IED – UNIDADE V a VI (Teoria da
Norma Jurídica e do Ordenamento Jurídico. Princípio de Legalidade. Caso)
Ordem Jurídica é uma das
acepções (interpretações) do termo Direito, que
designa um sistema de normas que regula a conduta humana e que, diferentemente
das demais ordens sociais, contém o elemento da coação, isto é, exige
determinado comportamento expresso por uma norma ligando o comportamento oposto
a um ato de coerção, apoiado no uso da força.
TEORIA DA
NORMA JURÍDICA: Segundo, Renata de Assis Calsing “O mundo jurídico não importa
em um campo de causalidade fática, mas sim de uma ordem de validade, que é o
plano do dever ser. Contudo, as normas jurídicas, mesmo estando no plano ideal,
referem-se a um fato concreto, gerando uma consequência no plano real. Desse
modo, a norma é algo abstrato enquanto dita hipóteses, mas passa
a incidir efetivamente quando o seu suporte fático se concretiza. A norma dita
regras que devem ser ou acontecer. Assim, o verbo “dever” significa que um ato
foi “programado” para ser executado por uma pessoa, intencionalmente. Na verdade,
a norma deve ser e o ato de vontade que a satisfaz representa o ser. Então, o dever
ser como dever ser objetivo é uma norma válida e vigente, que vincula os
destinatários. Destarte, todas as normas contêm uma previsão genérica de um
fato, com uma proposição categórica, que será exigível e obrigatória. Contudo,
o Direito, mesmo dando grande importância para os meios de efetivação de suas
normas, também atua como um sistema de criação de normas ideais, de princípios-guia
para a atuação social. A elaboração de normas do dever-ser, mesmo que não
cheguem a se concretizar, tem a sua função de orientação, de coordenação dos
valores sociais que são esperados da sociedade. Portanto, “uma norma jurídica
enuncia um dever ser, porque nenhuma regra descreve algo que (já) é”. E, se
assim fosse, o Direito perderia a sua função de coordenação da vida em
sociedade, para ser uma mera descrição de fatos. Consequentemente, toda norma,
desde o seu nascimento, delimita a sua aplicabilidade para culminarem sua
utilização prática. Desse modo, todo o corpo de normas criadas no âmbito do dever-ser
espera se concretizar, para definir o seu “status”, segundo sua finalidade
originalmente pretendida. O problema tema desse estudo reside, então, na tensão
existente entre o Direito, como sistema unificado de valores ideais, e a
aplicação concreta das normas. O Direito é inseparável de uma análise de
valores e fatos sociais, o que transmite para as normas a ideia dominante do e
no grupo de pessoas ou países que produzem a norma. Acontece que, certas vezes,
essas normas não correspondem aos valores de toda a sociedade, ficando em
ambientes separados os anseios sociais e a normatização jurídica. Essa dificuldade
de consenso entre a norma e o valor é especialmente agravada em temas polêmicos,
uma vez que a comunidade é formada de indivíduos e grupos com enormes diferenças,
tanto culturais, como físicas e políticas, além das sociais e jurídicas. Assim,
o primeiro passo para que possa haver a efetividade das normas jurídicas é
encontrar um consenso entre os valores que devem ser normatizados
e a edição de leis que versem sobre a proteção dos bens considerados de maior
importância no espaço/tempo determinados. O estudo da efetividade das normas
jurídicas é algo difícil e incerto. As normas jurídicas são dependentes dos
fatores socioeconômicos, sendo estudados pela interpretação do mundo real e não
da simples análise de sistemas cujas premissas levarão invariavelmente a um
resultado. Desta forma, o estudo e análise da efetividade do Direito são formas
de melhor entender o mundo atual, na sua máxima manifestação jurídica, mas sem
querer alcançar como resultado uma sistematização de regras para aferir a
efetividade dessas normas. Longe disso, o objeto de estudo do presente trabalho
é lançar luzes sobre como e porque certas normas funcionam e outras não.”
