Introdução ao Estudo do Direito -201 8.1 -Considerações sobre os conceitos de (Justiça, Lei, Faculdade, Fato Social, Ciência)
"Para que algo se mostre é necessário um desentranhamento do encoberto, a fim de que ele possa chegar a mostrar-se. Portanto, a palavra "fenomenologia" (= direito) não significa apenas "descrição daquilo que é dado"; ela inclui a supressão do encobrimento que não precisa consistir apenas em falsas construções teóricas. "(Hans George
Gadamer).
Com base no resultado
das pesquisas de André Franco Montoro (Introdução à Ciência do Direito), dentre outros, é possível conferi r que:
"Talvez em nenhuma época, como hoje, o estudo e a prática
do direito tenham se identificado tanto
com a própria defesa da civilização e do humano.
Em qualquer das modalidades de atuação,
como juiz, promotor,
delegado, consultor, administrador ou legislador cabe ao jurista trabalhar
permanentemente para assegurar
a cada homem o respeito
que lhe é devido. E defender, assim, aquela realidade fundamental que é a fonte das fontes do direito:
a pessoa humana.
Ao lado dos técnicos
da ad ministração, da economia
ou da cibernética, os homens do direito têm a missão insubstituível de fazer com que o desenvolvimento da sociedade se processe em termos de justiça,
isto é, que se assegure a cada homem e a todos os homens o respeito aos direitos que lhe são devidos.
Por isso, a Nação entrega às Faculdades de Direito a tarefa humanizadora, essencial ao
desenvolvimento, de formar cidadãos que serão, na vida nacional, os lutadores permanentes da justiça e da liberdade.
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
A disciplina tradicionalmente denominada "Introdução à Ciência
do Direito" recebeu nova designação oficial:
"Introdução ao Estudo do Direito'',
por iniciativa do Conselho Federal de Educação,
que, em 28 de janeiro de 1972, aprovou o currículo mínimo para os cursos de Direito.
OBJETIVOS DO CURSO DE INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
Quais os objetivos de um curso de Introdução ao Direito?
Essa pergunta
é fundamental, se quisermos
examinar criticamente
os atuais cursos e introduzir neles modificações que correspondam às expectativas e necessidades de um estudante
que inicia o estudo
do Direito. Sem a fixação dos objetivos,
é impossível avaliar a eficiência de qualquer
curso.
No caso do curso
de Introdução à Ciência do Direito, pensamos que os principais objetivos podem ser assim
indicados:
1) Proporcionar aos alunos uma vi são geral do campo do direito,
o que se desdobra naturalmente no conhecimento:
1.1. Da posição do direito no conjunto dos conhecimentos humanos;
1.2. Dos ramos do direito público e privado;
1.3. Das disciplinas
jurídicas fundamentais;
2) Introduzir os estudantes no conhecimento da terminologia jurídica e das categorias fundamentais do direito,
tais como a norma jurídica,
suas espécies e interpretação, o direito subjetivo
e o dever jurídico, a relação jurídica,
o sujeito ativo e passivo
e o objeto do direito,
a prestação jurídica,
a pessoa física e a jurídica, a sanção e a ação judicial, a estrutura e os poderes
do Estado, etc.
3) Conduzir
a uma tomada de consciência sobre a importância e o significado do direito na promoção
do desenvolvimento nacional, em termos de justiça, isto é, com o respeito à dignidade
pessoal de todos os homens.
A esse tríplice objetivo
procura atender o est1.1do respectivo, como se pode verificar pela distribuição das matérias
na grade curricular. Assim é oportuna
uma palavra sobre os métodos no ensino do Direito.
MÉTODOS DE ENSINO E APRENDIZAGEM
A reforma universitária, que se processa
no país, tem uma de suas justificativas na necessidade de ser assegurada ao estudante - o universitário especialmente - uma participação ativa no desenvolvimento dos cursos.
Daí que o aluno não pode continuar a ser simples ouvinte de preleções dos professores. Sua participação deve ser promovida
pelo exame e discussão de textos, casos concretos,
indicação e exibição de filmes,
jurisprudência e questões de interesse
real.
A divisão da turma em grupos, para a pesquisa
e debate de tais problemas, com a apresentação dos resultados perante
a classe, tem sido adotada com sucesso,
e servido de base para a exposição posterior e explicações do professor.
A realização de trabalho pessoal e escrito pelos alunos sobre temas relativos ao programa é outra forma de participação
ativa do estudante e com o propósito de facilitar essas e outras modalidades de participação e trabalho dos alunos no desenvolvimento do curso, há indicação de bibliografia e outras formulações pertinentes ao curso.
PLANO DE TRABALHO
O direito pode ser encarado
sob duas perspectivas diferentes: como elemento
de conservação das estruturas sociais, ou como instrumento de promoção das transformações institucionais
da sociedade, ou seja, direito conservador ou direito renovador.
É comum que, em países
plenamente desenvolvidos, estabilizados e organizados, prevaleça a função conservadora do direito. E a concepção
mais adequada a essa missão é a identificação do direito com "a lei",
e, por extensão,
ao "contrato", como lei entre as partes. Nesse sentido, é significativa a advertência com que fan1oso professor de Paris iniciava seu curso: "Não vim ensinar o direito,
vim expor o Código Civil".
Só que, principalmente nos países em desenvolvimento e h·ansfo1mação, o erro dessa posição é patente.
Fazer do direito
uma força conservadora é perpetuar o subdesenvolvimento e o atraso. Identificar o direito com a lei é errar duplamente, porque significa desconhecer o verdadeiro fundamento e condená-lo à estagnação.
Para fundamentar a missão renovadora
e dinâmica do direito em uma sociedade
em mudança, é preciso rever certos conceitos de base e afirmar,
na sua plenitude, o valor
fundamental, que dá ao direito
sentido próprio e dignidade:
a justiça.
Não se trata de um conceito
novo e sim permanente, que deve ser afirmado, estudado
e efetivamente aplicado,
se quisermos dar ao direito destinação verdadeira, que é a de ordenar a convivência e o
desenvolvimento dos povos. Aqui, é lícito afirmar
que o direito estará a serviço da justiça.
Nos contextos
clássicos de Aristóteles, Ulpiano, Cícero,
S. Tomás e outros, encontramos formulada a doutrina
básica da justiça, adaptada a uma real idade
profundamente diferente da atual. Encontram-se aí as sementes
para a elaboração ulterior de um pensan1ento jurídico-filosófico, que precisa ser desenvolvido e aplicado às novas condições da sociedade e ao direito moderno.
A esse respeito,
dois erros, a nosso ver, precisam
ser evitados. Primeiro, a simples repetição daquele pensamento, como se o mundo não houvesse
mudado. Segundo a
rejeição pura e simples dessa doutrina,
como se a mudança das condições sociais
destruísse as exigências
fundamentais do respeito
à pessoa humana.
