domingo, 28 de agosto de 2016

Ética e Razão

     A alienação vem de longe. Santo Agostinho, que nasceu em 354 e faleceu em 28/08/430, descreveu: "As pessoas viajam para admirar a altura das montanhas, as imensas ondas dos mares, o longo percurso dos rios, o vasto domínio do oceano, o movimento circular das estrelas, e no entanto, elas passam por si mesmas sem se admirarem.". Antes dele, desde o "Conhece-te a ti mesmo", do oráculo de Delfos (consta que a inscrição na íntegra expressava: "Conhece a ti mesmo que conhecerás aos deuses e ao universo"), a orientação já era no sentido de descobrir a própria personalidade, entender-se, encontrar a verdade para torna-se livre. Diante disso, é possível entender que quem promove a destruição, qualquer que seja ela, a guerra, por exemplo, está em perfeita saúde mental? Fazendo um desvio humorado: 
Como vai?
Sócrates: "Não sei."
Platão: "Da maneira ideal."
Epicuro: "De través."
Jó: "Não me lamento."
Descartes: "Bem, penso seu."
Berkeley: "Parece-me que bem."
Shakespeare: "Como quiserem."
Garibaldi: "Tenho mil razões para estar contente."
Darwin: "A gente sempre se adapta."
Pirandello: "De acordo com quem?"
Freud: "Diga você."
Dickens: "Tempos duros, mas tenho grandes esperanças."
Einstein: "Com relação a quem?"
McLuhan: "Meio a meio."
Austin: "Bem, eu juro."
Bernard: "Basta ter coração." (Umberto Eco).
     Voltando ao tema, o homem busca saber sobre tudo menos sobre a si mesmo. Houve um tempo em que as criaturas resistiam à admissão de que a sua conduta estivesse determinada por algo que não fosse a própria e espontânea vontade. Na realidade, é quase impossível à pessoa alienada bastar-se a si mesma e da conformidade alienada é o processo de nivelamento dos gostos e das ideias. Segundo Erich Fromm, "a descoberta da livre associação por Freud tinha por objetivo averiguar o que ocorria em vós sob a superfície, descobrir quem realmente sois.[...] Se falamos da razão, temos que começar por dizer a que faculdade humana nos referimos.[...] devemos diferenciar a inteligência e a razão. Por inteligência entendo a habilidade para manipular conceitos com o objetivo de conseguir algum fim prático. [...] Por outro lado, a razão visa a compreensão; esforça-se por descobrir o que está por trás da superfície, por reconhecer o cerne, a essência da realidade que nos rodeia. A razão não carece de função, mas sua missão não consiste tanto em impulsionar a existência física tanto quanto a existência mental e espiritual. Porém muitas vezes, tanto na vida individual como social, a razão é necessária para predizer (tendo em conta que com frequência a predição depende do conhecimento de forças que operam por trás da superfície), e a predição é por vezes necessária até a sobrevivência física. A razão exige relação e sensação do eu. Se sou apenas um receptor passivo de impressões, ideias, opiniões, posso compará-las e manipulá-las, mas não posso penetrá-las. [...] Estreitamente relacionada com isso está a falta de sentido de realidade, que é tão característica da personalidade alienada. [...] Que realistas são esses que estão brincando com armas que podem levar à destruição da toda a civilização moderna, se não mesmo da própria Terra! [...] a verdade é que o homem moderno exige uma falta surpreendente de realismo com relação a tudo o que realmente importa: para o sentido da vida e da morte, para a felicidade e o sofrimento, para o sentimento e o pensamento sério. [...] A inteligência é suficiente para manipular um setor de uma unidade maior, ... [...] Porém a razão só pode desenvolver-se se está engrenada com o todo, se trata com entidades observáveis e manejáveis. Assim como nossos olhos e ouvidos funcionam somente dentro de determinados limites quantitativos de comprimento de onda, também a nossa razão está limitada pelo que é observável em seu conjunto e em seu funcionamento total. Em outras palavras: para além de certas dimensões, perde-se inevitavelmente a noção do concreto e dá-se a abstração, e com ela se desvanece o sentido da realidade. [...] Ao observar a qualidade do pensamento do homem alienado, é surpreendente ver como se desenvolveu sua inteligência e como decaiu sua razão. [...] Até mesmo do Século XIX até aos nosso dias, parece ter ocorrido um aumento observável de estupidez - se entendemos por estupidez o contrário da razão e não da inteligência. [...] Os novos cérebros eletrônicos são, certamente, uma boa ilustração do que entendemos por inteligência. [...] A máquina pode reproduzir e até melhorar a inteligência, mas não pode simular a razão. Ao tratar da ética, ele descreve: "A ética, pelo menos no sentido da tradição greco-judaico-cristã, é inseparável da razão. A conduta ética se baseia na faculdade de fazer juízos sobre valores com base na razão; significa decidir entre o bem e o mal, e agir de acordo com a decisão. O uso da razão pressupõe a presença de uma personalidade, de um eu, e o mesmo se verifica no tocante à conduta e ao julgamento éticos. Além disso, a ética, seja da religião monoteísta ou do humanismo secular, baseia-se no princípio de que nenhuma instituição nem coisa é mais elevada do que qualquer indivíduo humano, que a finalidade da vida é desenvolver o amor e a razão do homem, e que todas as outras atividades do homem têm que subordinar-se a essa finalidade. [...] Com relação às coisas que se trocam no mercado existe outro código quase ético, o da equidade. A questão está em saber se elas são trocadas a um preço equitativo, sem que intervenham no trato nem a astúcia nem a força; essa equidade, que não é nem boa nem má, é o princípio ético do mercado, e é o princípio ético que governa a vida da personalidade mercantil. É indubitável que este princípio da equidade leva ao desempenho de certo tipo de conduta ética. Se uma pessoa atua de acordo com o código da equidade, não mente, não engana nem usa a força, e até oferece aos outros uma oportunidade. Porém o amor ao próximo, o sentimento de identificação com ele, a dedicação da vida ao desenvolvimento das potencialidades espirituais não fazem parte da ética da equidade. [...] O monoteísmo é incompatível com a alienação e com a nossa ética da equidade. Faz do desenvolvimento do homem, de sua salvação a finalidade suprema da vida, finalidade que jamais poderá subordinar-se a qualquer outra. Se Deus é incognoscível e indefinível, e se o homem é feito à Sua Imagem, o homem é indefinível, o que significa não se poder considerá-lo nunca uma coisa.".
     Termino este texto com duas indagações: Porque procurar ver? E porque fixar especialmente o nosso olhar sobre o objeto humano? Ver. Poder-se-ia dizer que toda vida consiste em ver, senão finalmente, pelo menos essencialmente. Se conhecer é verdadeiramente tão vital, devemos dirigir a nossa atenção de preferência para o homem. Por duas razões que duas vezes o faz centro do mundo, o homem impõe-se ao nosso esforço para ver, como chave do Universo.

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