“A proteção contratual no CDC (5ª feira,
19 de abril de 2018. Migalhas: 4340 por (Rizzatto Nunes).
Atendendo a
pedidos e também porque, a cada dia, nós da área jurídica, ficamos mais
inseguros na medida em que parece mesmo que se pode falar qualquer coisa a
respeito de qualquer coisa, tratarei de alguns dos princípios fundamentais para
se interpretar e entender os contratos no Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Por mais que a linguagem tenha, de fato, uma certa elasticidade, é muito
importante que nós possamos enxergar um horizonte seguro e possível de
interpretação. E, no caso específico dos contratos no CDC, há regras e
princípios que precisam ser respeitados.
Começo,
então, cuidando do dever de informar e do princípio da transparência. Com
efeito, o dever de informar é princípio e norma no CDC, por disposição do art.
6º, III, e art. 311.
De fato, na
sistemática da legislação consumerista o fornecedor está obrigado a prestar
todas as informações acerca do produto e do serviço, suas características,
qualidades, riscos, preço etc., de maneira clara e precisa, não se admitindo
falhas ou omissões.
Trata-se de
um dever exigido mesmo antes de se iniciar qualquer relação. Impõe-se ao
fornecedor o dever de informar, na fase pré-contratual, isto é, na oferta, na
apresentação e na publicidade. E essa informação obrigatória vai integrar o
contrato2.
Concomitantemente
ao dever de informar, aparece no CDC o princípio da transparência, traduzido na
obrigação de o fornecedor dar ao consumidor a oportunidade de conhecer o
conteúdo do contrato previamente, ou seja, antes de assumir qualquer obrigação.
Tal princípio está estabelecido no caput do art. 4º e surge como norma
no art. 46, de modo que, em sendo descumprido tal dever, o consumidor não
estará obrigado a cumprir o contrato3.
O CDC
reconhece um fato: o de que o consumidor é vulnerável na medida em que não só
não tem acesso ao sistema produtivo como não tem condições de conhecer seu
funcionamento (não tem informações técnicas), nem de ter informações sobre o
resultado, que são os produtos e serviços oferecidos4.
Esse
reconhecimento é uma primeira medida de realização da isonomia garantida na
Constituição Federal. Significa que o consumidor é a parte fraca da relação
jurídica de consumo. Essa fraqueza, essa fragilidade, é real, concreta, e
decorre de dois aspectos: um de ordem técnica e outro de cunho econômico.
O primeiro
está ligado aos meios de produção, cujo conhecimento é monopólio do fornecedor.
E quando se fala em meios de produção não se está referindo apenas aos aspectos
técnicos e administrativos para a fabricação de produtos e prestação de
serviços que o fornecedor detém, mas também ao elemento fundamental da decisão:
é o fornecedor que escolhe o que, quando e de que maneira produzir, de sorte
que o consumidor está à mercê daquilo que é produzido.
O segundo
aspecto, o econômico, diz respeito à maior capacidade econômica que, via de
regra, o fornecedor tem em relação ao consumidor. É fato que haverá
consumidores individuais com boa capacidade econômica e às vezes até superior à
de pequenos fornecedores. Mas essa é a exceção da regra geral.
Claro que
essa vulnerabilidade se reflete em hipossuficiência no sentido original do
termo — incapacidade ou fraqueza econômica. Mas o relevante na vulnerabilidade
é exatamente essa ausência de informações a respeito dos produtos e serviços
que se adquire.
Por isso
que, na interpretação dos contratos, tem-se de levar em conta a vulnerabilidade
e a hipossuficiência do consumidor.
Com base na
proibição de qualquer forma de abuso do direito, expressamente estabelecida nos
arts. 39 a 41 do CDC, que regula as práticas abusivas, firmou-se o entendimento
de nenhuma forma de abuso está permitida. A questão está fortemente enraizada e
surge de vez e definitivamente como princípio basilar nas relações de consumo,
obrigando o intérprete a considerá-la sempre como fonte para entendimento do
contrato.
Na
realidade, é preciso lembrar que o princípio do protecionismo é o que inaugura
o sistema da lei consumerista5. Decorre diretamente do texto
constitucional, que estabelece a defesa do consumidor como um dos princípios
gerais da atividade econômica (inciso V do art. 170) e impõe ao Estado o dever
de promover a defesa do consumidor (inciso XXXII do art. 5º).
