sábado, 20 de abril de 2019

Faculdade Estácio de Curitiba - IED 2019.1 - O ENSINO DE MORAL


Quem tem opinião não tem paz.

Sobe esse título, Walter Benjamin lecionou: "Talvez nos sintamos tentados a cortar de início todas as discussões sobre o ensino de moral com a seguinte afirmação: a influência moral é um assunto puramente pessoal, que se subtrai a toda esquematização e imposição de normas. Pouco importa que esta frase seja correta ou não; o mero fato de que o ensino de moral é exigido de maneira geral e necessária não a leva em consideração. E, já que o ensono de moral é exigido teoricamente, impõe-se a necessidade de testar teoricamente essa exigência.

Tentaremos a seguir uma abordagem do ensino de moral a partir de seus próprios fundamentos. Não perguntaremos em que medida se pode alcançar um aperfeiçoamento relativo das deficiências do ensino de religião; perguntaremos, isto sim, como o ensino de moral se relaciona com exigências pedagógicas exclusivas.

De início, vamos nos colocar no terreno da ética kantiana (pois para essa questão é imprescindível uma fundamentação filosófica). Kant distingue entre legialidade e moralidade, diferença que às vezes é apresentada da seguinte forma: "Para que algo seja considerado moralmente bom não é suficiente que esteja de acordo com a lei ética; é preciso que ocorra por amor a ela". Isto implica uma outra determinação da vontade ética: ela é "imotivada", determinada unicamente pela lei ética, pela norma: faça o bem!

Duas frases paradoxais de Fichte e de Confúcio lançam uma luz clara sobre essas reflexões.

Fichte nega o significado ético do "conflito de deveres". Aparentemente ele oferece, assim, apenas uma interpretação de nossa consciência; se no cumprimento de um dever somos obrigados a negligenciar um outro elemento - por assim dizer - em um impasse técnico; mas interiormente não nos sentimos culpados, pois a lei ética não exige que se realize isto ou aquilo, exige apenas que se observe o ético. A lei ética é norma do agir, mas não seu conteúdo. 

Segundo Confúcio a lei ética oculta um duplo perigo: ela pode parecer muito elevada ao sábio e muito baixa ao tolo. Isto significa que a consumação empírica da ética jamais está contida na norma ética. Acreditar que todo e qualquer mandamento empírico esteja contido nela significaria superestimá-la. Confúcio volta-se, porém, contra o tolo, ao afirmar que toda ação, por legal que seja, só adquire um valor ético se emana de uma intenção ética. Neste ponto voltamos novamente a Kant e à sua famosa formulação: "Não é possível pensar nada no mundo, nem fora dele, que possa sem restrição ser considerado bom, além de uma boa intenção". 

Esta sentença, corretamente compreendida, contém a concepção fundamental da ética kantiana, a única que nos interessa aqui. "Intenção" não possui aqui um sentido psicológico. O psicólogo constrói em sua ciência um fato psicológico, para cuja realização a vontade, enquanto causa, representa no máximo um fator. Ao indivíduo ético só importa o aspecto ético do fato, e este possui tal aspecto não por haver procedido de inúmeras razões, mas sim de uma única intenção ética. A vontade do homem compreende sua obrigação perante a lei ética; neste fato esgota-se o significado ético dessa vontade.

Encontramo-nos aqui perante uma reflexão que parece apropriada a estabelecer o ponto de partida de todas as especulações sobre educação ética. Cumpre agora compreendermos a antinomia da educação ética, talvez apenas um aspecto particular de uma antinomia mais geral. A finalidade da educação ética é a formação da vontade moral. E, não obstante, não há nada mais inacessível do que essa mesma vontade, já que, enquanto tal, ela não é uma grandeza psicológica que possa ser abordada com determinados instrumentos. Nenhuma experiência empírica particular nos dá a garantia de termos atingido efetivamente a vontade moral como tal. Falta-nos a alavanca para o manejo eficiente da educação ética. A vontade moral é inabordável para o educador na mesma medida em que a lei ética pura e única é inacessível em si mesma.

