos deles passam por mutações constantes e podem muito bem se perder completamente com o tempo. O avestruz é uma ave que perdeu a capacidade de voar. Portanto, "direitos inalienáveis" deveria ser traduzido como "características mutáveis". E quais são as características que evoluíram nos humanos? "Vida", certamente. Mas "liberdade"? Isso não existe na biologia. Assim como igualdade, direitos e empresas de responsabilidade limitada, a liberdade é algo que as pessoas inventaram e que só existe em nossa imaginação. De uma perspectiva biológica, não faz sentido dizer que os humanos em sociedades democráticas são livres, ao passo que os humanos em sociedades ditatoriais não o são. E quanto a "felicidade"? Até o momento as pesquisas biológicas foram incapazes de propor uma definição clara de felicidade ou uma maneira de medi-la objetivamente. A maioria dos estudos biológicos reconhece apenas a existência de prazer, que é mais facilmente definido e medido. Portanto, "a vida, a liberdade e a procura da felicidade" deveria ser traduzido como "a vida e a procura de prazer".  Os defensores da igualdade e dos direitos humanos talvez fiquem escandalizados com essa linha de raciocínio. Sua reação provavelmente será: "Nós sabemos que as pessoas não são iguais biologicamente! Mas se acreditarmos que somos todos iguais em essência, isso nos permitirá criar uma sociedade estável e próspera". Não se deve desenvolver nenhum argumento contra isso. É exatamente o que pode dizer com "ordem imaginada". 
5) Convém observar que o Direito não existe senão para regular o convívio, isto é, para regular relações intersubjetivas ou impessoais. Assim, têm-se duas ideias correlatas: a de Direito, como conjunto de normas jurídicas e a de relação jurídica, como relação interpessoal por ele regulada. Que seu objeto é o Direito positivo (ou direito posto), mas considerado o Direito positivo de um Estado determinado, num dado momento histórico-cultural, ou como direito em certo ponto do espaço-tempo, com suas peculiaridades histórico-sócio-culturais. Que o Direito-objeto, além de estudado e descrito pela ciência, é normativo. Já a ciência que o estuda e descreve, no entanto, não é normativa, porém descritiva, como ensina o jurista Eros Roberto Grau. E denomina-se a parte teórica de sistemática jurídica, enquanto à prática empresta-se a denominação de técnica jurídica.

Nenhum comentário:

Postar um comentário