Dito isso, então, vem a pergunta: que é o direito?
Na linguagem comum e na linguagem científica, o vocábulo direito é empregado com
significações diferentes. Os autores costumam distinguir dois sentidos
fundamentais:
1. O direito-norma, lei ou regra de ação ("norma agendi");
2. O direito-faculdade, poder de ação, prerrogativa (''facultas agendi").
Assim é a lição de Clóvis Beviláqua
(Teoria Geral do Direito Civil).
Mesmo assim, uma pesquisa mais rigorosa
revela outras significações, igualmente importantes, em que o termo "direito" é empregado em sentido
nitidamente enriquecido nas seguintes expressões:
1. O "direito" brasileiro proíbe
o duelo;
2. O Estado tem "direito" de cobrar impostos;
3. O salário é "direito" do trabalhador;
4. O ''direito" é um setor da realidade
social;
5. O estudo do ''direito" requer métodos próprio.
Cada uma dessas
frases emprega uma das significações fundamentais do ''direito". Na primeira, "direito" significa a lei ou norma jurídica (direito-norma); na segunda, "direito" tem o sentido de faculdade ou poder de agir (direito-faculdade ou direito-poder-dever);
na terceira, indica o que é devido por justiça (direito-justo); na quarta, o direito é considerado fenômeno social
(direito-fato social); na última, ele é referido
como disciplina científica (direito-ciência).
São cinco realidades distintas. E, se quisermos
saber o que é o direito, precisamos estudar o conteúdo
essencial de cada uma dessas
significações.
Para isso, podemos
traçar um plano de trabalho,
que pode ser:
1ª parte - O
direito como ciência
(Epistemologia Jurídica) 2ª parte
- O direito
como justo (Axiologia
Jurídica)
3ª parte - O direito como norma (Teoria
da norma jurídica)
4ª parte - O direito como faculdade (Teoria
dos direitos subjetivos) S3 parte -
O direito como fato social (Sociologia Jurídica).
O DIREITO COMO CIÊNCIA (Epistemologia Jurídica)
Ao estudar
o direito como ciência, devemos naturalmente examinar
sua definição, assim como o lugar que ele ocupa no conjunto das ciências e a natureza
de seu objeto. Tais
problemas pertencem ao campo da Epistemologia Jurídica.
Assim é que Epistemologia, do grego "epistême" (ciência) e "logos"
(estudo), significa etimologicamente "teoria da ciência". Nesse sentido, podemos dizer, com Machado Neto, que "tratar da ciência
do direito, ainda que para o mister
elementar de defini-lo, é fazer Epistemologia ".
Há, entretanto, na linguagem filosófica, certa imprecisão e diversidade de conceitos sobre a exata significação do vocábulo. Lalande, por exemplo, define Epistemologia como "o estudo crítico
dos princípios. das hipóteses
e dos resultados de cada ciência". E, em nota, esclarece que a palavra
inglesa "Epistemology " é frequentemente empregada para designar
toda a "teoria do conhecimento" ou "gnosiologia ". Da mesma forma, os italianos, em geral, não costumam
distinguir epistemologia e teoria do conhecimento. De qualquer forma, os problemas citados: definição
de direito, sua posição
no quadro das ciências, a natureza de seu objeto, constituem inquestionavelmente temas de Epistemologia do Direito.
Conceituar o direito pode ser considerado corno defini-lo. E há duas espécies de definição:
l. Nominal, que consiste em dizer o que uma palavra ou nome significa;
2. Real, que consiste em dizer o que uma coisa ou realidade é.
Em obediência à recomendação da lógica, é o que vamos fazer em relação ao direito. Estudaremos, primeiramente a significação da palavra. Examinaremos, em seguida, a realidade
ou realidades que constituem o direito.
O estudo
das palavras não é destituído de valor. Pelo contrário, a palavra
homem é a expressão de seu pensamento. E, quando um vocábulo
é empregado durante
várias gerações para designar uma realidade, ele se apresenta cheio de conteúdo e significação. O nome é a experiência acumulada
e constitui, de certa forma, o limiar da ciência.
Retomando: que significa a palavra '"direito"? Qual a sua origem?
Nas línguas
modernas encontramos dois conjuntos de termos utilizados para exprimir a ideia de direito.
Um primeiro conjunto
liga-se ao vocábulo "direito", que encontra similar em todas
as línguas neolatinas e, de forma geral ,
nas línguas ocidentais modernas: "Droit" (francês);
"Diritto" (italiano); "Derecho "(espanhol); "Recht" (alemão); "Right" (inglês); "Dreptu" (romeno). Essas palavras tem origem num vocábulo do baixo latim:
"d
irectum ", que significa "direito" ou "reto"; "Rectum " ou "directum " é
o que é conforme a uma regra. Ao lado desse, existe outro conjunto de palavras que, nas línguas modernas
, liga se à noção de direito. Esse conjunto é representado pelos vocábulos: "jurídico ", "jurisconsulto ", "judicial ", ''judiciário", "jurisprudência" etc., que encontram, também , similar em quase
todas as línguas
modernas.
E qual a origem desses vocábulos?
É visível que a etimologia dessas palavras encontra-se no termo latino "jus "-"juris ", que significa "direito". Ainda assim,
se remontarmos um pouco além e formos investigar
a significação originária do vocábulo "jus ", encontraremos, pelo menos,
duas origens diferentes indicadas pelos filólogos. Alguns
pretendem que "jus " se tenha constituído no idioma latino, como derivado de "jussum ", particípio passado do verbo "jubére ", que significa: mandar, ordenar. E apontam,
nesse
sentido, ce11as fórmulas
que eram usadas nas Assembleias Curiais
em Roma, nas quais os cidadãos, depois de discutirem as leis, decid iam sobra
a promulgação. A fórmula usada então, para encerramento da discussão, era a seguinte: "Jubéate quirites" (mandai cidadãos),
ou então "adséntite jubére quirites" (concordai em mandar
, cidadãos). Há muitas outras: "justum ", "yu'', "Yós",
"diké'', etc.
Para completar
a indicação das origens do vocábulo "direito", convém citar, também, a palavra grega correspondente. Trata-se
do vocábulo ''dik", que significa indicar.
Não há, entretanto , nas línguas modernas
palavras vinculadas ao "diké" grego. Apenas nos trabalhos eruditos esse termo é mencionado . Esse fato confirma
um dos aspectos conhecidos
da história da cultura. Quase todas as palavras ligadas
ao direito, são de origem latina. O que revel a a influência poderosa
do direito romano sobre o direito
moderno , ao lado da influência quase nula da cultura grega, nesse particular.
Em outros setores, como na filosofia, nas artes e nas ciências especulativas, foi profunda a influencia da cultura helênica.