PRNCIPIO
DA ISONOMIA E DA LEGALIDADE (CF, art. 5º. “Todos são iguais perante a lei [...]”:
inciso II = “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de lei”.
O
CONHECIMENTO: Segundo Julio C Raffo (Introdução ao Conhecimento Jurídico, Rio
de Janeiro, Forense, 1983): “Pode-se caracterizar todo conhecimento como um ato
de apreensão de um objeto. O sujeito cognoscente apreende o objeto conhecido.
Há nesta forma uma representação do objeto conhecido. No conhecimento
científico esta representação do objeto é necessariamente conceitual. Isto é: o objeto será pensado conceitualmente. Não se
confunde o objeto com o conceito que a ele faz referência
significativa. O objeto é aquilo que é pensado no ato do conhecimento. Enquanto
que o conceito é uma estrutura significativa que organiza, no ato de pensar, o
objeto pensado. Assim, por exemplo, o conceito “mamífero” permite pensar certo
tipo de animais; o conceito “metal” permite pensar certo tipo de fenômeno da natureza
etc. Nestes casos, os conceitos unificam uma pluralidade de notas definitórias
que, por sua vez, permitem diferenciar uns objetos de outros: os mamíferos, dos
não mamíferos; os metais dos não metais etc. De modo que, no conhecimento, há
uma referência conceitual ao fenômeno que é feito objeto do conhecimento. [...].
Há diferentes classes de objetos aos quais pode-se fazer referência conceitual:
naturais, culturais, ideais. Há também diferentes classes de conceitos. Na
perspectiva de nosso interesse, diferenciamos os conceitos que fazem referência
a objetos em: conceitos de indivíduos, de espécie e de gênero. O conceito
individual faz referência a um único
objeto, determina um indivíduo; os conceitos de gênero e de espécie constituem
os conceitos “gerais”, fazem
referência a uma multiplicidade de objetos não individualizados previamente.
Eles definem características comuns a uma multiplicidade de objetos, sem
prejuízo de inúmeras diferenças que possamos encontrar entre eles. Assim, o
conceito “mamífero” faz referência a algumas características comuns de uma
multiplicidade de animais que entre eles podem apresentar inúmeras diferenças:
o cavalo, o cachorro e a baleia são “mamíferos”, isto é, apresentam algumas
características comuns: mamas, alimentação inicial etc., sem prejuízo das
diferenças que os distinguem. Estes conceitos gerais são de fundamental
importância no Direito porquanto com
eles as normas gerais caracterizam certas condutas – furto, contrato,
casamento, homicídio etc.
O
CONHECIMENTO JURÍDICO É UM DECIDIR. No conhecimento jurídico também nos
defrontamos com conceitos e com um objeto conhecido. Mas neste caso o fenômeno
feito objeto do conhecimento é um fenômeno de conduta; os conceitos com os quais se faz referência à conduta são conceitos normativos, isto é, conceitos
definidos pela norma jurídica. Trata-se assim de pensar o fenômeno de conduta
com os conceitos normativos. Vejamos um exemplo: a facada que Pedro deu em João
constitui um fenômeno de conduta; este fenômeno, feito objeto do conhecimento
jurídico, será pensado conceitualmente com algum destes conceitos normativos: “homicídio
simples”; “homicídio agravado”; “legítima defesa” etc., segundo sejam as
circunstâncias e a forma do fenômeno considerado. O conhecimento jurídico
consistirá assim em pensar o fenômeno de conduta com os conceitos normativos.
Este conhecimento – como todo conhecimento – poderá ou não errar, mas sua natureza
básica consiste neste relação norma-conduta efetivada pelo órgão. Quando o
órgão jurisdicional conhece juridicamente, decide
num ou noutro sentido. Assim o conhecimento jurídico é fundamentalmente um decidir. A partir do reconhecimento de
certos fatos, haverá uma decisão que caracterizará um ato de conduta como
sendo, ou não, uma transgressão (homicídio, furto, ilicíto civil) ou uma
prestação (pagamento, cumprimento, etc.). E é este decidir o caso submetido ao conhecimento jurídico o que determina
que este conhecer seja um “conhecimento de protagonista”, enquanto há nele um
assumir a decisão realizada.
