A HISTÓRIA DO PENSAMENTO JURÍDICO
Segundo Alysson Leandro Mascaro (Introdução ao
Estudo do Direito, 3ª edição, São Paulo, Atlas, 2012, p. 1/2): "A primeira
dificuldade para delimitar o conceito de direito reside no fato de que, em
geral, o jurista quer partir de suas próprias definições e de ideias abstratas
e vagas para, apenas depois, encontrar uma realidade que se adapte às suas
teorias. Mas o procedimento deve ser justamente o contrário. É preciso
investigar fenômenos concretos e, a partir deles, alcançar uma concepção
teórica posterior.
Para entendermos o fenômeno jurídico, é
preciso, acima de tudo, utilizar-se da ferramenta da história.
Sem ela, as definições sobre o direito serão vagas e sem lastro concreto.
Durante muito tempo, chamou-se por direito
aquilo que hoje chamaríamos por religião, ou mesmo por política. Quem dirá que
os Dez Mandamentos da Bíblia são um monumento jurídico? Mas quem
poderá dizer que são um conjunto de normas só religiosas e não jurídicas? Na
verdade, em sociedades do passado, como a hebreia, não há algo que
especificamente seja chamado por direito e que seja totalmente distinto da
religião, por exemplo.
Somente quando se chegou aos tempos modernos -
quando começou a separação teórica entre direito, política e religião, por
exemplo - é que foi possível entender que não houve, naqueles tempos passados,
um direito tomado de modo específico.
Mas essa indistinção dos tempos passados não
foi algo que aconteceu apenas com o direito. Entre a moral e a religião também
se deu o mesmo. O iluminismo, um movimento filosófico do século XVIII,
demonstrou que seria possível compreender a moral independentemente da
religião. Para os iluministas, poderia haver uma moral racional válida para
todos os homens, universal e superior, independente da religião de cada qual.
Mas para os povos do passado essa separação seria muito difícil. Moral e
religião estavam misturadas. Só os tempos modernos, devido a certas condições e
estruturas sociais, como a organização capitalista, deram especificidade
à religião, à moral, à política, à economia e também ao direito.
Assim sendo, é o presente que nos ajuda a
entender as dificuldades do passado. Se hoje o jurista considera o direito a
apartir das normas jurídicas estatais, com uma série de ferramentas, temas e
consequências próprias, no passado tudo isso poderia ser objeto da religião,
sem que houvesse uma definição dos campos específicos.
Comparado ao passado, o direito ganha
especificidade apenas no capitalismo, a partir da Idade Moderna. Se no passado
o direito era inespecífico, misturado à moral e à religião, no presente ele se
revela como algo distinto, um fenômeno singularizado. Mas, mesmo assim, a
questão ainda permanece, posta agora em outro, patamar, mais profundo. Se é
somente nos tempos modernos que o direito passa a ser um fenômeno específico,
então o que identifica em si o direito de nosso tempo, a fim de que seja
distinguido de todos os demais fenômenos sociais?
A qualidade de direito
Propugnemos um entendimento do direito a
partir da soma de duas perspectivas de identificação. É preciso compreender as
coisas que são quantitativamente jurídicas e aquilo que qualitativamente
as torna como tais; O direito cobre muitos assuntos - homicídio, roubo, compra
e venda, tributos, proteção ao trabalhador. Mas, além de se referir a muitos
temas, o direito lida de modo específico com esses próprios temas. Por isso, é
a qualidade de direito o grande identificador do fenômeno jurídico
moderno. Quando se diz que o manejo do solo pode ser um tema jurídico, isso não
quer dizer que a agricultura tenha que ser necessariamente regulada
juridicamente. O direito, se também chega às questões agrícolas, o faz por vias
distintas daquelas que são as tradicionais de um agrônomo.
Como muitas coisas podem ser jurídicas - a propriedade,
as relações de trabalho, a atividade mercantil, os costumes, a educação, a
legislação aérea, a previdência social, o direito administrativo -, não é pelo
assunto de que trata o direito que se o identifica. Se muitos assuntos podem ou
não podem ser considerados jurídicos, o passo científico mais decisivo para
compreender o direito não é, então, entender quais temas são jurídicos (a sua
identificação quantitativa), mas, sim, quais mecanismos e estruturas dão especificidade
ao direito perante qualquer assunto (a sua identificação qualitativa).
A religião pode falar sobre tudo, disciplinar
muitas condutas. O direito pode também legislar sobre as mesmas condutas. Mas o
direito procede de um modo e a religião de outro. São estruturas distintas, que
se relacionam diferentemente com os objetos. Não são objetos nem temas
específicos que identificam o direito, e sim determinados tipos de relação
desses objetos e temas com outras certas situações sociais. Todos os assuntos
podem ser jurídicos quando haja estruturas jurídicas que os qualifiquem.
No passado, não havia uma qualificação dos
assuntos como estritamente jurídicos ou religiosos, porque seus mandos se
intercambiavam e se confundiam. Somente num certo tempo histórico essa
especificidade apareceu, a partir de determinadas relações sociais e
econômicas. Nesse momento, deu-se a transformação qualitativa do fenômeno
jurídico. Tal transformação se deu com o capitalismo. Como este modo de
produção apareceu apenas muito modernamente, pode-se dizer que os instrumentos
do direito apenas nos tempos mais próximos da história ganharam especificidade.