No campo do direito, quase nada encontran1os que nos liga à Grécia. A influência decisiva nesse campo foi de Roma. O gênio prático dos romanos contrasta
com a sabedoria especulativa dos gregos. No campo do pensamento puro os gregos
foram notáveis. Pode dizer-se que não houve em Roma filósofo que mereça ser posto ao lado de Sócrates,
Platão ou Aristóteles. Do ponto de vista prático
- e o direito se situa
nesse campo -
os romanos foram insuperáveis. E o monumento jurídico
que eles deixaram
à humanidade, o Direito
Romano, comunicou-se até nós e ainda
influi poderosamente no direito contemporâneo.
Não podemos
nos limitar ao estudo do vocábulo.
Devemos passar do plano das palavras para o das realidades.
Consideremos as expressões seguintes:
1 - o direito não permite o duelo;
2 -
o Estado tem o direito
de legislar;
3 - a educação é direito da criança;
4 - cabe ao direito estudar
a criminalidade;
3 - a educação é direito da criança;
5 - o
direito constitui um setor da vida social.
Se atentarmos para a significação do vocábulo "direito", nessas diversas expressões, verificaremos que, em cada uma, ele significa coisa diferente.
Assim, no primeiro caso
- "o direito não permite o duelo" - "direito" significa a norma, a lei, a regra social
obrigatória (norma).
Na segunda
expressão - "o Estado tem o direito de legislar" - "direito" significa a faculdade, o poder, a prerrogativa,
que o Estado
tem de decretar leis (faculdade).
Na terceira expressão
- "a educação é
direito da criança" - "direito" significa o que é devido por
justiça ou o que é justo).
Na última expressão - "cabe ao direito
estudar a criminalidade" - "direito" significa ciência, ou, mais exatamente, a ciência
do direito (ciência).
Na última expressão - "o direito representa um setor da vida social" - "direito·' é considerado como fenômeno da vida coletiva. Ao lado dos fatos econômicos, artísticos, culturais, esportivos, etc., também o direito é um fato social.
Temos assim, cinco realidades diferentes, a que correspondem as acepções fundamentais do direito. Um estudo mais detido nos revela que, partindo destas, podemos chegar, ainda, a outras significações, de menor importância.
Direito,
no sentido de lei ou norma, é urna das
acepções mais comuns
do vocábulo. Muitos autores o denominam "direito objetivo
",
em oposição ao "direito subjetivo" ou "direito faculdade". que é sempre
uma prerrogativa do sujeito ("subjectum").
Essa denominação, no entanto, é imprópria, porque outras acepções do direito, como justo ou fato social são também, objetivas. Direito objetivo não é apenas a lei.
Inúmeras definições
correntes referem-se à acepção do direito como lei. Assim, por exemplo, a de Clóvis Beviláqua, que, em "Teoria Geral do Direito Civil", conceitua o direito como:
"uma regra social obrigatória". Ou a de Aubry
e Rau: "O Direito é o conjunto de preceitos
ou regras, a cuja observância podemos obrigar
o homem, por uma coerção exterior ou física". É esse, também, o caso da definição
de Ihering que considera o direito
como "um conjunto de normas, coativamente garantidas pelo poder público".
Só que o direito, na acepção de norma ou lei, indica real idades diferentes, quando se refere:
1 -ao direito positivo
e ao direito natural;
2 - ao direito estatal e ao direito não estatal (ou social).
O Direito
Positivo é constituído pelo conjunto de normas elaboradas por uma sociedade determinada, para reger a própria vida interna, com a proteção
da força social.
O Direito Natural significa
coisa diferente. É constituído pelos princípios
que servem de fundamento ao Direito Positivo.
A palavra "direito" indica realidades diferentes
num e noutro caso. Inúmeras interpretações inexatas
do Direito Natural decorrem, exatamente, do fato de se atribuir significação unívoca, isto é, uma única significação ao vocábulo "direito" em ambos os casos.
É, por exemplo, famoso
o ponto de vista de Oudot, jurista francês, para quem o Direito Positivo e o Direito Natural.
constituiriam dois Códigos
paralelos. Teríamos, ao lado de cada norma do Direito
Positivo, uma correspondente de Direito Natural.
Na acepção
de Oudot e dos chamados
"jusnaturalistas racionalistas'', o vocábulo "direito'', aplicado
ao Direito Natural e ao Direito
Positivo, teria a mesma significação. Seria unívoco.
Essa concepção
do Direito Natural,
é inaceitável. O Direito Natural,
na sua formulação clássica, não é um conjunto de normas paralelas
e semelhantes às do Direito Positivo.
É o fundamento do Direito Positivo.
É constituído por aquelas normas
que
servem de fundamento a este, tais como: ''deve se fazer o bem'', "dar
a cada um o que lhe é devido", "a vida social deve ser conservada", ''os contratos devem ser observados" etc., normas essas que são de outra natureza e de estrutura diferente
das do Direito Positivo.
Assim, distinção semelhante devemos estabelecer entre o direito estatal
e direito não estatal, também chamado direito grupal ou direito
social, por Gurvitch, Lévi-Bruhl, Geny e outros.
A palavra
"direito" aplica-se geral
mente às normas jurídicas elaboradas pelo Estado, para reger a
vida social, como por exemplo
a Constituição, o Código Civil e as demais lei s e decretos federais, estaduais e municipais etc.
Mesmo assim,
ao lado do direito estatal, existem
outras normas obrigatórias, elaborada por diferentes grupos sociais e destinadas a reger a vida interna desses
grupos sociais e destinadas a reger a vida interna desses grupos. Estão nesse caso, pelo menos em grande parte, o direito universitário, o direito esportivo, em parte o direito operário
ou do trabalho (estabelecido
por acordos ou convenções), as convenções
e
regi mentos
internos condominiais o direito
religioso
(canônico,
muçulmano,
etc.),
os
usos
e
costumes
internacionais, etc.
Os estatutos, regulamentos e demais
normas que regulamentam a vida de uma universidade, quando elaborados por esta, constituem um direito autônomo: o direito universitário.
O direito
que vigora dentro da comunidade esportiva. constitui outro exemplo. A atividade esportiva
está, entre nós, como em outros países,
regulamentada, não pelo Estado e sim pelas próprias organizações do esporte. Estas elaboram normas e até mesmo códigos que regulan1, com força obrigatória, a atividade espo1tiva. Existem, inclusive, Tribunais Esportivos, incumbidos da aplicação de tais normas.
