sábado, 30 de março de 2019

Faculdade Estácio de Curitiba - IED - 2019.1

A HISTÓRIA DO PENSAMENTO JURÍDICO
Segundo Alysson Leandro Mascaro (Introdução ao Estudo do Direito, 3ª edição, São Paulo, Atlas, 2012, p. 1/2): "A primeira dificuldade para delimitar o conceito de direito reside no fato de que, em geral, o jurista quer partir de suas próprias definições e de ideias abstratas e vagas para, apenas depois, encontrar uma realidade que se adapte às suas teorias. Mas o procedimento deve ser justamente o contrário. É preciso investigar fenômenos concretos e, a partir deles, alcançar uma concepção teórica posterior.
Para entendermos o fenômeno jurídico, é preciso, acima de tudo, utilizar-se da ferramenta da história. Sem ela, as definições sobre o direito serão vagas e sem lastro concreto.
Durante muito tempo, chamou-se por direito aquilo que hoje chamaríamos por religião, ou mesmo por política. Quem dirá que os Dez Mandamentos da Bíblia são um monumento jurídico? Mas quem poderá dizer que são um conjunto de normas só religiosas e não jurídicas? Na verdade, em sociedades do passado, como a hebreia, não há algo que especificamente seja chamado por direito e que seja totalmente distinto da religião, por exemplo.
Somente quando se chegou aos tempos modernos - quando começou a separação teórica entre direito, política e religião, por exemplo - é que foi possível entender que não houve, naqueles tempos passados, um direito tomado de modo específico.
Mas essa indistinção dos tempos passados não foi algo que aconteceu apenas com o direito. Entre a moral e a religião também se deu o mesmo. O iluminismo, um movimento filosófico do século XVIII, demonstrou que seria possível compreender a moral independentemente da religião. Para os iluministas, poderia haver uma moral racional válida para todos os homens, universal e superior, independente da religião de cada qual. Mas para os povos do passado essa separação seria muito difícil. Moral e religião estavam misturadas. Só os tempos modernos, devido a certas condições e estruturas sociais, como a organização capitalista, deram especificidade à religião, à moral, à política, à economia e também ao direito.
Assim sendo, é o presente que nos ajuda a entender as dificuldades do passado. Se hoje o jurista considera o direito a apartir das normas jurídicas estatais, com uma série de ferramentas, temas e consequências próprias, no passado tudo isso poderia ser objeto da religião, sem que houvesse uma definição dos campos específicos.
Comparado ao passado, o direito ganha especificidade apenas no capitalismo, a partir da Idade Moderna. Se no passado o direito era inespecífico, misturado à moral e à religião, no presente ele se revela como algo distinto, um fenômeno singularizado. Mas, mesmo assim, a questão ainda permanece, posta agora em outro, patamar, mais profundo. Se é somente nos tempos modernos que o direito passa a ser um fenômeno específico, então o que identifica em si o direito de nosso tempo, a fim de que seja distinguido de todos os demais fenômenos sociais?
A qualidade de direito
Propugnemos um entendimento do direito a partir da soma de duas perspectivas de identificação. É preciso compreender as coisas que são quantitativamente jurídicas e aquilo que qualitativamente as torna como tais; O direito cobre muitos assuntos - homicídio, roubo, compra e venda, tributos, proteção ao trabalhador. Mas, além de se referir a muitos temas, o direito lida de modo específico com esses próprios temas. Por isso, é a qualidade de direito o grande identificador do fenômeno jurídico moderno. Quando se diz que o manejo do solo pode ser um tema jurídico, isso não quer dizer que a agricultura tenha que ser necessariamente regulada juridicamente. O direito, se também chega às questões agrícolas, o faz por vias distintas daquelas que são as tradicionais de um agrônomo.
Como muitas coisas podem ser jurídicas - a propriedade, as relações de trabalho, a atividade mercantil, os costumes, a educação, a legislação aérea, a previdência social, o direito administrativo -, não é pelo assunto de que trata o direito que se o identifica. Se muitos assuntos podem ou não podem ser considerados jurídicos, o passo científico mais decisivo para compreender o direito não é, então, entender quais temas são jurídicos (a sua identificação quantitativa), mas, sim, quais mecanismos e estruturas dão especificidade ao direito perante qualquer assunto (a sua identificação qualitativa).
A religião pode falar sobre tudo, disciplinar muitas condutas. O direito pode também legislar sobre as mesmas condutas. Mas o direito procede de um modo e a religião de outro. São estruturas distintas, que se relacionam diferentemente com os objetos. Não são objetos nem temas específicos que identificam o direito, e sim determinados tipos de relação desses objetos e temas com outras certas situações sociais. Todos os assuntos podem ser jurídicos quando haja estruturas jurídicas que os qualifiquem.