O OBJETO NATURAL
E O CULTURAL. Sendo o Direito um fenômeno de conduta, torna-se preciso, agora,
examinar as características da conduta como objeto do conhecimento. A conduta é
um objeto cultural; constitui parte da cultura no sentido amplo da palavra. E a
cultura diferencia-se da natureza. Os objetos estudados pelas ciências naturais
(Física, Zoologia, Botanica etc., apresentam as seguintes características: são
reais, existem; estão na experiência, sendo perceptíveis sensorialmente, são neutros exiologicamente. Isto é: “seu
ser não é bom nem ruim, justo ou injusto, formoso ou feio”. Os objetos
culturais ou bens culturais são criados, de alguma, forma pelo homem, atuando
segundo valores; por exemplo: uma estátua, uma ferramenta, um edifício, uma
sinfonia, um discurso etc. Esses objetos são reais; existem; estão na
experiência, sendo perceptíveis sensorialmente; são valiosos positiva ou negativamente. Eles são belos ou feios, justos
ou injustos, úteis ou inúteis, bons ou ruins, etc. O valor destes objetos é uma
qualidade essencial, porquanto não existe objeto cultural que não expresse
valores. Não se deve pensar que somente são objetos culturais os objetos que
são “arte” em sentido estrito. A palavra “cultura” está aqui em seu sentido
mais amplo.
ESTRUTURA
DO OBJETO CULTURAL: Os objetos culturais comportam um substrato e um sentido. O
substrato (suporte material) é percebido sensorialmente. A pedra de mármore
branca de uma estátua pode ser palpável e observada. É o substrato que será o
ponto de partida para a compreensão do sentido. Este sentido é vivenciado a
partir do substrato, mas não se confunde com ele. Todo sentido se constitui em
referência a um valor. Todos os objetos culturais existem assim: como
existência de um sentido em algum substrato. Se é uma estátua, será ela formosa
ou feia em maior ou menor grau; se é uma ferramenta, será útil ou inútil; se é
uma lei ou uma conduta, será justa ou injusta. A neutralidade axiológica é
impossível em se tratando de objetos culturais. E sem esse sentido axiológico o
objeto cultural inexiste enquanto tal; sem o sentido, a Vênus de Milo não é uma
estátua, é uma determinada quantidade de quilos de mármore que tem, para o
laboratório, as mesmas propriedades que um outro pedaço qualquer do mesmo
mármore. O sentido do objeto cultural não se confunde com a intenção psicológica
do autor ou criador, nem com a finalidade por ele perseguida. O sentido
consiste naquilo que é objetivamente compreendido – e recriado – em cada ato de
conhecimento. O sentido de todo objeto cultural se constitui pela compreensão
social do mesmo e não pela intenção de seu criador. A conduta é um objeto cultural cujo substrato são as ações humanas.
