sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Argumentação e Evidência

     A pesquisa empreendida por Chaim Perelman (in Tratado da Argumentação) aponta que com "A publicação de um tratado consagrado à argumentação e sua vinculação a uma velha tradição, a da retórica e da dialética gregas, constituem uma ruptura com uma concepção da razão e do raciocínio, oriunda de Descartes, que marcou com seu cunho a filosofia ocidental dos três últimos séculos. Com efeito, conquanto não passe pela cabeça de ninguém negar que o poder de deliberar e de argumentar seja um sinal distintivo do ser racional, faz três séculos que o estudo dos meios de prova utilizados para obter a adesão foi completamente descurado pelos lógicos e teóricos do conhecimento. Esse fato deveu-se ao que há de não-coercivo nos argumentos que vêm ao apoio de uma tese. A própria natureza da deliberação e da argumentação se opõe à necessidade e à evidência, pois não se delibera quando a solução é necessária e não se argumenta contra a evidência. O campo da argumentação é o do verossímil, do plausível, do provável, na medida em que este último escapa às certezas do cálculo. Ora, a concepção claramente expressa por Descartes, na primeira parte do Discurso do método, era a de considerar "quase como falso tudo quanto era apenas verossímil". Foi ele que, fazendo da evidência a marca da razão, não quis considerar racionais senão as demonstrações que, a partir de idéias claras e distintas, estendiam, mercê de provas apodícticas, a evidência dos axiomas a todos os teoremas. [...] Daí resulta que o desacordo é sinal de erro. "Todas as vezes que dois homens formulam sobre a mesma coisa um juízo contrário, é certo", diz Descartes, "que um dos dois se engana. Há mais, nenhum deles possui a verdade; pois se um tivesse dela uma visão clara e nítida poderia expô-la a seu adversário, de tal modo que ela acabaria por forçar sua convicção". Para os partidários das ciências experimentais e indutivas, o que conta é menos a necessidade das proposições do que a sua verdade, sua conformidade com os fatos. [...] É racional, no sentido lato da palavra, o que é conforme aos métodos científicos; e as obras de lógica consagradas ao estudo dos meios de prova, limitadas essencialmente ao estudo da dedução e habitualmente completadas por indicações sobre o raciocínio indutivo, reduzidas, aliás, não aos meios de construir mas verificar, as hipóteses, aventuram-se muito raramente no exame dos meios de prova utilizados nas ciências humanas. [...] Opondo a vontade ao entendimento [...], o coração à razão e a arte de persuadir à de convencer, Pascal já procurara obviar as insuficiências do método geométrico resultantes do fato de o homem decaído, já não ser unicamente um ser de razão. [...] Parece-nos, ao contrário, que esta é uma limitação indevida e perfeitamente injustificada do campo onde intervém nossa faculdade de raciocinar e de provar. [...] É a ideia de evidência, como característica da razão, que cumpre criticar, se quisermos deixar espaço para uma teoria da argumentação que admita o uso da razão para dirimir nossa ação e para influenciar a dos outros. A evidência é concebida, ao mesmo tempo, como força à qual toda mente normal tem de ceder e como sinal de verdade daquilo que se impõe por ser evidente. A evidência ligaria o psicológico ao lógico e permitiria passar de um desses planos para o outro. Toda prova seria redução à evidência e o que é evidente não teria necessidade alguma de prova: é a aplicação imediata, por Pascal, da teoria cartesiana da evidência. Já Leibniz se insurgira contra essa limitação que queriam, assim, impor à lógica. Ele queria, de fato, "que demonstrassem ou proporcionassem o meio de demonstrar todos os Axiomas que não são primitivos; sem distinguir a opinião que os homens têm deles e sem se preocupar-se, para tanto, eles lhe dão seu consentimento ou não". Ora, a teoria lógica da demonstração desenvolveu-se seguindo Leibniz, e não Pascal, e não admitiu que o que era evidente não tinha necessidade alguma de prova; da mesma forma, a teoria da argumentação não se pode desenvolver se toda prova é concebida como redução à evidência. Com efeito, o objeto dessa teoria é o estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhes apresentam ao assentimento. O que caracteriza a adesão dos espíritos é sua intensidade ser variável: nada nos obriga a limitar nosso estudo a um grau particular de adesão, caracterizado pela evidência, nada nos permite considerar a priori que os graus de adesão a uma tese à sua probabilidade são proporcionais, nem identificar evidência e verdade. É de bom método não confundir, os aspectos do raciocínio relativos à verdade e os que são relativos à adesão, e sim estudá-los separadamente, nem que seja para preocupar-se posteriormente com sua interferência ou com sua correspondência eventuais. Somente com essa condição é que possível o desenvolvimento de uma teoria da argumentação de alcance filosófico." Pois bem, já mediante esses recortes é possível perceber que quando se desenvolve discursos argumentativos, como é o caso do Direito, a questão da evidência fica inadequada. Pois, para o Direito, em vez de evidência e necessidade, que são aplicáveis às ciências demonstrativas, adequado é a possibilidade.

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