No passado, não havia uma qualificação dos assuntos como estritamente jurídicos ou religiosos, porque seus mandos se intercambiavam e se confundiam. Somente num certo tempo histórico essa especificidade apareceu, a partir de determinadas relações sociais e econômicas. Nesse momento, deu-se a transformação qualitativa do fenômeno jurídico. Tal transformação se deu com o capitalismo. Como este modo de produção apareceu apenas muito modernamente, pode-se dizer que os instrumentos do direito apenas nos tempos mais próximos da história ganharam especificidade. Ao se ver a inespecificidade do direito nos modos de produção do passado, resta clara a ligação específica que há entre o direito e o capitalismo.
Em modos de produção primitivos, pré-capitalistas, o direito era muito similar a uma ação ocasional, artesanal. Davam-se soluções para casos quaisquer de acordo com o poder, a força e as habilidades individuais daquele que mandava, e tais soluções não se repetiam em outros casos parecidos. No capitalismo o procedimento é diverso. O comércio, a exploração do trabalho mediante salário, a mercantilização das relações sociais, tudo isso deu margem a um tratamento do direito como uma esfera social específica, eminentemente técnica, independente da vontade ocasional das partes ou do julgador.
Com o capitalismo, o direito passa a ocupar específico no todo da vida social. Essa instância jurídica é o local no qual um ente aparentemente distante de todos os indivíduos, o Estado, se institucionaliza e passa a regular uma pluralidade de comportamentos, atos e relações sociais.
No escravagismo e no feudalismo, que são anteriores ao capitalismo, não há especificamente uma instância jurídica. Não há uma qualidade de relações que seja só jurídica em meio ao todo da vida social. A religião ordena, regula e manda, e da mesma maneira o rei, o senhor feudal ou o senhor de escravo. Se pensássemos que a totalidade das relações sociais fosse um edifício de vários andares, não há um andar específico para o direito. No capitalismo, passa a havê-lo. E, no edifício das relações sociais capitalistas, o direito é o andar mais próximo e contíguo ao pavimento do Estado.
É possível afirmar, então, que passa a haver uma específica manifestação social que se identifica como direito a partir do capitalismo. E esse fenômeno jurídico é tão peculiar ao capitalismo que aquilo que se chamar como direito pré-capitalista tarnar-se-á praticamente irreconhecível em face do atual direito. Quando com os olhos de juristas de hoje olhamos o direito da Bíblia, por exemplo, não o reconhecemos como tendo a mesma estrutura jurídica presente. De fato, ele é outro, diretamente misturado com a religião, e o nosso moderno, capitalista, não.
Essa transformação histórica qualitativa, que é oriunda dos movimentos mais básicos da atividade capitalista, foi a responsável pela especificidade do direito em face dos demais fenômenos sociais. É o capitalismo que dá ao direito a condição de fenômeno distinto do mando do senhor feudal, do mando da igreja, da crença em ordens sagradas. O capitalismo dá especificidade ao direito.
No capitalismo, inaugura-se um mundo de instituições que sustentam práticas específicas de explorações. A célula mínima de tais estruturas de exploração é a mercadoria. Uns vendem e outros compram. A transação comercial somente se sustenta se comprador e vendedor forem considerados sujeitos de direito, isto é, pessoas capazes de se vincularem por meio de um contrato no qual trocam direitos e deveres. A mercadoria acarreta determinados institutos reputados estritamente por jurídicos. Não é a religião nem a moral que os sustenta. Daí surge especificamente o direito. Seus institutos são resultantes diretos das transações mercantis, porque a garantem. Entender o direito a partir do movimento mais simples do capitalismo - as trocas mercantis - é captar o ponto que dá a qualificação específica ao direito moderno.".
Para Stéphane Rials, "Michel Villey (A Formação do Pensamento Jurídico Moderno, 2ª ed. Martins Fontes, 2009, p. XVV), aponta com frequência o jogo dos interesses de classe. [...] A passagem do "feudalismo" (...) para o "capitalismo" (...) talvez atraia menos sua atenção que o declínio da classe cultural clerical (...) e o desenvolvimento - decerto vinculado à modificação das relações econômicas - de uma classe cultural laica. (...) "Cabe-nos, portanto, considerar esse novo mundo cultural que o século XVI suscitou, portador de uma nova concepção da filosofia e do direito. Por que tão nova? Podemos responder que ele nasce de uma nova classe social. Não mais do clero [...]. Doravante, a conjuntura econômico-política permite que os burgueses enriquecidos e alguns nobres libertos de sua antiga tarefa militar constituam um outro tipo de elite culta.
E o resultado da pesquisa de Yuval Noah Harari (Uma Breve História da Humanidade, 30 ed., Porto Alegre-RS, L&PM, 2017), mais profunda, nos informa que: "Por volta de 10.000 a.C., antes da transição para a agricultura, a Terra era o lar de 5 a 8 milhões de caçadores-coletores nômades. No século I, restavam apenas de l a 2 milhões de caçadores-coletores (principalmente na Austrália, na América e na África), mas os 250 milhões de agricultores no mundo fizeram com que esse número continuasse diminuindo.