A compreensão profunda desse fenômeno constitui pressuposto de uma teoria da educação ética. Imediatamente impõe-se a conclusão: já que o processo de educação ética é, por princípio, antagônico a toda racionalização e esquematização, então ele não pode ter nenhuma afinidade com o ensino didático; é que este representa, por princípio o instrumento de educação racionalizado. Dando-nos aqui por satisfeitos com essa dedução tentaremos abaixo examiná-la à luz do atual ensino de moral.

Será que a bancarrota da educação ética é consequência dessas reflexões? Seria certamente o caso se irracionalismo significasse a bancarrota da educação. Irracionalismo significa apenas a bancarrota de uma ciência exata da educação. E a renúncia a uma teoria cientificamente fechada da educação moral parece ser de fato a consequência do que foi dito. Com efeito, torna-se novamente necessário esboçar a possibilidade da educação ética como um todo, mesmo que carente de unidade sistemática em relação aos detalhes.

O princípio da comunidade estudantil livre, da comunidade ética parece ser aqui de fundamental importância. A religiosidade representa a forma sob a qual a educação ética se realiza no interior da comunidade. Isto porque a comunidade vivencia íntima e continuamente um processo que engendra a religião e desperta a contemplação religiosa, processo que gostaríamos de designar por "plasmação" de todo elemento ético-empírico (como dado empírico). Todavia, a comunidade ética vivencia sistematicamente a transformação da norma em uma ordem empírica legal. A liberdade é a condição dessa vida, pois permite que o legal se adapte à norma. Mas o conceito de comunidade só é possível mediante essa norma. A essência da constituição moral da comunidade parece fundamentar-se na fusão do rigor ético na consciência do dever comum e na aceitação da vida ética pela ordem comunitária. Mas enquanto processo religioso opõe-se a toda análise mais profunda.

Isso nos leva a uma inversão peculiar de afirmações bastante atuais. Enquanto hoje em dia, por toda parte, multiplicam-se as vozes que defendem o princípio da independência entre ética e religião, parece-nos que só a religião, e tão-somente na religião, a vontade pura encontra seu conteúdo. O conteúdo de uma comunidade ética é plasmado religiosamente.

Isto é o que precisa ser dito, teórica e positivamente, sobre educação ética, antes que se formule uma crítica do ensino de moral em vigor. Nesta crítica deveremos anda manter sempre presente a reflexão já feita. Dito de uma maneira puramente dogmática, o perigo mais sério no ensino de moral consiste na motivação e legalização da vontade pura, isto é, na supressão da liberdade. Se a meta do ensino de moral é efetivamente a formação ética do estudante, então ele se encontra perante uma tarefa irrealizável. Ser-lhe-ia impossível ultrapassar o que foi dito aqui ou superar certas doutrinas kantianas se ele pretendesse permanecer no universalmente válido. A lei moral não se deixa apreender com maior exatidão pelos meios do intelecto, válidos universalmente. A religiosidade do indivíduo particular determina seus conteúdos concretos já no momento em que os recebe. As palavras de Goethe impedem que se ultrapasse as barreiras aqui estabelecidas ou que se penetre na relação ainda indefinida entre o indivíduo particular e a vida ética: "O mais elevado homem é indefinido e deve-se evitar plasmá-lo senão na ação nobre". Quem se permite hoje em dia (fora da igreja) a desempenhar o papel de mediador entre homem e Deus? Quem gostaria de introduzi-lo na educação, já que esperamos que toda vida ética emane do estar a sós com Deus?

Que o ensino de moral não possua sistema, que ele se propôs uma tarefa irrealizável - eis a expressão do mesmo fundamento errôneo.