Grande parte do moderno
direito do trabalho, que regula as relações de emprego e do trabalho, em geral, foi, principalmente nos países
da Europa, elaborada
pelas próprias organizações interessadas. Os sindicatos e outras organizações operárias e patronais, considerando usos e costumes coletivos. foram estabelecendo normas,
que passaram a regular, com força obrigatória, as relações
de trabalho em cada categoria
profissional. Não foi o Estado que elaborou essas normas. Foram os próprios
interessados. No Brasil o processo
foi diferente. Entretanto, em muitos setores ocorreu fenômeno
semelhante, como demonstra Oliveira
Viana, em "Instituições Políticas Brasileiras".
Do direito
religioso são exemplos
o direito canônico, o direito muçulmano, o judeu, o budista, elaborados pelas próprias comunidades e disciplinando, com normas precisas, a atividade espiritual de milhões de criaturas.
As regras
editadas pelos organismos internacionais, que se multiplicam e os usos e costumes internacionais, com força obrigatória, foran1 amplamente estudados por Grvitch, Geny, Lévy-Bruhl, Le Fur, constituem outras tantas manifestações do direito não estatal ou social.
Como observara
Gurvitch, esse direito
pode existir dentro do Estado,
ao lado do Estado e acima do Estado. Dentro
do Estado, como o direito
universitário ou o direito operário.
Ao lado do Estado, como o direito
canônico, que dispõe sobre matéria espiritual, enquanto o Estado regula
a atividade temporal.
Acima do Estado,
como os usos e costumes
internacionais.
Oportuno voltar, em algum momento, ao exan1e desse problema, que é amplamente estudado pela Sociologia Jurídica e pelo Direito moderno.
Por ora, importa esclarecer que o vocábulo "direito", aplicado ao direito estatal e ao direito
não estatal, tem significação diversa e não unívoca. É por isso que muitos autores não admitem que se denomine
"direito" a esses ordenamentos jurídicos não estatais. Tais autores defendem
a tese do "monismo jurídico". Negam caráter jurídico
aos ordenamentos não estatais. Afirmam,
como Kelsen, que só há um ordenamento jurídico: o estatal.
Recusam o "pluralismo jurídico". O que revela que não é no mesmo sentido que se emprega
a palavra "direito'·, num e noutro caso. É por só admitirem o sentido estrito
de "direito". que muitos autores negan1o caráter jurídico dos ordenamentos não estatais.
À segunda das acepções
fundamentais que encontramos: o direito-faculdade ou direito poder. Neste caso, o vocábulo
direito, com frequência, é empregado para designar
o poder de uma pessoa individual ou coletiva,
em relação a determinado objeto.
O direito de votar do cidadão, o de usar um imóvel, cobrar uma dívida, propor uma ação, são exemplos
de direito-faculdade ou direito subjetivo. Estão nesse caso, também, o direito de legislar
ou de punir, de que o Estado
é titular, o pátrio-poder exercido
pelos pais, etc. Cada um desses direitos é uma prerrogativa ou faculdade de agir. Uma "facultas agendi", em oposição
ao direito-lei, que é uma "norma agendi".
É nesse sentido
que Meyer define o direito como "o poder moral de fazer, exigir ou possuir alguma coisa". E
Ortolan, como "a
faculdade de exigir dos outros uma ação ou inação". Kant, por sua vez, refere-se a este sentido, ao definir o direito como "a faculdade de exercer aqueles atos, cuja realização universalizada não impeça a coexistência dos homens". Esse, é também, o
aspecto focalizado por Iheríng ao propor a seguinte definição de direito "é o interesse protegido pela lei''.
A expressão "direito subjetivo" explica-se e se justifica, porque o direito nessa acepção é
real mente um poder do sujeito. É uma faculdade reconhecida ao sujeito ou titular do direito.
Devemos, entretanto, distinguir duas acepções nitidamente distintas
de direito subjetivo:
1 - o direito-i nteresse;
2 - o direito-função.
Muitos direitos
são concebidos ou reconhecidos no interesse de seu titular,
como meios de permitir-lhe a satisfação das próprias necessidades materiais ou espirituais. É o caso
do direito à vida, à integridade física
ou à liberdade,
o direito de usar um imóvel ou
reivindicar uma propriedade. A esse tipo de direito subjetivo
dá-se a denominação de
direito-interesse.
Entretanto, ao lado do direito-interesse, instituído
em benefício de seu titular,
há outra categoria de direitos
subjetivos, instituídos em benefício de outras pessoas.
É o direito função, como o pátrio-poder dos pais, que é conferido
aos pais no
interesse do filho. O mesmo ocorre com o direito de julgar ou de legislar,
atribuídos ao juiz ou ao legislador, em beneficio da coletividade.
A palavra ''direito'', como foi expressado, é inda susceptível de outra significação, claran1ente distinta das anteriores, que coloca o direito em outra perspectiva e o relaciona com o conceito de justiça. Trata-se do direito na acepção de justo.
Dentro dessa acepção, devemos distinguir, também, dois sentidos
diferentes:
1 - Umas vezes "direito", na acepção de justo, designa
o bem "devido" por justiça.
Por exemplo, quando
dizemos que ''o salário é direito do trabalhador", a palavra
"direito" significa aquilo que é devido por justiça.
2 - Outras vezes "justo" significa a "conformidade" com a justiça.
Por exemplo, quando digo que "não é direito condenar
um anormal",
quero dizer, não é conforme à justiça.
São duas acepções diferentes, se bem que ambas relacionadas com o conceito
de justiça. A primeira
acepção pode ser denominada ''justo objetivo", porque direito
nesse caso é
aquele bem que é devido
a uma pessoa por exigência da justiça. Nesse sentido o respeito à vida é devido a todo homem, o pagamento
é devido ao vendedor, a aposentadoria é
devida ao empregado,
o imposto é devido
ao Estado, etc. A esse sentido é que se refere a definição de S. Tomás, segundo
a qual "direito é o que é devido a outrem, segundo
uma igualdade". É, também, a essa acepção
do direito, que se refere
o famoso conceito de
Ulpiano: "Justiça é a vontade
constante e perpétua
de dar a cada um o seu direito". É importante essa definição, não apenas por constar dos textos do Direito Romano, e sim por remontar
aos mais antigos estudos sobre o direito e ajustiça.
Em Aristóteles e Platão, por exemplo, encontran1os a mesma definição, com pequenas variações.
A palavra "direito" é aí empregada
no sentido de "justo objetivo". É o bem devido a outrem, segundo uma igualdade. É o objeto da justiça. Acepção
fundamental, como veremos, que é retomada
por ilustres juristas, como Karl Engisch,
Michel Vi lley e outros.
A ela corresponde, com exatidão,
o vocábulo 'us". E significa
o que é devido por justiça.
A segunda acepção ligada ao conceito de justiça é, como já expresso,
a conformidade com a justiça. No exemplo visto
- "não é direito condenar um anormal" - direito é sinônimo de justo,
e justo aí significa um qualificativo.
Indica
a conformidade com as exigências da justiça.
