domingo, 3 de novembro de 2019

FACULDADE DE DIREITO ESTÁCIO DE CURITIBA - IED - 2019.2 - AULA 9

HERMENÊUTICA JURÍDICA

Um dos aspectos mais importantes da teoria geral do direito versa a respeito da hermenêutica jurídica. Trata-se do vasto campo do conhecimento jurídico que se refere à interpretação das normas, à compreensão, tendo em vista a aplicação aos problemas concretos apresentados ao jurista. Muitas discussões e possibilidades teóricas distintas envolvem a questão da hermenêutica. Elas implicam o próprio modo pelo qual irá se compreender e construir o fenômeno jurídico. 

1. Hermenêutica Jurídica e história

A palavra hermenêutica remete à mitologia grega. O deus grego Hermes tinha a habilidade de conversar tanto com os deuses quanto com os mortais. Por isso, servia de comunicação entre ambos. Desse mito decorre que a interpretação seja chamada por hermenêutica.

2. Interpretação autêntica e doutrinária

A interpretação autêntica, para Kelsen, é aquela que é feita por meio da autoridade juridicamente competente para aplicar a norma jurídica. O juiz de direito, no momento em que prolata a sentença, está impondo uma interpretação das normas que deverá ser cumprida pelas partes. Já a interpretação doutrinária, para Kelsen, é toda aquela que é feita por pessoas e órgãos que não sejam autoridades competentes. Um professor de direito, quando relata a respeito de uma norma jurídica numa sala de aula de faculdade de direito, faz uma interpretação doutrinária.

3. Hermenêutica jurídica e poder

Até mesmo a teoria de Kelsen, quando trata a respeito da interpretação, expõe o problema da hermenêutica jurídica: ela é um procedimento de poder. O jurista não se desconecta de sua situação existencial. Depara-se o jurista com casos, e, em cada qual desses casos, ele tem um lado e uma específica perspectiva de seu afazer jurídico. Seja advogado ou promotor, ele está em defesa ou acusação de uma parte. E ainda que seja juiz, ou então doutrinador, afastado a princípio do problema, ele é alguém que tem convicções, experiências, ideologia, compromissos políticos, econômicos, culturais, religiosos, de classe social. Daí que o jurista nunca analisa a norma a partir do nada. Ele lê a norma de acordo com sua própria visão de mundo.

Os mais importantes filósofos da hermenêutica do século XX encaminham a questão da interpretação a partir do reconhecimento da situação existencial do intérprete. Nas palavras de Heidegger e principalmente de Gadamer, toda interpretação é uma pré-compreensão. Para eles, compreender é um apreender-com, ou seja, é uma tomada de entendimento a partir de uma determinada situação, construída socialmente. 

Assim sendo, interpretar não é observar com olhar externo o texto da norma e sim dar concretude a ela. A hermenêutica jurídica não é uma especulação isolada. Ela sempre está orientada para os fins da aplicação do direito. 

4. Hermenêutica jurídica e linguagem

Logo de início, os aspectos sintáticos da norma jurídica ressaltam ao seu intérprete. O jurista estabelece uma linguagem própria, e, a partir dela, de seus referenciais, de seus signos e significados, desenvolve-se o procedimento de criação de normas e também de sua compreensão, seja ela científica ou aplicadora. O jurista se depara, ao lado de toda a semiótica geral do poder - os símbolos visuais, o poder efetivo e bruto da violência física, do monopólio dessa violência institucionalizada - também com a semiótica do texto. A norma jurídica não se confunde com o texto que é sua expressão. A norma jurídica é maior que o texto. Por isso, uma teoria da hermenêutica normativa deve tratar da linguagem, claro que não deve se restringir a ela, porque, embora um elemento fundamental e preponderante nas sociedades capitalistas, as palavras da norma não exprimem a totalidade da própria norma.

