sexta-feira, 28 de março de 2014

A Origem do Inquérito

     O Direito! Causa espanto quando se vai em busca da formação desse saber. É que, dentro outros, em pesquisas próprias, Michel Villey (A Formação do Pensamento Jurídico Moderno, 2ª ed., São Paulo, Martins Fontes, 2009) apontara que a formação desse saber deu-se muito mais em decorrência do trabalho de teólogos, filósofos, políticos, estrategistas, etc., do que de juristas, propriamente; e que a tarefa destes, circunscreveu, muito mais, em redigir o catálogo e descrever o conteúdo dos direitos, do que da formação dele propriamente dita. É assim que, nas pesquisas realizadas Michel Foucault (Vigiar e Punir, 38ª ed., Petrópolis, RJ, Vozes, 2010, p. 212/4) descrevera: "O século XVIII inventou as técnicas da disciplina e o exame, um pouco sem dúvida como a Idade Média inventou o inquérito judiciário. Mas por vias totalmente diversas. O processo do inquérito, velha técnica fiscal e administrativa, se desenvolveu principalmente com a reorganização da Igreja e o crescimento dos Estados principescos nos séculos XII e XIII. Foi então que ele penetrou com a amplitude que se sabe na jurisprudência dos tribunais eclesiásticos, depois nas cortes leigas. O inquérito como pesquisa autoritária de uma verdade constatada ou atestada se opunha assim aos antigos processos do juramento, da ordália, do duelo judiciário, do julgamento de Deus ou ainda da transação entre particulares. O inquérito era o poder soberano que se arrogava o direito de estabelecer a verdade através de um certo número de técnicas regulamentadas. Ora, embora o inquérito, desde aquele momento, se tenha incorporado à justiça ocidental (e até em nossos dias), não se deve esquecer sua origem política, sua ligação com o nascimento dos Estados e da soberania monárquica, nem tampouco sua derivação posterior e seu papel na formação do saber. O inquérito foi com efeito a peça rudimentar e fundamental, para a constituição das ciências empíricas; foi a matriz jurídico-política desse saber experimental, que, como se sabe, teve seu rápido surto no fim da Idade Média. É talvez verdade que a matemática, na Grécia, nasceu das técnicas da medida; as ciências da natureza, em todo caso, nasceram por um lado, no fim da Idade Média, das práticas do inquérito. O grande conhecimento empírico que recobriu as coisas do mundo e as transcreveu na ordenação de um discurso indefinido que constata, descreve e estabelece os "fins" (e isto no momento em que o mundo ocidental começava a conquista econômica e política desse mesmo mundo) tem sem dúvida seu modelo operatório na Inquisição - essa imensa invenção que nosso recente amolecimento colocou na sombra da memória. Ora, o que esse inquérito político-jurídico, administrativo e criminal, religioso e leigo foi para as ciências da natureza, a análise disciplinar foi para as ciências do homem. Essas ciências com que nossa "humanidade" se encanta há mais de um século têm sua matriz técnica na minúcia tateante e maldosa das disciplinas e de suas investigações. Estas são talvez para a psicologia, a pedagogia, a psiquiatria, a criminologia, e para tantos outros estranhos conhecimentos, o que foi o terrível poder de inquérito para o saber calmo dos animais, das plantas ou da terra. [...]. O procedimento do inquérito na Idade Média foi imposto à velha justiça acusatória, mas por um processo vindo de cima: já a técnica disciplinar invadiu, insidiosamente e como que por baixo, uma justiça penal que é ainda, em seu princípio, inquisitória. Todos os grandes movimentos de derivação que caracterizam a penalidade moderna - a problematização do criminoso por trás de seu crime, a preocupação com uma punição que seja correção, terapêutica, normalização, a divisão do ato do julgamento entre diversas instâncias que devem, segundo se espera, medir, avaliar, diagnosticar, curar, transformar os indivíduos - tudo isso trai a penetração do exame disciplinar na inquisição judiciária. O que agora é imposto à justiça penal como seu ponto de aplicação, seu objeto "útil", não será mais o corpo do culpado levantado contra o corpo do rei; não será tampouco o sujeito de direito de um contrato ideal; mas o indivíduo disciplinar. O ponto extremo da justiça penal no Antigo Regime era o retalhamento infinito do corpo do regicida: manifestação do poder mais forte sobre o corpo do maior criminoso, cuja destruição total faz brilhar o crime em sua verdade. O ponto ideal da penalidade hoje seria a disciplina infinita: um interrogatório sem termo, um inquérito que se prolongasse sem limite numa observação minuciosa e cada vez mais analítica, um julgamento que se ao mesmo tempo a constituição de um processo nunca encerrado, o amolecimento calculado de uma pena ligada à curiosidade implacável de um exame, um procedimento que seja ao mesmo tempo a medida permanente de um desvio em relação a uma norma inacessível e o movimento assintótico que obriga a encontrá-la no infinito. O suplício completa logicamente um processo comandado pela Inquisição. A "observação" prolonga naturalmente uma justiça invadida pelos métodos disciplinares e pelos processos de exame. Acaso devemos nos admirar que a prisão celular, com suas cronologias marcadas, seu trabalho obrigatório, suas instâncias de vigilância e de notação, com seus mestres de normalidade, que retomam a multiplicam as funções do juiz, se tenha tornado o instrumento moderno da penalidade? Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões?".