Ao se ver a inespecificidade do direito nos modos de produção do passado, resta
clara a ligação específica que há entre o direito e o capitalismo.
Em modos de produção primitivos,
pré-capitalistas, o direito era muito similar a uma ação ocasional, artesanal.
Davam-se soluções para casos quaisquer de acordo com o poder, a força e as
habilidades individuais daquele que mandava, e tais soluções não se repetiam em
outros casos parecidos. No capitalismo o procedimento é diverso. O comércio, a
exploração do trabalho mediante salário, a mercantilização das relações
sociais, tudo isso deu margem a um tratamento do direito como uma esfera social
específica, eminentemente técnica, independente da vontade ocasional das partes
ou do julgador.
Com o capitalismo, o direito passa a ocupar
específico no todo da vida social. Essa instância jurídica é o local no qual um
ente aparentemente distante de todos os indivíduos, o Estado, se institucionaliza
e passa a regular uma pluralidade de comportamentos, atos e relações sociais.
No escravagismo e no feudalismo, que são
anteriores ao capitalismo, não há especificamente uma instância jurídica. Não
há uma qualidade de relações que seja só jurídica em meio ao todo da vida
social. A religião ordena, regula e manda, e da mesma maneira o rei, o senhor
feudal ou o senhor de escravo. Se pensássemos que a totalidade das relações
sociais fosse um edifício de vários andares, não há um andar específico para o
direito. No capitalismo, passa a havê-lo. E, no edifício das relações sociais
capitalistas, o direito é o andar mais próximo e contíguo ao pavimento do
Estado.
É possível afirmar, então, que passa a haver
uma específica manifestação social que se identifica como direito a partir do
capitalismo. E esse fenômeno jurídico é tão peculiar ao capitalismo que aquilo
que se chamar como direito pré-capitalista tarnar-se-á praticamente
irreconhecível em face do atual direito. Quando com os olhos de juristas de hoje
olhamos o direito da Bíblia, por exemplo, não o reconhecemos como tendo a mesma
estrutura jurídica presente. De fato, ele é outro, diretamente misturado com a
religião, e o nosso moderno, capitalista, não.
Essa transformação histórica qualitativa, que
é oriunda dos movimentos mais básicos da atividade capitalista, foi a
responsável pela especificidade do direito em face dos demais fenômenos
sociais. É o capitalismo que dá ao direito a condição de fenômeno distinto do
mando do senhor feudal, do mando da igreja, da crença em ordens sagradas. O capitalismo
dá especificidade ao direito.
No capitalismo, inaugura-se um mundo de
instituições que sustentam práticas específicas de explorações. A célula mínima
de tais estruturas de exploração é a mercadoria. Uns vendem e outros compram. A
transação comercial somente se sustenta se comprador e vendedor forem
considerados sujeitos de direito, isto é, pessoas capazes de se vincularem por
meio de um contrato no qual trocam direitos e deveres. A mercadoria acarreta
determinados institutos reputados estritamente por jurídicos. Não é a religião
nem a moral que os sustenta. Daí surge especificamente o direito. Seus
institutos são resultantes diretos das transações mercantis, porque a garantem.
Entender o direito a partir do movimento mais simples do capitalismo - as
trocas mercantis - é captar o ponto que dá a qualificação específica ao direito
moderno.".
Para Stéphane Rials, "Michel Villey (A
Formação do Pensamento Jurídico Moderno, 2ª ed. Martins Fontes, 2009, p. XVV),
aponta com frequência o jogo dos interesses de classe. [...] A passagem do
"feudalismo" (...) para o "capitalismo" (...) talvez atraia
menos sua atenção que o declínio da classe cultural clerical (...) e o
desenvolvimento - decerto vinculado à modificação das relações econômicas - de
uma classe cultural laica. (...) "Cabe-nos, portanto, considerar esse novo
mundo cultural que o século XVI suscitou, portador de uma nova concepção da
filosofia e do direito. Por que tão nova? Podemos responder que ele nasce de
uma nova classe social. Não mais do clero [...]. Doravante, a conjuntura
econômico-política permite que os burgueses enriquecidos e alguns nobres
libertos de sua antiga tarefa militar constituam um outro tipo de elite culta.
E o resultado da pesquisa de Yuval Noah Harari
(Uma Breve História da Humanidade, 30 ed., Porto Alegre-RS, L&PM, 2017),
mais profunda, nos informa que: "Por volta de 10.000 a.C., antes da
transição para a agricultura, a Terra era o lar de 5 a 8 milhões de
caçadores-coletores nômades. No século I, restavam apenas de l a 2 milhões de
caçadores-coletores (principalmente na Austrália, na América e na África), mas
os 250 milhões de agricultores no mundo fizeram com que esse número continuasse
diminuindo.