5. Métodos de hermenêutica Jurídica

No que respeito aos métodos hermenêuticos, a teoria geral do direito costuma dividi-los em três categorias. No primeiro dos métodos, o mais primário, estão as ferramentas da interpretação gramatical, da interpretação lógica e da interpretação sistemática. A gramatical é aquela compreensão que o jurista realiza a partir da própria língua, de sua estrutura sintática, do conjunto de suas palavras, dos verbos que exprimem condutas. A lógica procede de acordo com as ferramentas lógicas que clarificam o sentido e a compreensão do texto com auxílio dos princípios lógicos: de identidade e do terceiro excluído. Por exemplo, quando uma norma versa sobre o pagamento do Imposto de Renda, não está tratando sobre o ICMS. A sistemática é aquela que se faz tendo por base a compreensão da norma no contexto do ordenamento ou do sistema jurídico. Trata-se de interpretar a norma relacionando-a com as outras normas do ordenamento, comparando-a com os princípios do sistema, descobrindo eventuais ambiguidades, a validade, a vigência ou o perecimento ou extinção da norma.
Já em outro nível hermenêutico a interpretação deve sair do texto da norma e chegar ao seu contexto. Pertencem, aqui,  a esse método hermenêutico, de exigências maiores. Primeiro, a interpretação histórica que é aquela que busca fixar as circunstâncias que, em determinado tempo histórico, levaram à formação da norma jurídica. Segundo, vem a interpretação sociológica, a qual vai buscar, na sociedade, as causas que deram base à formação da norma. Exemplos: os conflitos sociais, as lutas de classe, as contradições, os interesses em jogo, a cultura, pressões políticas, econômicas, religiosas etc. A interpretação evolutiva é aquela que valendo-se da própria história e da sociologia compreenderá mudanças, correções de sentido, novos entendimentos ou rupturas no que tange à hermenêutica da norma jurídica. Terceiro, a interpretação teleológica que é aquela que busca nas normas e nas situações jurídicas, a compreensão de seus propósitos, finalidades, objetivos visados. 

6. Tipos de hermenêutica jurídica

Os métodos de hermenêutica jurídica são ferramentas para a fixação do entendimento do jurista. Por aí ele constrói o sentido da norma jurídica. Tais métodos, em geral, acabam por restringir, por ampliar ou por simplesmente fixar melhor os termos de sua compreensão. No que diz respeito a essa dimensão da interpretação, tendo em vista os seus resultados, costuma-se falar de tipos de hermenêutica jurídica. Tradicionalmente, o jurista trata, nesse campo, da interpretação especificadora, da interpretação restritiva e da interpretação extensiva. A interpretação especificadora é aquela que fixa os limites de um determinado conceito jurídico, sem pretender estendê-lo para outras circunstâncias nem sequer reduzi-lo oara menos do que se apresenta. No direito penal, quando se trabalha com a ideia de tipo penal, está a fazer, em geral, uma hermenêutica de tipo especificador. No caso de interpretação restritiva, o jurista procede a uma hermenêutica das normas jurídicas que delimita a sua compreensão de modo a diminuir as hipóteses de sua aplicação. Aqui o jurista busca especialmente a igualdade. Se uma norma jurídica determinasse o pagamento de um determinado imposto e impusesse alíquotas maiores para os contribuintes de ascendência japonesa, por exemplo, o jurista faria uma leitura restritiva da norma jurídica, considerando que uma de suas partes é altamente atentatória aos direitos fundamentais, que preveem a igualdade entre todos. E a interpretação extensiva é aquela que aumenta o campo de possibilidades hermenêuticas de uma norma jurídica. As hipóteses normativas são ampliadas pelo jurista, de tal modo que previsões originalmente não estipuladas passem a ser compreendidas no âmbito de implicações de uma determinada norma. Em alguns ramos do direito, como no direito penal e tributário, a interpretação extensiva é afastada. 

7. Interpretação e integração

É costume que a teoria do direito faça uma distinção entre os métodos de interpretação e os métodos de integração do direito. Os métodos interpretativos, em geral, partiriam da própria norma jurídica, buscando fixar-lhe os conteúdos precisos. Já a integração partiria de lacunas no ordenamento jurídico, e, perante tais situações não normatizadas, o intérprete busca trazer elementos novos que preencham o alegado vazio normativo. Fundamentando a discussão a respeito da possibilidade de se fazer a integração normativa está a clássica divisão liberal-burguesa dos três poderes estatais: executivo, legislativo e judiciário.
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ESTUDO DE CASO II (Michael J. Sandel - Justiça - O que é fazer a coisa certa?)

PRESTADORES DE SERVIÇO

Muitas das nossas mais acaloradas discussões sobre justiça envolvem o papel dos mercados: O livre mercado é justo? Existem bens que o dinheiro não pode comprar - ou não deveria poder comprar? Caso existam, que bens são esses e o que há de errado em vendê-los? 

A questão do livre mercado fundamenta-se basicamente em duas afirmações - uma sobre liberdade e a outra sobre bem-estar social. A primeira refere-se à visão libertária dos mercados. Segundo essa ideologia, ao permitir que as pessoas realizem trocas voluntárias, estamos respeitando sua liberdade; as leis que interferem no livre mercado violam a liberdade individual. A segunda adota o argumento utilitarista para os mercados. Esse argumento refere-se ao bem-estar geral que os livres mercados promovem, pois, quando duas pessoas fazem livremente um acordo, ambas ganham. Se o acordo as favorece sem que ninguém seja prejudicado, ele aumenta a felicidade geral.