Encontramos definições
de direito que se referem a esta acepção.
Entre outras, podemos citar a de Liberatore: "direito é tudo o que é reto,
na ordem
dos costumes", onde está claramente indicada a conformidade com regra de conduta.
Num plano
inteiramente diferente dos anteriores, a palavra direito é, com frequência, empregada para designar a ''ciência do direito".
Quando falamos em estudar "direito", formar-se
em direito, doutor ou bacharel em direito, método ou objeto de direito, é no sentido de ''ciência" que
empregamos a palavra.
Entre as definições de direito que o consideram sob este prisma, podemos citar o
clássico conceito de Celso: "direito é a arte do bom e do justo" ou a definição
de Hermann Post: "direito é a exposição sistematizada de todos os fenômenos da v ida jurídica e a detem1inação
de suas causas".
Finalmente, numa perspectiva distinta
das anteriores, a palavra direito é empregada, principalmente pelos sociólogos, no sentido de fato social.
Ao realizar
o estudo de qualquer coletividade, a sociologia distingue diversas espécies de fenômenos sociais.
Considera os fatos religiosos, econômicos, culturais e, entre eles, o
direito.
O direito é,
então, considerado um setor da vida social,
independentemente de sua acepção como norma, faculdade, ciência
ou justo. E, como setor da vida social,
deve ser estudado sociologicamente. É dentro dessa perspectiva que se situa a Sociologia do Direito.
Sob esse aspecto,
Gurvitch define o direito
como ''uma tentativa
para realizar, num dano meio social, a ideia de justiça, através
de um sistema de normas
imperativo-atributivas''. O direito aí é considerado como a tendência
social no sentido da realização da justiça. É o direito como fato social. No mesmo sentido
é o conceito de Kohler:
"O direito é um fenômeno da cultura". Entre nós, Oliveira Viana situa-se
principalmente nessa perspectiva ao estudar as "Instituições Políticas
Brasileiras".
É essa, também, a perspectiva em que se coloca
Tobias Barreto, ao definir o direito como "o
conjunto das condições
existenciais e evolucionais da sociedade, coativamente asseguradas", ou, em fórmula mais atual, o conjunto
das condições de existência e
desenvolvimento
da sociedade, coativamente asseguradas.
As acepções fundamentais que acabamos de examinar são as que mais interessam
ao estudo jurídico. Entretanto, podemos acrescentar, ainda, outras
menos importantes, que são de uso corrente.
Direito é ainda empregado com o significado de '"reto", no sentido geométrico. Por exemplo, um
"segmento direito". isto é. Geometricamente reto.
É, ainda, usado para indicar uma operação
certa: "Este cálculo
está direito". Isto é. aritmeticamente certo.
Pode-se usar a palavra
para designa r um "homem direito", no sentido de ter uma conduta moralmente correta, ilibada.
Direito pode significar, finalmente, oposto
a esquerdo: lado
"'direito'·.
Evidentemente, essas últimas acepções
não apresentam interesse
jurídico. São mencionadas apenas
com o objetivo de fazer. na medida do possível, uma análise exaustiva das significações do direito.
DIREITO CONCEITO ANÁLOGO
Do exame que acabamos
de fazer decorrem
algw1ms conclusões. que devem ser explicitadas:
l - a
palavra "direito''
não designa apenas urna. e sim várias realidades distintas:
2
- em consequência, não é possível
formular urna definição ú nica do direito: devem ser formuladas diferentes definições. correspondentes às diversas realidades;
3
- o estudo
feito demonstra que o vocábulo
"direito" não é unívoco,
nem equívoco. e sim análogo.
Corno sabemos. a lógica divide os termos cm unívocos,
equívocos e análogos. Unívoco é o termo que se aplica a uma única real idade. Por exemplo: livro, homem, vegetal. Equívoco é o que se aplica a duas ou mais realidades radicalmente diversas.
Por exemplo: o termo
''lente". aplicado
ao professor e ao vidro refrativo. Análogo
é o termo que se aplica a diversas realidades que apresentam entre si certa semelhança. O termo análogo
é, assim intermediário entre o unívoco
e o equívoco. Exemplo:
o vocábulo "direito",
que designa a lei, a faculdade. a ciência. o justo, o fato social. Os termos análogos podem ser classificados em três categorias diferentes, correspondentes às diversas espécies de analogia:
1 - analogia intrínseca ou de proporção própria;
2
- analogia extrínseca, de relação ou de atribuição:
3
- analogia metafórica ou de proporção
imprópria ou figurada.
Dá-se a analogia intrínseca. ou de proporção
quando o vocábulo
é aplicado a diversa realidades, entre as quais existe uma relação de proporcionalidade. Exemplo: o vocábulo "princípio" aplica-se ao princípio (começo)
do d ia, ao princípio
(início) de uma estrada.
aos princípios da ciência. aos princípios morai
s. (Obs. Para compreender os Princípios Gerais do Direito. ler: ··o Conceito de Princípios entre a Otimização e a Resposta
Correta'\ tese de mestrado
de Rafael Tomaz de Oliveira. disponível na internet).
Essas diversas acepções são diferentes. "Princípio" não significa a mesma coisa nesses diversos casos. Existe
entre eles, uma proporção que se poderia assim enunciar: os princípios
da ciência estão para a ciência,
assim como o princípio do dia está para o d ia, assim corno o princípio da estrada está para a estrada. assim como os princípios morais estão para a conduta.
Em todas essas acepções. "princípio" significa aquilo de que alguma coisa, de qualquer forma,
depende.
Há, aí, uma analogia
de proporção, que é intrínseca. porque o termo
"princípio" encerra, em si mesmo, essa analogia. Não se pode dizer, por exemplo. que os fundamentos
da ciência, tenham mais a natureza de "princípio''
do que o começo
do d ia. Todos são aquilo de que alguma
coisa, de qualquer forma, depende. Esse
aditivo "de qualquer
forma'" indica normalmente a existência de uma analogia
intrínseca.
Outras vezes,
os termos apresentam outra espécie
de analogia: é a chamada
analogia extrínseca, de relação ou de atribuição.
Realiza-se esta analogia, quando o termo se aplica. em sentido direito
e próprio. a uma realidade. Também
se aplica, por extensão.
a outra realidade ou realidades. que mantem com a anterior, relações de dependência. geralmente causais.
Neste caso, o primeiro
objeto, aquele a que o termo se aplica em sentido
direito e próprio. é chamado •·analogado
principar·. E o objeto ou objetos a que o termo se aplica por extensão, denominam-se "analogados secundários" ou derivados.
Exemplo típico de analogia de relação ou extrínseca, é o que se dá com o vocábulo "sadio". Esse termo se aplica ao "homem sadio". ao "clima sadio". ao ''al i mento sadio" e à "cor
sadia''.