Enquanto objeto cultural egológico, a conduta
apresenta-se também um substrato perceptível sensorialmente e um sentido
compreensível. O substrato consiste no fenômeno perceptível da ação: os
movimentos físicos ou a omissão destes movimentos. Assim o fato de um homem dar
uma facada outro, ou ficar imóvel em silêncio diante de alguém que agoniza ou,
ainda, entregar uma quantia de dinheiro, são ações que podem expressar
diferentes sentidos de acordo com as circunstâncias que integram e circundam
cada caso. Portanto, a morte de um homem por outrem poderá ser compreendida
como um homicídio, como legítima defesa ou mesmo como o cumprimento de um dever
legal; a entrega e recepção de dinheiro poderá ser um “pagamento”, “empréstimo”,
“doação”, “assalto” ou “fraude”. O mesmo fato de conduta poderá expressar diversos
sentidos, tais como o moral, o estético, o religioso, o jurídico. A dança de
uma bailarina pode ser esteticamente valiosa, por sua beleza intrínseca,
moralmente condenável, por realizar-se em detrimento da assistência que a filha
deve ao pai desenganado, religiosamente pode consistir num pecado, pelo tipo de
dança ou por aquela mesma razão, e, juridicamente, ser lícita, em se tratando
do cumprimento de uma obrigação contratual. Os diferentes sentidos de um fato
de conduta se determinam em função de diferentes conjuntos ou sistemas
normativos. As normas estéticas, morais, religiosas ou jurídicas permitem
determinar os sentidos estéticos, morais, religiosos ou jurídicos da conduta no
exemplo examinado. Estes sentidos serão objetivos,
na medida em que aquelas normas sejam vigentes
na comunidade e permitam compreender adequadamente o caso em questão.
A
COMPREENSÃO DA CULTURA: Se a explicação é a forma própria de conhecer o objeto
da natureza, a compreensão é a forma de conhecer a cultura. Segundo a expressão
de Dilthey, “a natureza se explica e
a cultura se compreende”. O
conhecimento do objeto cultural exige a percepção sensorial da matéria que o
sustenta e a compreensão do sentido
que a expressa. Assim, a pedra de mármore branca é conhecida pelo geólogo pela
explicação – seja de suas causas, seja de seus componentes – mas a estátua de
mármore branca não se explica; ela deve ser compreendida como “estátua”, “beleza”,
“sensualidade” etc., segundo o sentido que ela expressa.
O MÉTODO
DE CONHECIMENTO: O MÉTODO EMPÍRICO-DIALÉTICO. O método adequado dos objetos
culturais mundanos ou egológicos – é o método “empírico-dialético”. É empírico
porque parte da percepção sensível do substrato. Esta percepção do substrato
permite vivenciar e compreender o sentido que expressa. Assim, aquele objeto
branco que percebo à distância – substrato – é compreendido como “uma estátua”,
já expressando um sentido. Mas, se eu quero aprofundar minha compreensão deste
sentido, devo voltar à observação (percepção) do substrato – no caso o mármore –
e esta nova observação me permitirá compreender que se trata de uma estátua de
um homem e uma mulher: um homem no colo de uma mulher. A compreensão originária
foi enriquecida. Observando novamente o substrato compreendo mais: é um homem
morto no colo de sua mãe. A compreensão adquiriu conotações dramáticas. Agora
conheço – compreendo – mais. Se observo novamente mais detalhes, compreenderei
que se trata de um homem adulto, que foi torturado e executado de forma
socialmente desonrosa: foi crucificado. Agora compreendo que se trata de uma
mãe sustentando o filho que foi torturado e morto como delinquente.
Relacionando culturalmente esta compreensão, chego a compreender que se trata
de Maria, com Cristo crucificado no colo, estamos frente à Pietá, de Miguel
Ângelo. Se refletirmos sobre o processo descrito vemos o “diálogo” ou trânsito
dialético entre o substrato e o sentido, que me foi levando a aprimorar ou
aprofundar minha compreensão do sentido do objeto em questão.
A CONDUTA
E AS CIRCUNSTÂNCIAS. A compreensão do correto sentido da conduta não pode ser
alcançado sem um adequado conhecimento – compreensão – das circunstâncias nas
quais ela foi realizada. Isto é necessariamente assim, porque a conduta integra
com sua própria circunstância. Não pode uma ação ser adequadamente compreendida
sem atender às circunstâncias em que foi desenvolvida. Por exemplo, sabemos que
Pedro puxou uma arma, atirou e matou João; e nos perguntamos: qual é o sentido
deste fato de conduta? Essa conduta deve ser compreendida a partir das
circunstâncias que a definem. E, neste sentido, há infinitas possibilidades:
João era credor de Pedro e brigaram por causa disto; ou Pedro era inimigo
político de João; ou João era suspeito de matar a filha de Pedro etc. A análise
da ação realizada poderá determinar se houve ou não ameaça de João contra
Pedro, o que poderia configurar uma legítima defesa; a adequada compreensão do
sentido da conduta realizada não poderá ser feita sem a compreensão da
circunstância na qual ela se desenvolveu. Não se trata de dois elementos heterogêneos:
conduta e circunstância, mas do mesmo fenômeno complexo: conduta-na-sua-circunstância.
