sexta-feira, 10 de abril de 2015

Lei Justa: uma dinâmica ambígua

     A afirmação da existência de uma lei justa, aplicável a todos, era conforme à concepção do mundo dos estoicos. Encontramos uma expressão eloquente nesta passagem de Cícero: "Existe uma lei verdadeira, razão reta conforme à natureza, presente em todos, imutável, eterna; ela chama o homem ao bem com seus mandamentos e o desvia do mal com suas interdições, seja que ordene ou proíba, ela não se dirige em vão às pessoas de bem, mas não exerce a menor influência sobre os maus. Não é permitido infirmá-la por outras leis, nem derrogar um de seus preceitos; é impossível ab-rogá-la por inteiro. Nem o Senado nem o povo pode nos libertar dela, e não se deve buscar fora de nós alguém para explicá-la e interpretá-la. Ela não será diferente nem em Roma nem em Atenas, e não será no futuro diferente do que é hoje, mas uma única lei, eterna  e inalterável, regerá a um só tempo todos os povos, em todos os tempos; um único Deus é, de fato, como o mestre e o chefe de todos. Ele que é o autor dessa lei, que a promulgou e a sancionou. Quem não a obedece foge de si mesmo, renegando sua natureza humana e se reserva os maiores castigos, mesmo que logre escapar aos outros suplícios [o dos homens]." (Da República, III, XXII, 33). Essa descrição até parece uma profecia. É como acentua Hans-Georg Flickinger (Entre Caridade, Solidariedade e Cidadania, Porto Alegre, EDIPUCRS, 2000, p.5) Cada vez mais, o mundo atual interconecta-se. No decorrer das últimas décadas, observa-se uma interpenetração crescente não só entre as diversas culturas, também a nível técnico-científico ou sócio-político. Então, as categorias tradicionais, por meio das quais nos habituamos, antes, a marcar as diferenças profundas encontradas em âmbito global, não cumprem mais este papel diferenciador, na medida em que a interdependência dos "mundos" torna-se uma padrão novo em nosso cotidiano. Atualmente, não faz mais sentido falar de diferenças entre o Primeiro e Terceiro Mundos, sem mencionar a infiltração não somente do Primeiro no Terceiro, senão, também, do Terceiro no Primeiro. A migração global dá prova disto. Também não seria correto falar sobre o processo de globalização, sem lembrar o fato de que, de seu avesso e ainda por ele motivados, reforçam os impulsos fundamentalistas e nacionalistas. Mais um exemplo: ao mesmo tempo em que encontramos, nos mercados de qualquer cidade, as frutas mais exóticas de todos os canteiros do Mundo, independentemente da estação de sua produção local, aumenta a demanda por alimentos de produção ecológica, a qual é dirigida, devido à sua natureza própria, apenas ao abastecimento dos mercados locais. Ao meu ver, há uma dinâmica ambígua, imanente ao desenvolvimento atual, que nos obriga a tomar a sério as diferenças, sem denunciar precipitadamente sua aceitabilidade. Um reconhecimento inevitável, portanto, para quem busca compreender a si mesmo e o seu lugar no conjunto por meio da experiência de outras culturas, políticas e normas de sociabilidade. Em última instância, a perda de marcos claros de orientação, no confronto permanente com outras tradições, deveria oferecer-nos a chance de uma aprendizagem mútua, mesmo que esta, por vezes, nos levasse a irritações profundas. Essa advertência é importante porque ela nos alerta e sugere a reflexão sobre o etnocentrismo que ainda está presente na vida de relação, quando o mundo, conforme a descrição de Cícero, já não comporta mais essa visão, ou seja, a tendência ao universalismo cultural se acentua cada vez mais. 

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