E prestarmos atenção
ao significado da palavra "sadio", em suas diversas
acepções. verificaremos que o vocábulo não tem a mesma significação em todos os casos. Dá-se aí uma analogia extrínseca ou de relação.
Qual dentre essas real idades
é aquela que, com propriedade. pode ser
denominada sadia? Quem é propriamente sadio? Ocl ima? O alimento?
O homem? A cor? É. evidentemente, o homem. O homem é que é sadio. O alimento
é chamado sadio, porque é uma das causas do homem sadio. O clima está no mesmo caso. A cor é sadia, porque é efeito ou manifestação da saúde. O vocábulo
sadio aplica-se, assim,
diretamente ao homem e. por extensão, a outras realidades, que mantem com ele relações de dependência (causa. efeito ou manifestação do homem sadio).
Percebe-se claramente que há diferença entre a estrutura
desta analogia e a que mencionamos no caso anterior.
Há, ainda, um terceiro
caso de analogia: metafórica, imprópria ou figurada. Nesta
espécie de analogia
o termo tem uma significação d i reta e própria, e se aplica também
a outras realidades,
em sentido figurado. em virtude de uma proporção
imprópria que se estabelece com a significação originária. Está no caso o termo "rei'·. que se aplica diretamente ao monarca na sociedade política e se
estende ao leão “rei” dos animais, ao “rei” do aço ou do café em acepção evidentemente metafórica ou figurada.
Entre essas significações há uma proporção figurada:
o monarca está para o
Estado, assim como o leão está para os animais, o rei do aço para os produtores de aço, etc.
Com
essas considerações, podemos passar ao exame do tipo de ou tipos de analogia existentes entre as diversas
significações do direito.
Do tema ocupou-se
largan1ente G. Renard, na segunda lição de ''Philosophie de l'instituition", dedicada
ao estudo do ''Papel da analogia na ciência jurídica· ·.
ANALOG IA ÀS DIVERSAS FACULDADE, CIÊNCIA, FATO
Qual a analogia existente
entre as acepções fundamentais do direito?
Sabemos que essas acepções fundamentais são o direito-norma, o direito-faculdade, o direito-justo, o direito-ciência e o direito-fato social. Há entre essas diferentes significações uma clara analogia de relação, isto é, o vocábulo "direito" aplica-se de forma principal
a uma dessas acepções e estende-se às demais, em virtude das relações reais -
e não apenas metafóricas -
que existem entre essas
acepções.
Qual é o sentido principal? Ou, em te1mos lógicos, qual o primeiro analogado?
Situa-se aí um dos problemas que divide autores e correntes jurídicas. Para grande número de juristas, o direito é, em primeiro lugar, um conjunto
de normas, leis
ou regras jurídicas. "Direito-norma" seria
o analogado principal. É sob esse
aspecto que o direito é estudado pela maioria
dos autores modernos. ·'A palavra direito designa
o conjunto de leis ou regras jurídicas aplicáveis à atividade dos homens' '. diz Planiol. "O direito é a norma das ações humanas na vida social,
estabelecida por uma organização soberana
e imposta coativamente à observância de todos", escreve
De Ruggiero. Na mesma linha, Kelsen define o direito
como "um sistema de normas que regulam o comportamento humano" e acrescenta: "O direito é
a norma primária, que estabelece
a sanção".
Outros preferem ver no '·direito-faculdade" ou direito subjetivo o significado fundamental. "O direito considerado na vida real (...) nos aparece como um poder do indivíduo", escreve Savigny.
Como observa Carlos Campos, o Código de Napoleão
foi construído sobre o
conceito do direito subjetivo. Os jurisconsultos romanos
fizeram uma teoria sólida sobre ele. Foi retomado pelos grandes juristas
dos séculos XVI e XVII. Está ao fundamento da Declaração Universal dos Direitos
Humanos e das demais Declarações de Direitos. Constitui a base de todo o direito privado e o ponto de partida
das modernas construções do direito público.
É esse, também, o ponto de vista em que se colocam, entre outros, Ihering, ao estudar "A luta pelo direito". Jayme de Altavila
ao pesquisar a '"Origem dos direitos dos povos", assim como o de Kant Hegel e demais autores
para quem o direito é fundamentalmente
liberdade.
Dessa posição, aproxima-se também a doutrina
egológica do direito, formulada
pelo jurista argentino Carlos Cóssio. "A
conclusão básica da
teoria egológica é que o direito é conduta e não n01ma". escreve
um dos autorizados seguidores da doutrina de Cóssio, no Brasil, o Prof. Machado Neto, da Universidade da Bahia. Para a concepção
egológica, o direito não é forma, e sim '"conduta humana em interferência intersubjetiva" (relacionamento entre sujeitos ou "egos''. daí a designação da doutrina "egológica"). E, entre as modalidades fundamentais desse relacionamento intersubjetivo que caracteriza o direito, está a ''faculdade", ao lado da ''prestação". do "'ilícito" e da "sanção" que com ela
se relacionam.
A moderna
sociologia jurídica considera
o direito sob outra perspectiva. "O
direito é o fenômeno social por excelência, escreveu H. Levy Bruhl, mais do que a religião,
mais do que a língua, mais do que a arte, ele revela
a natureza íntima do grupo social". Oscoe Pound define o direito
como: "o controle
exercido pela aplicação da força de que dispõe uma sociedade politicamente organizada."
É interessante observar
que a tendência ao sociologismo jurídico predomina de certa forma nos Estado Unidos e na Rússia. Nos Estados Unidos essa orientação é representada pela escola da jurisprudência sociológica de Benjamin
Cardoso. Roscoe Pound,
Gray, Uevelyn e outros.
Na Rússia, o sociologismo, de vinculação marxista
em que o jurista
soviético Stuchka define o direito corno ·'um sistema de relações sociais que corresponde aos interesses da classe dominante e está defendido pela força organizada dessa classe."
De outra parte,
muitos juristas vêm no direito, em primeiro lugar, uma ciência.
"A previsão do que os tribunais decidirão é o que eu entendo por direito''
escreveu Hol rnes. Previsão é conhecimento, estudo,
ciência. Já Ulpiano
definira o direito como "a ciência do justo e do injusto; e Celso como a "arte
do bom e do justo ou equidade". Na mesma linha situam-se, em geral, os mestres que consideram naturalmente o direito como disciplina a ser estudada
e transmitida às novas gerações.
Ao lado das diferentes perspectivas que acabam de ser examinadas,
coloca-se a dos que vêm no direito, fundamentalmente. o "justurn", isto é o "justo-objetivo'' ou. o "devido
por justiça" . É essa a concepção
tradicional que nos vem do Direito
Romano e é modernamente reafirmada por ilustres juristas,
como Geny, Villey, Engisch e outros.