A grande maioria dos agricultores vivia em
assentamentos permanentes; apenas alguns eram pastores nômades. Os
assentamentos permanentes faziam com que o terreno da maioria dos povos fosse
drasticamente reduzido. [...]
Enquanto o espaço agrícola se reduziu, o tempo
agrícola se expandiu. Os caçadores-coletores normalmente não perdiam muito
tempo pensando no mês ou no verão seguinte. Os agricultores viajavam, em sua
imaginação, anos e décadas no futuro.
Os caçadores-coletores desconsideravam o
futuro porque viviam do que havia disponível e somente com dificuldade
conseguiam conservar alimentos ou acumular bens. É claro que eles faziam alguns
planos. [...] As alianças sociais e as rivalidades políticas eram negócios de
longo prazo. Muitas vezes se levava anos para retribuir um favor ou vingar uma
ofensa. No entanto, na economia de subsistência da caça e da coleta, havia um
limite óbvio a tal planejamento de longo prazo. Paradoxalmente, isso poupava os
caçadores-coletores de muitas ansiedades. Não fazia sentido se preocupar com
coisas que eles não podiam controlar. [...]
Em consequência, desde o advento da
agricultura as preocupações com o futuro se tornaram atores importantes no
teatro da mente humana.
O estresse representado pela agricultura teve
consequências importantes. Foi a base dos sistemas políticos e sociais de
grande escala. Infelizmente, mesmo trabalhando duro, os camponeses quase nunca
alcançaram a segurança econômica futura que tanto ansicavam. Em toda parte,
brotaram governantes e elites, vivendo do excedente dos camponeses e
deixando-os com o mínimo para a sobrevivência.
Esses excedentes de alimento confiscados
alimentaram a política, a guerra, a arte e a filosofia. Construíram palácios,
fortes, monumentos e templos. Até o fim da era moderna, mais de 90% dos humanos
eram camponeses que se levantavam todas as manhãs para trabalhar a terra com o
suor da fronte. Os excedentes que produziam alimentavam a ínfima minoria das
elites - reis, oficiais do governo, soldados, padres, artistas e pensadores -,
que enchem os livros de história. A história é o que algumas poucas pessoas
fizeram enquanto todas as outras estavam arando campos e carregando baldes de
água. [...]
O punhado de milênios separando a Revolução
Agrícola do surgimento de cidades, reinos e impérios não foi tempo suficiente
para possibilitar o desenvolvimento de um instinto de cooperação em massa.
[...]
Os mitos, como se veio a saber, são mais
influentes do que qualquer um poderia ter imaginado. Quando a Revolução
Agrícola criou oportunidades para a criação de cidades populosas e impérios
poderosos, as pessoas inventaram histórias sobre grandes deuses, pátrias-mães e
empresas de capital aberto para fornecer os elos sociais necessários. Enquanto
a evolução humana estava rastejando no seu usual ritmo de tartaruga, a
imaginação humana estava construindo redes impressionantes de cooperação em
massa, diferentes de qualquer outra já vista.
Por volta de 8.500 a.C., os maiores
assentamentos do mundo eram vilarejos como Jericó e outros. Em 3.100 a.C, todo
o vale do baixo Nilo estava unido no primeiro reino egípcio. Por volta de 2.250
a.C., Sargão, o Grande, construiu o primeiro império, o Acadino. Entre 1.000 e
500 a.C., apareceram os primeiros megaimpérios no Oriente Médio: o Império
Assírio, o Império Babilônico e o Império Persa. Eles governavam muitos milhões
de súditos e comandavam dezenas de milhares de soldados. [...]
Todas essas redes de cooperação - das cidades
da antiga Mesopotâmia aos impérios Qin e Romano - foram "ordens
imaginadas". As normas sociais que as sustentavam não se baseavam em
instintos arraigados nem em relações pessoais, e sim na crença em mitos
partilhados.
Como os mitos podem sustentar impérios
inteiros? Examinemos dois dos mitos mais conhecidos da história: o Código de
Hamurabi, de aproximadamente 1.776 a.C., que serviu como um manual de
cooperação para centenas de milhares de babilônicos na Antiguidade, pois o mais
famoso rei babilônico chamava-se Hamurabi, sua fama se deve principalmente ao
texto que recebe seu nome: o Código de Hamurabi. Este foi uma coleção de de leis
e decisões judiciais cujo objetivo era apresentar Hamurabi como modelo de rei
justo, servir de base para um sistema juridico mais uniforme em todo o Império
Babilônico e ensinar às gerações futuras o que é justiça e como age um rei
justo. As gerações futuras prestaram atenção. A elite intelectual e burocrática
da antiga Mesopotâmia canonizou o texto, e escribas aprendizes continuaram a
copiá-lo muito depois de Hamurabi morrer e de seu império cair em ruina. O
código de Hamurabi é, portanto uma boa fonte para entender o antigo ideal de
ordem social dos mesopotâmios; e a Declaração de Independência dos Estados
Unidos, de 1776, que ainda serve como um manual de cooperação para centenas de
milhões de norte-americanos.". Eis aí uma breve narrativa a respeito da
formação do pensamento jurídico que atualmente estamos aprimorando.
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