Um comentário:

  1. Vivemos na idade média em questões de Segurança Pública!!!


    O Brasil ainda adota o inquérito policial, método oriundo da santa inquisição que queimava pessoas apenas com base em testemunnhos(falsos, subornados ou não). Idade Média

    inventou o inquérito judiciário, o mundo todo já se livrou desta forma primitiva de fazer justiça mas o Brasil teima em adotá-lo já que existe uma casta forte de Delegados na

    bancada da Bala que o defende, existe uma imprensa que lhes dá apoio midiático em troca de blindagens investigativas(veja o caso corrupção da FIFA nos direitos de transmissão

    à Rede Globo cujos inquéritos nunca avançaram aqui) e existe um povo ignorante o suficiênte pra engulir a desculpa de que os 95% de ineficiência de nossas polícias se deve a

    falta de policiais ou de dinheiro(que foi reforçado muitas vezes e nada muda) e que a escalada de crimes e homicídios em níveis de guerras é falta de lei de desarmamento(que

    foi feita mas se provou inútil) e que agora pode engolir a culpa da ineficiência nos direitos humanos pois assim fica fácil espancar um suspeito, mesmo que depois se prove

    inocente, pois é mais fácil fazer como na Santa Inquisição: torturar pra arrancar a verdade, do que abrir mão do inutiu cargo burrocrático de bacharel em direito de delegado

    que se apropriou das polícias mas que cujo saber em nada ajuda a elucidar crimes. Isto porque produzir provas de materialidade e autoria é tarefa multidisciplinar tal qual o

    crime o é(envolve conhecimentos de mecânica e química para, por exemplo, abrir ou explodir cofres, de biologia pra não deixar vestígios no local do crime, de contábeis e

    administração para lavar o dinheiro do crime, de informática pra eficiência nas comunicações criminosas e cobrir rastros digitais, de psicologia e sociologia para engenharias

    sociais e crimes silenciosos entre outros saberes).

    Portugal foi o último país da Europa a abolir a Inquisição. Mas trouxe-a ao Brasil junto com seu filho: o Inquérito Policial. Portugal já abandonou o Inquérito Policial a mais

    de meio século mas o Brasil continua com ele mantendo métodos de segurança pública da idade média.

    Por isto que não me admira ser possível hoje, a um delegado, agir como inquisidor, e desgraçar a vida de um empresário honesto simplesmente porque acredita em testemunhas que

    dizem que o suspeito é um bruxo:

    Como um delegado usou testemunhas falsas para ligar a morte de crianças a um ritual satânico

    "(...)A resolução relâmpago do caso pegou de surpresa o delegado Rogério Baggio, titular da Delegacia de Homicídios do município e que investigava o crime há meses. Ele estava

    em seus últimos dias de férias quando Moacir Fermino, colega que o substituiu por apenas 30 dias, veio a público anunciar que havia desvendado a motivação por trás das mortes.

    Atribuindo o sucesso de seu trabalho a testemunhas que ele publicamente chamou de “profetas de Deus”, o substituto coletou informações que lhe permitiram descobrir os detalhes

    do crime. Cristão fervoroso, ele batizou a operação de “Revelação”.

    Enquanto Baggio estava de férias, Fermino deu ordem de prisão e fez uma devassa na vida dos supostos envolvidos, sobretudo na de Sílvio Fernandes Rodrigues, dono de um sítio

    em Gravataí, onde ele mantém um local intitulado Templo de Lúcifer. O delegado passou a chamar Sílvio apenas de “bruxo”. Ele seria o principal personagem do ritual de

    esquartejamento. Seu sítio foi escavado em busca de fragmentos dos corpos das crianças. A cobertura da imprensa foi extenuante. Ao voltar das férias, o delegado Baggio

    desmontou a tese de Fermino. Não havia provas contra Silvio.

    As conclusões do substituto haviam sido forjadas com base em depoimentos inventados por pessoas que se apresentaram à Polícia Civil com o intuito de se beneficiar

    indevidamente do programa de proteção a testemunhas, o Protege. Nenhum resquício de corpo humano foi encontrado no sítio. Nenhuma prova material além dos testemunhos foi

    juntada aos autos.(...)"


    https://theintercept.com/2018/03/02/novo-hamburgo-satanico-inquerito/

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