Assim só lhe resta substituir a educação moral por uma espécie rara de educação cívica na qual tudo o que é necessário deve aparecer como espontâneo, e tudo o que é radicalmente espontâneo como necessário. Acredita-se poder substituir a motivação ética por exemplos racionalistas e não se percebe que a ética já está pressuposta nessa intenção ("Não se poderia dar pior orientação à ética do que quando se pretende fundamentá-la em exemplos. Pois todo exemplo que me é apresentado deve, antes de tudo, ser julgado segundo princípios da moralidade, para se determinar se ele é digno de servir  como exemplo original, como modelo; mas ele jamais poderá expressar o conceito de ética de maneira direta e imediata." - Kant). Nesse sentido em exemplo de como se pretende incutir o amor ao próximo em uma criança: durante o café da manhã se lhe descreve o trabalho das muitas pessoas, graças às quais é possível agora saborear os alimentos. Às vezes é muito triste que a criança receba tais visões da vida durante a aula de moral; mas essa exposição só influenciará uma criança que já conheça a simpatia e o amor ao próximo. Estes sentimentos a criança experimentará tão-somente na comunidade, nunca em uma aula de moral.

Que se observe de passagem: a "energia específica" do sentido moral, a capacidade de empatia moral, não se desenvolve pelo registro das motivações e dos exemplos, mas sim pela prática. Sempre existe o perigo de que o conteúdo do exemplo ultrapasse excessivamente a sensibilidade moral e a embote.
Uma certa inescrupulosidade de meios caracteriza o ensino de moral, uma vez que ele não dispõe da motivação ética propriamente dita; o ensino de moral faz uso não apenas de reflexões racionais, mas também, com preferência, de estímulos psicológicos. Poucas vezes se terá ido tão longe como um orador no congresso berlinense sobre o ensino de moral, o qual aconselhou, entre outras coisas, a apelar inclusive para o egoísmo do aluno (aqui só se pode tratar de um meio para a legalidade e não mais para a educação ética). Também a invocação da coragem heroica, a exigência e o elogio do extraordinário, por desembocarem na exaltação dos sentimentos, não tem nada a ver com a constância da atitude interior. Kant jamais se cansa de condenar tais práticas. A psicologia implica o perigo especial de uma auto-análise sofística, na qual tudo parece necessário, ganha um interesse genético, ao invés do moral. Aonde chegaríamos com a dissecação e classificação das diferentes espécies de mentira, tal como sugere um pedagogo da moral.

Como já foi dito, o especificamente ético perde-se por força; nesse sentido um outro exemplo característico, tomado, como os anteriores, da "Doutrina da juventude", de Forster. Um menino é surrado por seus companheiros. Forster argumenta: você revida para satisfazer seu instinto de auto-afirmação; mas quem é o seu inimigo mais constante, contra o qual a defesa é necessária? Sua paixão, seu instinto de vingança. Portanto sua afirmação consistiria no fundo não no revide mas na repressão do instinto interior. Aqui um exemplo da inversão pela interpretação psicológica. Em um caso semelhante é sugerido ao garoto surrado pelos seus companheiros que ele só triunfará se não se defender, pois assim a classe o deixará em paz. Mas o argumento da solução não tem a mínima relação com a motivação ética. A atmosfera fundamental do ético é a conversão e não a motivação através do interesse próprio ou alheio.