A função
do juiz e do jurista,
em suas diversas atividades, consiste
sempre em descobri
r "o direito'', isto é, "o
justo" e assegurá-lo. A lei ("lex") não se confunde
com o direito ("jus"). A lei (direito-norma) não é propriamente "o direito", e sim uma das suas fontes. O
'·direito subjetivo'' também
não é a rigor o direito,
e sim o poder de exigi-lo ou o seu reconheci mento. Da mesma forma, o direito-fato social e o direito-ciência são claramente
acepções derivadas, vinculadas ao "justo" .
A norma ou lei é chamada "direito", porque
ela estabelece ou deve estabelecer o que é justo. A faculdade é denominada ''direito" porque ela é, de certa forma. o poder de exigi r o justo ou o seu reconhecin1ento.
Da mesma forma. a Ciência do Direito, é assim chan1ada, porque
é o conjunto de conhecimentos, que tem por objeto o justo e suas manifestações. E o direito
como fato social é, também, uma concepção derivada. Ele é o setor da realidade social.
que tende para a realização da justiça.
Essa interpretação corresponde à natureza fundamental do direito e ao ensinamento de grandes mestres. "Não é da regra que emana o direito. mas do direito ("jus") é
que se faz a regra", diz o velho brocardo
de Justiniano: "Non
ut ex regula jus sumatur, sede x jure. quod est, regula fiat".
No mesmo sentido é a lição contida na clássica definição de justiça de U I piano: "Vontade constante e perpétua de atribuir a
cada um o seu direito ("'jus suum cuique"). Qual o sentido da palavra "jus" nessa definição? É precisamente o justo objetivo. isto é. aquilo que é devido a cada um.
Modernamente, François
Geny conclui seu estudo sobre "A
ciência e a técnica no direito privado positivo", com o reconhecimento de que no fundo de todo o conteúdo do direito, encontra-se. como noção fundamental, a de justo.
que inclui a cm si. não apenas preceito de justiça particular. distributiva ou comutativa, mas também as exigências do bem comum e da justiça
social" com a final idade de assegurar a ordem essencial à manutenção e ao progresso
da sociedade humana.
E Engisch, depois de observar que o pensamento jurídico moderno se orienta em primei
ra linha pela lei, afirma
que ao lidar com a lei percebe-se claramente "algo que está por detrás da lei e que nós nos propomos chamar simplesmente DIREITO.
Essa e ', também, a lição contemporânea de Bobbio, ao lembrar que a '·teoria
de just iça", concerne ao fundo do direito e a "'teoria do direito-norma" concerne
à forma do direito. De Del Vecchio. ao afirmar
que a noção de justo é
à pedra angular de todo o edifício jurídico e Burdeau,
depois de enumerar
como fatores da norma jurídica:
a) o princípio afirmado pela regra; b) a obrigação
que ela impõe; c)
o fim que a justifica; conclui: - "a norma não vale por si mesma. mas apenas em consideração a um fim situado fora dela".
Nesse sentido, o justo objetivo é
a acepção fundamental do direito. Entretanto, no direito moderno, essa noção vem sendo, muitas vezes esquecida e
substituída pela premência
do direito-norma. Considera-se, de preferência, não o conteúdo
ou matéria do direito, mas seu aspecto formal ou obrigatoriedade.
Essa orientação deve ser atribuída à influência do positivismo jurídico
e a certo fetichismo pela lei e pelo contrato. Uma das grandes tendências do direito no século XIX foi a de endeusan1ento da lei. e
do contrato, como manifestações da vontade individual. Liga-se essa tendência ao voluntarismo ético e jurídico. cujas raízes,
no mundo moderno. vamos encontrar principal mente em Grotius,
Rousseau e Kant. Para esses autores, a vontade subjetiva, e não a real idade
objetiva, é o princípio fundamental da moral e
do direito. Dentro dessa concepção.
a lei, como ·'vontade gerar'. é que tem importância básica.
Esse primado da lei ou norma tem recuado diante da real idade
jurídica e social. Demonstrou-o. entre outros. Gastão Mori n. em dois estudos: "A
lei e
o contrato: a decadência de sua soberania" e "'A
revolta do direito contra o código".
O direito
não tem seu fundamento último na lei ou no contrato.
O direito é fundamentalmente o justo. É o que é "devido" a cada um. indivíduo ou sociedade. segundo um princípio fundan1ental de igualdade. simples ou proporcional. A lei é um instrumento
para a realização desse direito. Ela deve servi r de guia ao jurista e ser interpretada, sempre, em função de seu objetivo essencial,
que é o de assegurar a cada um indivíduo, Estado
ou outras instituições - o direito
que lhe é devido.
Essa consideração não diminui a importância da lei. Pelo contrário, a valoriza.
Nesse sentido
é oportuna a lição de Villey,
Professor da Faculdade
de Direito de Paris: "Se sou juiz e procuro a solução justa, sem ser escravo
das leis, tendo duas razões para as levar em conta. Em primeiro lugar, porque elas são o resultado, a realização de longos esforços da doutrina
para encontrar as regras do justo. Nossas
leis resumem o estado atual da ciência do justo. A esse título
elas nos servem de guia. E, de outro lado, já que o meu dever é equilibrar
e pesar todos os interesses presentes, não posso esquecer
que o interesse comum exige determinações fixas,
que a lei procura estabelecer." E acrescenta: "a nossa filosofia do direito
não ignora as leis, pelo contrário, demonstra e delimita a sua autoridade."
No mesmo sentido é a observação de Rodriguez Aguilera: "A lei pode ser justa ou injusta. O mesmo ocorre
com a sentença, embora seu destino natural
seja sempre a justiça. A dependência, entretanto, não é necessária. De uma lei injusta pode surgir, na sua aplicação, urna sentença
justa, ou que se aproxime
da justiça, por haver o Juiz superado a letra da lei, mediante
uma interpretação orientada pela justiça."
Outra aplicação
dos princípios da analogia pode ser feita em relação ao Direito Positivo e ao Direito Natural.
A palavra
"direito" não tem a mesma significação quando aplicada à lei natural
e a lei positiva.
Alguns autores empregam em sentido unívoco a palavra
"direito'', aplicada aos dois casos. É a posição
do Oudot e dos jus-naturalistas de orientação racionalista, que conceituam o Direito Natural
como um "direito" no mesmo plano de Direito Positivo. Para estes, como vimos, o Direito
Natural é um código paralelo aos códigos positivos. Ao lado de cada norma de Direito Positivo, teríamos
uma de Direito Natural.
Essa concepção, entretanto, é inadmissível. E. pelo menos em pai1e, é responsável pelo descrédito em que ficou o Direito Natural,
em certos setores científicos.