Céticos do mercado questionam esses argumentos. Eles afirmam que as escolhas de mercado nem sempre são tão livres quanto parecem. E afirmam também que certos bens e práticas sociais são corrompidos ou degradados se implicarem alguma transação com dinheiro. Por exemplo:

A BARRIGA DE ALUGUEL

William e Elizabeth eram um casal do profissionais liberais que morava em Tenafly, New Jersey - ele era bioquímico e ela, pediatra. Eles queriam ter um filho mas podiam conceber, pelo menos não sem que isso trouxesse riscos para a saúde de Elizabeth, que sofria de esclerose múltipla. Então entraram em contato com um centro de tratamento de infertilidade que intermediava gravidez "de aluguel" - mulheres dispostas a carregar um bebê no ventre para outra pessoa em troca de compensação financeira.

Uma das mulheres que responderam ao anúncio foi Mary Beth Whitehead, de 29 anos, mãe de duas crianças e casada com um trabalhador da área de saneamento. Em fevereiro de 1985, William Stern e Mary Beth Whitehead assinaram um contrato. Mary Beth aceitou se submeter a uma inseminação artificial com o esperma de William, gerar o bebê e entregá-lo a William após o nascimento. Ela também concordou em abrir mão de seus direitos maternos, para que Elizabeth Stern pudesse adotar a criança. Por sua vez, William aceitou pagar a Mary Beth a quinta de 10 mil dólares (por ocasião do parto), além das despesas médicas. (Ele também pagou 7.500 dólares ao centro de tratamento de infertilidade pela intermediação).

Após várias tentativas de inseminação artificial, Mary Beth engravidou e, em março de 1986, deu à luz uma menina. Os Sterns, ansiosos por adotar logo a filha, deram-lhe o nome de Melissa. Mas Mary Beth decidiu que não conseguiria abrir mão da criança e resolveu ficar com ela. Ela fugiu para a Flórida com o bebê, mas os Sterns conseguiram uma ordem judicial para que ela lhes entregasse a criança. A polícia da Flórida encontrou Mary Beth e o bebê foi entregue aos Sterns e a batalha pela custódia foi parar na Justiça de New Jersey.

O juiz tinha de decidir se deveria fazer valer o contrato ou não. O que você acha que seria a coisa certa a fazer? Para simplificar, concentremo-nos na questão moral, deixando de lado a questão legal. Acontece que New Jersey não tinha leis que permitissem ou proibissem contratos sobre gravidez de aluguem na época. William Stern e Mary Beth Whitehead haviam assinado um contrato. Moralmente falando, ele deveria ser cumprido?

O argumento mais forte a favor do cumprimento do acordo é que trata é trato. Dois adultos, espontaneamente, estabeleceram um acordo que traria benefícios para ambas as partes: William Stern teria um filho biológico e Mary Beth Whitehead receberia 10 mil dólares pelos nove meses de trabalho.

É verdade que essa não foi uma transação comercial comum. Assim, poderíamos hesitar em fazer com que o contrato fosse cumprido por um dos dois seguintes motivos: Primeiramente, poderíamos questionar se o fato de uma mulher aceitar ter um bebê e entregá-lo a outra pessoa por dinheiro seria uma decisão fundamentada. Estaria ela realmente segura quanto aos sentimentos que teria quando chegasse o momento de abrir mão da criança? Se isso não posse possível, poderíamos argumentar que seu consentimento inicial teria sido prejudicado pela necessidade de dinheiro e pela falta do conhecimento adequado sobre o que representaria, na verdade, o fato de abrir mão do filho. Em segundo lugar, poderia haver objeções quando ao fato de vender bebês ou de alugar a capacidade reprodutora de uma mulher, ainda que ambas as partes houvessem concordado com isso conscientemente. Poderíamos ainda argumentar que essa prática transforma crianças em mercadorias e explora mulheres ao tratar a gravidez e o parto como uma transação comercial.

O juiz Harvey R. Sorkow, encarregado do julgamento do caso que se tornou conhecido como "Baby M", não se deixou persuadir por nenhuma das objeções anteriores. Ele alegou a invulnerabilidade dos contratos e exigiu o seu cumprimento. Trato é trato, e a mãe que gerara a criança não tinha o direito de quebrar um acordo simplesmente por haver mudado de ideia.

O juiz fez considerações sobre ambas as objeções. Primeiramente, negou que a aquiescência de Mary Beth tivesse sido involuntária ou que ela tivesse sido de alguma forma influenciada: "Nenhuma das partes estava em vantagem em relação à outra. Cada uma tinha aquilo que a outra queria. O valor do serviço que cada uma teria de realizar foi estipulado e o trato foi feito. Ninguém foi forçado a coisa alguma. Tampouco lançou-se mão de qualquer artifício que colocasse a outra parte em desvantagem. Ambas as partes tinham o mesmo poder de barganha."