O ENTORNO
FÁTICO – MATERIAL – DA CONDUTA. Todo fato de conduta, como todo fato em geral,
aparece sempre rodeado de uma infinidade de elementos materiais. Assim, uma
ação se realiza num determinado lugar, uma rua, uma casa, um veículo, que por
sua vez está em certo bairro de uma determinada cidade, de certa região ou país
e onde há inúmeros elementos materiais; as pessoas têm certas vestes ou usam
certos instrumentos, os quais apresentam alguma cor, partes integrantes etc.
Assim a conduta pode ser vista como realizada num apartamento, na sala desse
apartamento, na sala que tem chão de madeira, que tem paredes de certa cor, que
tem um quadro, de certo autor, que representa certa paisagem, onde há certos
objetos representados etc. E, assim, podemos ir dividindo e subdividindo cada
um dos elementos da situação numa série ilimitada que constitui o entorno fático da conduta.
OS FATOS
COMO CIRCUNSTÂNCIAS DA CONDUTA. Quando falamos da circunstância da conduta, já
não a estamos considerando como fato, como simples substrato, mas como objeto cultural,
isto é, como um sentido que deve ser compreendido a partir da percepção do
substrato. A circunstância estará constituída pelos elementos do entorno fático
(ou material) que sejam relevantes
para o sentido. Não é qualquer elemento do entorno fático que integra a
circunstância, somente aqueles que permitem compreender o seu sentido, que
definem esse sentido, farão parte dela. Assim, por exemplo, a cor da roupa de
uma pessoa normalmente não é um elemento relevante para a compreensão do
sentido de sua conduta, mas sendo essa cor uma chocante combinação de cores
chamativas, pode caracterizar, num velório, uma injúria ou desrespeito à
memória do morto.
AS
CIRCUNSTÂNCIAS NA LEGISLAÇÃO. De muitas diversas formas são previstas as
circunstâncias da conduta nas diferentes ordens jurídicas. A título de exemplo vejamos
como podemos agrupar nas categorias explicadas algumas circunstâncias do caso,
geralmente relevantes para a lei penal:
a)
Circunstância
material: força irresistível, caso fortuito, lugar ermo, ato noturno,
calamidade pública, grupo armado, violência nas coisas, loucura, falta de
consciência, violência doméstica, idoso, criança, mulher etc.;
b)
Passado
biográfico: reincidência, vadiagem;
c)
Passado
imediato: premeditação, ameaça, provocação, ofensa grave, violenta emoção,
remuneração;
d)
Futuro
projetado: tentativa, dolo, promessa de recompensa;
e)
O outrem
como circunstância: menoridade, parentesco, obediência devida, abuso de
confiança, ofensa à autoridade, publicidade do ato.
A CONDUTA
COMO NÚCLEO SIGNIFICATIVO DA NORMA. Retomando a estrutura da norma jurídica,
lembramos aqui que ela define o conteúdo de diversos conceitos normativos, tais
como: fato temporal, prestação, alguém obrigado, alguém pretensor,
transgressão, sanção, responsável etc. Estes conceitos, em cada caso, farão
referência concreta a dados da experiência jurídica tais como: relação de
locação, aluguel, locador, não pagamento do aluguel, despejo do inquilino etc.
