terça-feira, 12 de novembro de 2013

O deslocamento no discurso de acusação de Jesus

     Jesus teve de suportar duas acusações, após ser preso: uma religiosa e outra civil. Se a preponderante foi a primeira, com a decisão da própria morte, foi, todavia, o veredito da segunda que o levou definitivamente ao fim. Assim, o tribunal religioso era representante do povo hebreu e o tribunal civil era representante dos povos pagãos, isto é, dos demais povos, a morte de Jesus foi, portanto, causada por todos os povos da terra. E assim predisse o próprio Jesus: "O Filho do Homem será entregue aos sumos sacerdotes e escribas. Eles o condenarão à morte e o entregarão aos gentios para ser escarnecido e sacrificado" (Mt 20:18-19). Com efeito, a acusação religiosa contra Ele começou provavelmente cerca de meia-noite com um interrogatório da parte de Anás, se bem que não oficial, pois este não mais era sumo sacerdote e a hora imprópria. Interrogou-O acerca de seus discípulos e de seus ensinos e já que juridicamente um acusado não podia dar testemunho válido de si mesmo, digno de fé, havendo outrem, tal foi a resposta de Jesus: "Eu falei abertamente ao mundo, ensinei sempre nas sinagogas e no templo, onde se reúnem os judeus; nada falei às ocultas. Por que me interrogas? Perguntai aos que ouviram o que lhes ensinei e eles bem sabem o que Eu falei" (Jo 18:20-21). E nesse momento recebeu Jesus um bofetão de um dos guardas que lá estavam e que se escandalizaram: "É assim que respondes ao sumo sacerdote?" Ao que Jesus respondeu: "Se falei mal, mostra em quê; se falei bem, por que me bates?" (Jo 18:22-23). Esperava Anás do inquirido palavras que lhe fornecessem argumentos para a próxima acusação oficial, mas ou ouvi-lo certo ficou de tal modo aturdido que tratou logo de remeter o preso a seu genro Caifás. E apesar de tantas acusações, Jesus permaneceu calado. Porém, o mais grave para o tribunal foi a confissão de Jesus à pergunta manifestada solene e decidida de Caifás: "Eu te conjuro pelo Deus vivo que nos diga se és o Messias, o filho de Deus!". Firme foi a resposta de Jesus: "Vós o dissestes! Aliás eu vos declaro: de agora em diante vereis o Filho do Homem a direita da Onipotência e vir sobre as nuvens do céu!". Foi então que o Pontífice rasgou as vestes, exclamando: Blasfemou! Que necessidade temos ainda de testemunhas? Eis que acabais de ouvir a blasfêmia! Que vos parece? Sem titubeio, a resposta dos presentes foi: "É réu de morte" (Mt 26:62-66). E assim, após mais alguns atos, terminou a acusação religiosa em face de Jesus: "É réu de morte por ser blasfemador!". Mas como poderiam condená-Lo à morte se estava a nação sob o domínio de Roma? Requeria, em consequência, levar Jesus ao tribunal da autoridade romana competente para ser julgado: é a necessária acusação civil. Sabia, todavia, o Sinédrio não ser tal possível justamente porque as razões eram de natureza religiosa. O levaram, entretanto, mediante uma engenhosidade, ao tribunal do magistrado de Roma (Pôncio Pilatos) para outra acusação, por motivos políticos, perante o qual, a multidão, fora do pretório, dirigiu-se Pilatos: "Que acusação há contra este homem?". "Se, responderam, não fosse um malfeitor, não vô-lo entregaríamos" (Jo 18:29-30). Tal não era uma acusação, mas implícita esperança de acatamento do julgamento anterior. Não duvidava Pilatos de que eram questões relativas à religião, por isso foi taxativo: "Levai-o vós mesmos, e julgai-o conforme a vossa Lei" (Jo 18:31). Certo que tais palavras não significavam que os acusadores pudessem fazer o que quisessem com o acusado; apenas esperava fosse o caso resolvido mediante leis judaicas, que excluíam a pena capital. Todavia, precisamente aqui aflorava o ponto delicado e os acusadores o assinalavam indiretamente: "A nós não é lícito matar ninguém" (Jo 18:31). Esta resposta manifestava ao procurador o secreto desejo dos acusantes, fazendo-lhe ainda entrever o que havia sucedido no Sinédrio à noite, e, por outro lado, dava-lhe entender que, para a multidão, o Messias era um homem já condenado à morte. E apesar de tudo, para convencer o novo juiz, requeriam provas, provas de outra natureza que não as de religião: "Encontramos este homem subvertendo a nossa nação, impedindo que se paguem os impostos a Cesar", e ademais "pretendendo ser o Messias Rei" (Lc 23:2). Daí, não haver dúvida de que tal acusação, estritamente política, perante o delegado de Cesar, vinha, em conseguinte, substituir as acusações religiosas diante do Sinédrio. Assim, fora Jesus indiciado como um revolucionário a exemplo de Judas, o Galileu (Flávio José na "História da guerra judaica contra os romanos"). Daí em diante outros fatos aconteceram, por exemplo, notificado Pilatos de que Jesus era da Galiléia, da jurisdição de Herodes Antipas, para lá foi remetido Ele. E Herodes cedeu à pressão. 

     Para finalizar este relato, resta a notícia veiculada de que em 1933, ao memorar a Igreja Católica, 1900 anos da morte de Jesus, foi em Jerusalém instituído um tribunal oficioso composto de cinco insignes israelenses com o propósito de reexaminar a antiga sentença do Sinédrio, cujo veredito, pronunciado por esse tribunal, por quatro votos favoráveis contra um, foi que a sentença do Sinédrio devia ser retratada porque "a inocência do indiciado era manifesta. A condenação veio a ser um dos mais terríveis erros que os homens haviam cometido, e, reparando, a raça judaica seria honrada!" (Revista "Jerusalém", Paris, maio-junho de 1933, p. 464). Certamente que sim.

     

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