Se analisarmos o pensamento de muitos autores que negam o Direito Natural
veremos que na realidade eles negam
essa concepção de um Direito Natural paralelo a Direito
Positivo. Negan1
que o Direito Natural que o Direito Natural
seja "direito", em sentido unívoco,
isto é, no mesmo sentido
em que se fala do Direito Positivo. E têm razão. Na realidade, esse Direito Natural
não existe. É pura imaginação.
O Direito Natural é constituído, não por um conjw1to de preceitos paralelos
ao Direito Positivo, mas pelos princípios fundamentais do Direito Positivo.
A palavra
"direito", aplica-se a um e ao outro desses direitos, tem significação análoga. E a analogia 'que aí se realiza é a de relação. Em sentido direito
e imediato, a palavra direito se aplica ao Direito Positivo,
à Lei Positiva. Mas se estende também
ao Direito Natural, porque
este é o fundan1ento ou a base do Direito
Positivo. Entre ambos existe urna
relação de dependência, uma relação
causal: um é fundamento do outro.
Os princípios
que constituem o Direito Natural
são, entre outros:
o bem deve ser feito; não lesar a outrem; dar a cada um o que é seu; respeitar a personalidade do próximo et.
Qualquer norma do Direito
Positivo. qual quer norma do Código Civil, Comercial ou Penal funda-se necessariamente nesses princípios. Mas é evidente que as nom1as do Direito Positivo apresentam uma formulação,
estrutura e natureza diferentes dos princípios do Direito Natural.
Poderíamos dizer, com Aristóteles e São Tomás,
que o Direito
Natural está para o Direito Positivo, assim como os princípios da razão estão para a ordem especulativa. Na ordem especulativa as proposições e os raciocínios científicos também se fundam em certos princípios básicos, que são o fundamento
de toda a ciência.
Passemos ao exame do direito estatal. Direito designa, em geral, as normas elaboradas pelo
Estado. Mas se aplica, também. aos ordenamentos existentes no seio de outras comunidades:
esportivas, religiosas, econômicas, universidades etc.
Aplica-se, assim,
o vocábulo "direito" ao ordenamento jurídico-estatal, elaborado pelo Estado, e, ao mesmo tempo, aos ordenamentos jurídicos
elaborados pelos grupos sociais. Fala-se em direito esportivo, direito condominial, direito social do trabalho, direito canônico etc.
Estamos, novamente, em face de um problema
de importância para a ciência jurídica decorrente de uma compreensão ambígua do significado
do vocábulo "direito". aplicado a esses diversos ordenamentos. Grande parte dessas
dificuldades tem origem no fato de se considerar, no caso, o termo ''direito'' unívoco.
Muitos autores
negam o direito não estatal, porque este não tem a mesma estrutura, a mesma natureza e a mesma força do Direito Estatal. O Estatuto
de uma Universidade, por exemplo, não pode ser chamado "direito", no mesmo sentido
em que o é a Constituição ou o Código Civil. O mesmo se pode dizer do Direito Esportivo, do Direito Operário
e até do Direito Canônico ou do Condominial.
Na realidade, estamos em presença
de mais um caso
de analogia. O vocábulo
"direito'" não significa a mesma coisa,
nos diversos exemplos
mencionados, mas apresenta
significação analógica.
Qual o tipo de analogia que aí se realiza?
A analogia existente no caso é intrínseca ou de proporção.
E pode ser enunciada da seguinte forma: o Direito Estatal
está para o Estado, assim como o Direito
Universitário está para a universidade. assim corno Direito Esportivo está para a coletividade esportiva;
ou o Direito Religioso,
para a comunidade religiosa. Em todos esses casos, direito significa o ordenamento que rege a vida dessas coletividades.
No caso do Direito
Estatal, esse ordenan1ento se apresenta mais perfeito, é realizado através de normas formuladas
com certa solenidade e garantidas pela força coercitiva do Estado. No
caso dos demais ordenamentos, as
normas apresentam característica diferentes, mas constituem, igual mente. regras
sociais obrigatórias, com eficácia muitas vezes maior que a das normas estatais.
Em virtude de sua importância menor para a ciência jurídica, dispensemo-nos de examinar outras aplicações de analogia às demais acepções
do direito.
Poder-se-ia perguntar se, entre as acepções de direito,
existe algum caso de analogia metafórica. A resposta
é afirmativa. É essa a analogia existente entre "direito", no sentido jurídico, e "direito", no sentido geométrico. Pode-se dizer que o direito jurídico está para
a ordem social, assim como o direito geométrico está para
a ordem geométrica. Ambos significam a conformidade com uma regra:
com a regra ou norma
social, no primeiro caso; com a regra ou régua geométrica, no segundo.
CONCLUSÕES
Ao final desse estudo, podemos formular as seguintes conclusões:
1 - o direito
pode ser considerado como normas. como faculdade, como justo, como ciência ou como fato social;
2 - essas diferentes perspectivas revelam o caráter
analógico do conceito de direito;
3
- muitos autores modernos (Planiol,
Kelsen) ut i lizam, de preferência. o vocábulo ''direito" para indicar o direito-norma;
4
- outros preferem
ver no direito, em primeiro lugar, o
direito-faculdade (Cossio), o
direito-fato social (Levy
Bruhl) ou o direito-ciência (Holmes);
5
- a doutrina
clássica e muitos contemporâneos (V illey, Engisch)
consideram que o direito-justo (o que é devido a uma pessoa ou instituição)
é o significado fw1damental do direito; nesse sentido, direito é. fundamentalmente. o "devi do por justiça".
Essas diferentes posições não são contraditórias. Representam pontos de vista sobre aspectos diferentes de um mesmo objeto. Mas revelam, muitas vezes,
a orientação doutrinária
ou filosófica de cada autor e sua época.
Atualmente, a trágica experiência dos Estados
totalitários e dos regimes de força,
ao lado de uma reflexão
mais atenta sobre
o direito vivo - presente nas sentenças, nas decisões
administrativas e nos demais atos jurídicos - tem levado grandes
setores do atual pensamento jurídico
a reconhecer que o sentido fundamental do direito. em qualquer de seus
aspectos, consiste sempre
em estar a serviço da justiça ("Teu dever
é lutar pelo direito,
mas no dia em que encontrares o direito em conflito
com a justiça, luta pela justiça. " - Eduardo Couture), isto é, em assegurar a cada um aquilo que é devido, segundo
uma relação proporcional, fundada na igual dignidade de todos os homens.
Nesse sentido,
podemos aplicar a qualquer dos aspectos do direito a observação de Gurvitch: as normas jurídicas podem ser mais ou menos perfeitas,
mas não serão '·direito" se não estiverem orientadas no sentido da realização da justiça.
Presentes em todos os momentos da existência do direito, a justiça se encontra em todas as leis, mas não esgota
em nenhuma (Del Vecchio)".
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