A grande maioria dos agricultores vivia em assentamentos permanentes; apenas alguns eram pastores nômades. Os assentamentos permanentes faziam com que o terreno da maioria dos povos fosse drasticamente reduzido. [...]
Enquanto o espaço agrícola se reduziu, o tempo agrícola se expandiu. Os caçadores-coletores normalmente não perdiam muito tempo pensando no mês ou no verão seguinte. Os agricultores viajavam, em sua imaginação, anos e décadas no futuro.
Os caçadores-coletores desconsideravam o futuro porque viviam do que havia disponível e somente com dificuldade conseguiam conservar alimentos ou acumular bens. É claro que eles faziam alguns planos. [...] As alianças sociais e as rivalidades políticas eram negócios de longo prazo. Muitas vezes se levava anos para retribuir um favor ou vingar uma ofensa. No entanto, na economia de subsistência da caça e da coleta, havia um limite óbvio a tal planejamento de longo prazo. Paradoxalmente, isso poupava os caçadores-coletores de muitas ansiedades. Não fazia sentido se preocupar com coisas que eles não podiam controlar. [...]
Em consequência, desde o advento da agricultura as preocupações com o futuro se tornaram atores importantes no teatro da mente humana.
O estresse representado pela agricultura teve consequências importantes. Foi a base dos sistemas políticos e sociais de grande escala. Infelizmente, mesmo trabalhando duro, os camponeses quase nunca alcançaram a segurança econômica futura que tanto ansicavam. Em toda parte, brotaram governantes e elites, vivendo do excedente dos camponeses e deixando-os com o mínimo para a sobrevivência.
Esses excedentes de alimento confiscados alimentaram a política, a guerra, a arte e a filosofia. Construíram palácios, fortes, monumentos e templos. Até o fim da era moderna, mais de 90% dos humanos eram camponeses que se levantavam todas as manhãs para trabalhar a terra com o suor da fronte. Os excedentes que produziam alimentavam a ínfima minoria das elites - reis, oficiais do governo, soldados, padres, artistas e pensadores -, que enchem os livros de história. A história é o que algumas poucas pessoas fizeram enquanto todas as outras estavam arando campos e carregando baldes de água. [...]
O punhado de milênios separando a Revolução Agrícola do surgimento de cidades, reinos e impérios não foi tempo suficiente para possibilitar o desenvolvimento de um instinto de cooperação em massa. [...]
Os mitos, como se veio a saber, são mais influentes do que qualquer um poderia ter imaginado. Quando a Revolução Agrícola criou oportunidades para a criação de cidades populosas e impérios poderosos, as pessoas inventaram histórias sobre grandes deuses, pátrias-mães e empresas de capital aberto para fornecer os elos sociais necessários. Enquanto a evolução humana estava rastejando no seu usual ritmo de tartaruga, a imaginação humana estava construindo redes impressionantes de cooperação em massa, diferentes de qualquer outra já vista.
Por volta de 8.500 a.C., os maiores assentamentos do mundo eram vilarejos como Jericó e outros. Em 3.100 a.C, todo o vale do baixo Nilo estava unido no primeiro reino egípcio. Por volta de 2.250 a.C., Sargão, o Grande, construiu o primeiro império, o Acadino. Entre 1.000 e 500 a.C., apareceram os primeiros megaimpérios no Oriente Médio: o Império Assírio, o Império Babilônico e o Império Persa. Eles governavam muitos milhões de súditos e comandavam dezenas de milhares de soldados. [...]
Todas essas redes de cooperação - das cidades da antiga Mesopotâmia aos impérios Qin e Romano - foram "ordens imaginadas". As normas sociais que as sustentavam não se baseavam em instintos arraigados nem em relações pessoais, e sim na crença em mitos partilhados.
Como os mitos podem sustentar impérios inteiros? Examinemos dois dos mitos mais conhecidos da história: o Código de Hamurabi, de aproximadamente 1.776 a.C., que serviu como um manual de cooperação para centenas de milhares de babilônicos na Antiguidade, pois o mais famoso rei babilônico chamava-se Hamurabi, sua fama se deve principalmente ao texto que recebe seu nome: o Código de Hamurabi. Este foi uma coleção de de leis e decisões judiciais cujo objetivo era apresentar Hamurabi como modelo de rei justo, servir de base para um sistema juridico mais uniforme em todo o Império Babilônico e ensinar às gerações futuras o que é justiça e como age um rei justo. As gerações futuras prestaram atenção. A elite intelectual e burocrática da antiga Mesopotâmia canonizou o texto, e escribas aprendizes continuaram a copiá-lo muito depois de Hamurabi morrer e de seu império cair em ruina. O código de Hamurabi é, portanto uma boa fonte para entender o antigo ideal de ordem social dos mesopotâmios; e a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776, que ainda serve como um manual de cooperação para centenas de milhões de norte-americanos.". Eis aí uma breve narrativa a respeito da formação do pensamento jurídico que atualmente estamos aprimorando.

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