Mas podemos individualizar, como sendo o núcleo da norma jurídica duas ações
reciprocamente excludentes: a prestação e
a transgressão. É assim que podemos considerar estas condutas – prestação e
transgressão – o núcleo significativo
em torno do qual se estruturam os demais conceitos normativos. De modo que o “Alguém
obrigado” é o sujeito do dever re
realizar a prestação; l “Alguém pretensor” é o sujeito titular do direito de exigir a realização daquela conduta
etc. Todos os conceitos normativos são referência as às condutas
prestação-transgressão. Por esta razão, dizemos que a norma conceitua uma conduta que é o conteúdo
do dever (prestação) e que, se não realizada, configura o ato ilícito
(transgressão). Todos os conceitos estruturados pela norma fazem referência a
uma conduta que deve ser realizada e
que, não o sendo, determina a aplicação de uma sanção.
O CARÁTER
DAS NORMAS: NORMAS QUE “OBRIGAM”, QUE “PROÍBEM” OU QUE “PERMITEM” UMA CONDUTA.
Sabemos já que toda norma caracteriza uma prestação e, simultaneamente, uma
transgressão. E que não podemos caracterizar normativamente uma conduta como
prestação sem simultaneamente, caracterizar sua omissão como transgressão,
porquanto estes conceitos se co-implicam logicamente. Isto também acontece, e
pela mesma razão, no plano das modalidades “proibido” e “obrigatório”. Toda
norma obriga a realização da prestação e, simultaneamente, proíbe realizar a
transgressão. Nesta perspectiva não poderíamos diferenciar as normas que “obrigam”
das que “proíbem”, porquanto todas elas obrigam e proíbem simultaneamente.
A
formulação das leis, decretos etc., adota textualmente, a forma de proibições,
obrigações ou permissões. Assim é comum encontrarmos expressões tais como: “proibido importar mercadorias descritas
no anexo X”; “proibido fumar”; “proibido entrar” etc.; ou “o inquilino
está obrigado a pagar o aluguel do 1º
ao 5º dia de cada mês”, “o contribuinte deverá
apresentar sua declaração até o dia X”, “é obrigação do sócio integrar o capital subscrito no prazo
convencionado” etc. Esta ênfase, colocada na proibição ou na obrigação evita a
referência às condutas negativas (omissões). A expressão “proibido fumar” é de compreensão mais simples que a expressão “obrigatório não fumar”, ainda que as
duas expressem, normativamente, exatamente o mesmo. Igualmente a expressão “é obrigatório apresentar a declaração do
imposto” é de compreensão mais simples que a expressão “é proibido não
apresentar a declaração do imposto”.
Também
nos casos de normas que permitem uma
determinada conduta nos defrontamos com uma simplificação no texto legal. A
permissão tem o sentido jurídico de uma restrição de uma proibição mais ampla.
Trata-se de uma subclasse de condutas que estão excetuadas da punição prevista
para a classe geral dessas condutas. A conduta obrigatória é a conduta que deve ser realizada; a conduta proibida é a conduta que deve ser não
realizada; e a conduta permitida é a
conduta que, se realizada, não dará lugar à sanção prevista para um gênero
dessas mesmas condutas. Assim segundo seja a perspectiva normativa que o texto
legal ou normativo em geral adota para fazer referência à conduta, falaremos de
“normas que obrigam”, “normas que proíbem”
e “normas que permitem”. Esta
designação é adequada à forma corrente e simples da linguagem jurídica, onde se
diferencia a norma que proíbe da que obriga e da que permite certa conduta.
OS
LIMITES AMBÍGUOS DA CLASSE DE CONDUTAS DEFINITA PELA NORMA. Temos explicado que
as normas definem uma classe de condutas. Esta definição é realizada
conceitualmente e abrange uma quantidade variável de casos individuais. A norma
que faz referência aos “brasileiros homens” em relação à obrigação militar,
abrange um número maior de casos do que a norma que faz referência aos “importadores
de artigos eletrônicos”. Mas o que queremos destacar aqui é que os limites da
classe de condutas definidas pelas normas não são limites claros e terminantes,
que sempre distinguem com clareza que casos estão dentro e quais estão fora da
dita classe. Este halo de indeterminação é uma consequência das características
das palavras utilizadas para caracterizar as condutas previstas. Todas as
palavras que fazem referências a fatos se originaram como nomes atribuídos a
exemplos claros destes fatos, os quais constituem “tipos empíricos”, porquanto
são objetos de uma tipificação baseada na experiência. Mas a realidade não se
apresenta dividida em zonas descontínuas, pelo contrário, entre os tipos
empíricos mais dissímeis, sempre há uma gama de fatos que configuram uma zona
intermediária que não é facilmente enquadrada num ou noutro tipo empírico.