Por isso, no
que tange às questões contratuais, não se pode olvidar o protecionismo que,
superadas as demais alternativas para interpretação, tem de ser levado em conta
para o deslinde do caso concreto.
Assim, vige
o princípio da interpretatio contra stipulatorem. Com base nele, nos
contratos de adesão, havendo cláusulas ambíguas, vagas ou contraditórias, a
interpretação faz-se contra o estipulante. Contudo, na lei consumerista, esse
princípio veio estampado de maneira mais ampla no art. 47, que estabeleceu que
"as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao
consumidor". Isto é, toda e qualquer cláusula, ambígua ou não, tem que ser
interpretada de modo mais favorável ao consumidor.
Por fim,
lembro que o princípio da boa-fé objetiva acabou formando um "chapéu"
em torno dos direitos subjetivos das partes, de modo que nenhuma forma de abuso
do exercício do direito pode ser tolerada. Isto é, a boa-fé limita o exercício
do direito subjetivo para evitar qualquer tipo de abuso, o mínimo que seja. E,
neste caso, o princípio aplica-se tanto ao fornecedor como ao consumidor.
Como
subproduto do princípio da boa-fé está o dever de cooperação e o dever de
cuidado, que examino na sequência.
O verbo
"cooperar" tem o sentido de operar simultaneamente, trabalhar em
comum, colaborar. Em termos contratuais, então, o dever de cooperação nada mais
é do que sempre colaborar para que o contrato atinja o fim para o qual foi
firmado.
Será
contrária ao dever de cooperação a ação do contraente que inviabilize a atuação
da outra parte quando esta tentar cumprir sua obrigação. Por exemplo, a ação do
fornecedor impondo certas dificuldades para que o consumidor efetue o
pagamento: limitação de horas, especificação de locais especiais etc.
O dever de
cuidado, por sua vez, diz respeito ao resguardo da segurança dos contraentes.
Em poucas palavras, pode ser traduzido no dever de um contraente para com o
patrimônio e a integridade física ou moral do outro contraente. É a obrigação
de segurança que a parte deverá ter para não causar danos morais ou materiais à
outra.
__________
1 "Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
(...) III — a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e
serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição,
qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem". "Art.
31. A oferta e a apresentação de produtos ou serviços devem assegurar
informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre
suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia,
prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que
apresentam à saúde e segurança dos consumidores".
2 Ver o teor do art. 30, que dispõe: "Toda
informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer
forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou
apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e
integra o contrato que vier a ser celebrado".
3 Art. 4º A Política Nacional das Relações de
Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o
respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses
econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e
harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios (...)
Art. 46. Os contratos que regulam as relações de
consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de
tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos
forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.
4 Art. 4º (...) I - reconhecimento
da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;
Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...)
VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do
ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for
verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras
ordinárias de experiências;
5 "Art. 1º O presente Código estabelece normas
de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos
termos dos art. 5º, inciso XXXII, 170,
inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições
Transitórias".
TEORIA DO DESVIO
PRODUTIVO.
Consumidores têm acionado o Poder Judiciário em
busca da reparação do dano que resulta na injusta
perda de tempo, com embaraços, dificuldades, protelações, demora no
atendimento, consertos sabidamente falhos e outras práticas comerciais abusivas
de fornecedores de produtos e serviços.
“Dúvida não há, enfim, de que o apelante
experimentou desgaste, perda de tempo, angústias e aflições. Aplica-se a
situações como a dos autos a chamada teoria do “Desvio Produtivo do Consumidor”,
sustentada pelo Ilustre advogado MARCOS DESSAUNE, na obra de mesmo nome (Editora
Revista dos Tribunais, 2011). Conforme o autor, “o desvio produtivo caracteriza-se
quando o consumidor, diante de uma situação de mau atendimento, precisa desperdiçar
o seu tempo e desviar as suas competências de uma atividade necessária ou por ele
preferida para tentar resolver um problema criado pelo fornecedor, a um custo de
oportunidade indesejado, de natureza irrecuperável”
Julgado pela 5ª Câmara de Direito Privado, em novembro
de 2013, o caso se tratava de problemas que uma consumidora teve com uma máquina
de lavar defeituosa. A consumidora acabou recebendo uma indenização de R$ 5 mil
pelo tempo perdido para tentativa de solução do problema.
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