Em seguida, o juiz rejeitou a ideia de que a gravidez de aluguel é um comércio de bebês. Ele alegou que William Stern, o pai biológico, não comprou uma criança de Mary Beth Whitehead; ele pagou a ela pelo trabalho de engravidar e dar à luz seu filho: "Em um nascimento, o pai não compra o bebê. Ele é seu filho biológico e carrega sua herança genética. Um pessoa não pode comprar aquilo que já é seu." Segundo o raciocínio do juiz, uma vez que o bebê foi concebido a partir do esperma de William Stern, ele era seu filho. Portanto, não houve comércio de bebê. O pagamento de 10 mil dólares foi feito por um serviço (a gravidez e o parto), e não por um produto (a criança).

Quanto à alegação de que tal serviço é uma exploração da mulher, o juiz Sorkow discordou. Ele comparou a gravidez de aluguel à doação de esperma. Já que homens podem vender seu esperma, as mulheres deveriam poder vender sua capacidade reprodutiva: "Se um homem pode oferecer meios para a procriação, uma mulher pode, igualmente, fazê-lo." Qalquer objeção a isso, declarou, seria privar a mulher da proteção igualitária da lei.

Mary Beth Whitehead apelou à Suprema Corte de New Jersey. Por unanimidade, a corte anulou a sentença do juiz Sorkow e declarou inválido o contrato da gravidez de aluguel. A corte deu a custódia de Baby M para William Stern com base no fato de que essa seria a melhor opção para a criança. Contrato à parte, a corte considerou que os Sterns teriam melhores condições de criar Melissa. Entretanto, restituiu a condição de mãe para Mary Beth Whitehead e determinou à Justiça comum que estipulasse direitos de visitação.

O relator, o presidente da Suprema Corte Robert Wilentz, rejeitou o contrato de aluguel, argumentando que ele não havia sido verdadeiramente voluntário e que constituía comércio de bebês.
Primeiramente, apontou falhas no consentimento de Mary Beth. Concordar em gerar uma criança e entregá-la após o nascimento não foi um ato realmente voluntário, porque Mary Beth não tinha condições de saber, de fato, o que isso implicava. "De acordo com o contrato, a mãe natural se comprometeu de forma irrevogável antes de conhecer a força dos seus laços com a criança. Ela não poderia ter tomado uma decisão totalmente voluntária, consciente, pois é evidente que qualquer decisão antes do nascimento do bebê é, no sentido mais importante, uma decisão desinformada."

Depois do nascimento da criança, a mãe está mais preparada para tomar uma decisão consciente. Entretanto, a essa altura sua decisão não é livre; ela sofre as pressões da "ameaça de um processo e da força persuasiva de um pagamento de 10 mil dólares", o que a torna "não totalmente voluntária". Além disso, a necessidade financeira faz com que seja provável que mulheres pobres "optem" por ser barrigas de aluguel para os ricos, em vez do contrário. O juiz Wilentz sugeriu que isso também colocava em questão o caráter voluntário de tais acordos: "Duvidamos que casais inférteis das camadas sociais mais baixas encontrem pessoas de camadas mais altas dispostas a fazer com eles um contrato de gravidez de aluguel." 

Assim sendo, uma das razões para o cancelamento do contrato foi o consentimento comprometido. Mas Wilentz deu outra razão, ainda mais fundamental: "Deixando de lado a grande necessidade financeira e a sua falta de informações quanto às consequências que poderiam advir, sugerimos que seu consentimento tenha sido irrelevante. Existem algumas coisas em uma sociedade civilizada que o dinheiro não pode comprar."

A gravidez de aluguel configura comércio de crianças, afirmou Wilentz, e o comércio de crianças é ilegal, por mais que seja voluntário. Ele rejeitou o argumento de que o pagamento tivesse sido pela gravidez de aluguel, e não pela criança. De acordo com o contrato, 10 mil dólares seriam pagos apenas depois que a mãe abrisse mão da custódia do bebê e de todos os seus direitos maternos. "Trata-se de venda de uma criança ou, na melhor das hipóteses, da venda dos direitos de uma mãe sobre seu filho. A única atenuante é que o comprador é o pai (...) [Um] intermediário, incentivado pelo lucro, promove a venda. Qualquer que tenha sido o idealismo que motivou os participantes, o objetivo do lucro impõe-se, permeia e, finalmente, comanda a transação." 

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