Vejamos, por exemplo, os conceitos de “homem” e “mulher”. Na maioria dos casos
será fácil o enquadramento do humanos numa ou noutra categoria conceitual, mas
há casos tais como os hermafroditas, andróginos etc., que constituem uma
realidade intermediária que não é fácil de enquadrar. O mesmo acontece com
conceitos como “preto” e “branco”; “lugar aberto” e “lugar fechado”, etc. Até
nos conceitos de “vida” e “morte” se apresenta uma zona de ambiguidade no caso
daqueles doentes ou acidentados considerados clinicamente mortes apesar de
apresentarem sinais que, até há pouco tempo, eram considerados indícios de
vida. Estes casos são juridicamente importantes, porquanto, a partir deles, se
realizam os transplantes cardíacos ou se levanta a questão da eutanásia. Em
muitos casos são estas zonas de indeterminação, derivadas da “textura aberta”
de linguagem, o que não permite definir com clareza se um caso está dentro ou
fora da classe prevista na norma. Cada vez que nos defrontarmos com um caso –
fato – que, por suas características, fique na zona de ambiguidade da classe de
condutas definidas pela norma, haverá que decidir
se se considera ou não esse caso incluído nas previsões dessa norma. Não se
tratará de verificar, mas de decidir
com um critério axiológico, valorativo.
CASO
CONCRETO (APOSTILA): Joselickson Albuquerque, brasileiro, solteiro, 25 anos,
morador no Condomínio Alto Tupinambá, em São Luiz do Maranhão, foi preso em flagrante
delito, vendendo substância entorpecente num show de cantores de sertanejo
universitário. Em sua defesa alega que não deve ser enquadrado no tipo penal
previsto na Lei nº 11.343/06, Lei de Entorpecentes, porque não concorda com a
criminalização de sua atitude já que é filho de um rico empresário, considerado
como? gente fina e elegante?
na
sociedade local e possui? mente aberta diferente do restante desse pessoal
antiquado?
Diante do
caso narrado responda:
a)
É certada
a defesa feita por Joselickson. Sim ou não? JUSTIFIQUE baseando-se na
característica da heteronomia e da imperatividade das normas jurídicas.
b)
Classifique
a norma jurídica (Lei nº 11.343/06, Lei de Entorpecentes) utilizada para
enquadrar a conduta de Joselickson quanto ao critério da sanção e ao critério
da natureza.
CASO
CONCRETO 2:
(RIZZATTO
NUNES, A JUSTIÇA NO CASO CONCRETO, MIGALHAS 4.330, de 05/04/2018). Hoje deixo
de lado o Direito do Consumidor para, num curto texto, singelo, mas que entendo
ser muito simbólico, cuidar do sentido de Justiça. Nos últimos dias (aliás, nos
últimos meses) a Justiça tem sido o centro das atenções no Brasil. E escrevo
este texto no dia de um julgamento muito importante no STF (cujo resultado não
conheço, pois escrevo agora, nesta quarta-feira, dia 4 de abril, pela manhã).
Há
muito o que se falar sobre a Justiça. Mas vou apenas ilustrar o assunto,
citando uma decisão judicial que está no meu Manual de Filosofia do Direito1
e que, penso, serve de inspiração àqueles que resolverem refletir sobre o tema.