Aqui não seria o lugar adequado para entrar em detalhes a respeito de uma prática minuciosa e frequentemente perigosa do ponto de vista da moral. A respeito das analogias técnicas com a moral, sobre o tratamento moralista das coisas mais triviais, preferimos nos calar.
Para terminar, a seguinte cena de uma aula de caligrafia. O professor pergunta: "Que coisas horríveis não cometeria aquele aluno que não se obrigasse a observar as linhas tracejadas e as ultrapassa com sua letra?" A variedade das respostas pela classe foi surpreendente. Não representa esse fato um péssimo casuísmo? Não existe nenhuma relação entre atividades desse tipo (caligrafias) e sentimento moral.
Ao contrário do que se afirma, esse tipo de aula não é de forma alguma independente das concepções morais dominantes, ou seja, da legalidade. Na verdade aqui está dado de imediato o perigo de superestimar a convenção legal, pois a aula, com sua convenção racionalista e psicológica, só pode atingir o empírico, o preestabelecido, jamais a atitude ética. É em virtude de tais reflexões que a boa conduta, natural e espontânea por si mesma, aparece com frequência ao aluno como extraordinariamente significativa. O conceito sóbrio do dever está ameaçado de perder-se.

Contudo, se apesar de tudo isso e a despeito de toda reflexão, ainda se queira aula de moral deve-se então aceitar os perigos. Hoje em dia já não são perigosas as oposições dos primeiros cristãos: "bem-mal" como "espiritual-sensual"; perigosas são as antinomias "sensual-bom" e o "espiritual-mal", ambas as formas do esnobismo. 

Se, conforme vimos, o ensino de moral está demasiado longe de satisfazer uma experiência pedagógica exclusiva, ele terá entretanto sua importância enquanto estágio de transição. Não tanto por representar, conforme vimos, um elo demasiado imperfeito no desenvolvimento do ensino de religião, como por expressar concretamente as deficiências da formação atual. O ensino de moral combate o elemento periférico, carente de convicção em nosso conhecimento, combate o isolamento da formação escolar. O importante não é assenhorear-se, de fora, do conteúdo dessa formação, com a tendência do ensino de moral; importante é captar a própria história desse material de formação, captar portanto o espírito objetivo. Nesse contexto deve-se esperar que o ensino de moral constitua uma etapa de transição para um novo ensino de história, no qual também o presente encontre sua orientação histórico-cultural."

"Não devem, por fim, essas antiqüíssimas dores tronar-se mais fecundas para nós? Não é tempo de que, amando, nos libertemos do ser amado e, trêmulos, suportemos isso como a flecha suporta a corda tensionada para, recolhida do ímpeto, ser mais do que ela mesma. Pois em nenhuma parte existe o permanecer." (Rainer Maria Rike).

O pensamento contemporâneo, por buscar seu caminho em um campo que ainda lhe é desconhecido, tentando livrar-se das sombras do Deus metafísico, enreda-se inescapavelmente em aporias, paradoxos, contradições, que se anunciam como a crise da razão - uma variante desse nada desertificador que Nietzsche prenunciara com seu conceito de niilismo.

Essa crise se abate sobre todos os domínios da vida mental e consciente: nas ciências, nas artes, na moralidade, na política e mesmo na religião. Como enfrentar tal agrura, quando, após a  anunciada morte do Deus, todos os deuses se puseram em fuga, ameaçando o âmbito do sagrado e, assim, insinuando também a morte do homem, como o conhecemos até o presente? A esperança parece estar no pensar.

Para Heidegger, o pensar não se separa originariamente do agir - ele age enquanto se exerce como pensar. Nesse sentido, o pensamento não se transmuda em ação por causa do efeito que pode resultar de sua aplicação. O pensar é um agir em sentido especialmente elevado, não estando separado da ação por nenhum abismo a ser recoberto ou transposto pelas formas diversas de aplicação ou emprego.

Que significa entender? Entender é um pensar processual, dinâmico, comprometido com os porquês. O horizonte desse compromisso só pode ser o o pensamento - e só pode ser divisado a partir de uma relação pensante entre o ser do homem e a essência da técnica. É um pensamento irredutível à divisão compartimentada da racionalidade, um pensar refratário ao ativismo político, ao falatório estéril dos saberes insalubres, dos pequenos saberes, e que rasga as ligações entre o conhecer, o sentir, o imaginar, o lembrar, o cuidar e o esperar, como nos ensina Oswaldo Giacoia Junior.

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