Trata-se
de uma sentença proferida numa vara criminal de Porto Alegre que, como digo aos
estudantes de Direito no livro, serve de alento de que a Justiça pode ser
feita. Eis o texto:
"M.A.D.A., com 29 anos, brasileiro,
solteiro, operário, foi indiciado pelo inquérito policial pela contravenção de
vadiagem, prevista no artigo 59 da Lei das Contravenções Penais. Requer o
Ministério Público a expedição de Portaria Contravencional. O que é vadiagem? A
resposta é dada pelo artigo supramencionado: 'entregar-se habitualmente à
ociosidade, sendo válido para o trabalho...'. Trata-se de uma norma legal
draconiana, injusta e parcial. Destina-se apenas ao pobre, ao miserável, ao
farrapo humano, curtido vencido pela vida. O pau de arara do Nordeste, o
boia-fria do Sul. O filho do pobre, que é pobre, sujeito está à penalização. O
filho do rico, que rico é, não precisa trabalhar, porque tem renda paterna para
lhe assegurar os meios de subsistência.
Depois
se diz que a lei é igual para todos! Máxima sonora na boca de um orador, frase
mística para apaixonados e sonhadores acadêmicos de Direito.
Realidade
dura e crua para quem enfrenta, diariamente, filas e mais filas na busca de um
emprego. Constatação cruel para quem, diplomado, incursiona pelos caminhos da
Justiça e sente que os pratos da balança não têm o mesmo peso. M.A. mora na
Ilha das Flores (?) no estuário do Guaíba.
Carrega
sacos. Trabalha 'em nome' de um irmão. Seu mal foi estar em um bar na
Voluntários da Pátria, às 22 horas. Mas se haveria de querer que estivesse numa
uisqueria ou choperia do centro, ou num restaurante de Petrópolis, ou ainda
numa boate de Ipanema? Na escala de valores utilizada para valorar as pessoas,
quem toma um trago de cana, num bolicho da Volunta, às 22 horas, e não tem
documento, nem um cartão de crédito, é vadio. Quem se encharca de uísque
escocês numa boate da Zona Sul e ao sair, na madrugada, dirige (?) um belo
carro, com a carteira recheada de 'cheques especiais', é um burguês. Este, se é
pego ao cometer uma infração de trânsito, constatada a embriaguez, paga a
fiança e se livra solto.
Aquele,
se não tem emprego, é preso por vadiagem. Não tem fiança (e mesmo que houvesse,
não teria dinheiro para pagá-la) e fica preso. De outro lado, na luta para
encontrar um lugar ao sol, ficará sempre de fora o mais fraco. É sabido que
existe desemprego flagrante. O zé-ninguém (já está dito) não tem amigos
influentes, não há apresentação, não há padrinho, não tem referências, não tem
nome, nem tradição. É sempre preterido. É o Nico Bondade, já imortalizado no
humorismo (mais tragédia que humor) do Chico Anísio. As mãos que produzem
força, que carregam sacos, que produzem argamassa, que se agarram na picareta,
nos andaimes, que trazem calos, unhas arrancadas, não podem se dar bem com a
caneta (veja-se a assinatura do indiciado a fls. 5v.) nem com a vida. E hoje,
para qualquer emprego, exige-se no mínimo o primeiro grau. Aliás, grau acena
para graúdo. E deles é o reino da terra. Marco Antonio, apesar da imponência do
nome, é miúdo. E sempre será. Sua esperança? Talvez o Reino do Céu. A lei é
injusta. Claro que é. Mas a Justiça não é cega? Sim, mas o Juiz não é. Por
isso: Determino o arquivamento do processo deste inquérito.
Porto
Alegre, 27 de setembro de 1999.Moacir Danilo Rodrigues. Juiz de Direito — 5ª Vara Criminal".
RESPONDA:
Nas circunstâncias atuais, o art. 59, da Lei das Contravenções Penais, que
trata do tipo/contravenção “vadiagem”, pode ser considerada constitucional,
diante do princípio da isonomia?
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