domingo, 5 de junho de 2016

O Contexto Cultural na Formação do Sentido Perceptivo


     “Do ponto de vista da percepção, vemos a invariância do sentido perceptivo em face da mutabilidade dos elementos mais simples representados por subsentidos ou impressões sensíveis. No plano do ato perceptivo, que nos leva a uma intuição direta do objeto, não há uma decomposição do objeto e também não há referência a algo que não seja ele mesmo. Assim, não há, nesse plano, explicitação consciente de sensações isoladas, apercepção de agregados ou associação de sensações ou evocação atenta de elementos da memória, pois nada disso encontramos na intuição perceptiva direta (O papel da memória na percepção foi muito acentuado na psicologia clássica. No entanto, trata-se precisamente de destacar o critério pelo qual se seleciona a lembrança, visto ela não ter por si só a propriedade de se evocar adequadamente para compor um objeto da percepção). Ver uma conduta é ter diante de si formas físicas do corpo; movimentos singulares ou gestuais; características sensíveis do revestimento do corpo e matizes; objetos sobre o qual atua; entorno material; fundo especial; duração; mas, é preciso que se note com ênfase, a conduta não é só isso. Não digo que vejo somente formas, movimentos, fundo, cores, espaço, tempo, ambiente, mas sim, e principalmente, um processo integrado como conjunto indissociável, um fato, um evento – a conduta como unidade cultural, como objeto estrutural de sentido -, ao qual aqueles elementos pertencem ou cuja composição integram organicamente. E mais, a conduta, para ser efetivamente uma conduta e não um mero reflexo, faz referência à instância da finalidade para a qual ela se dispõe como conduta. Ela sempre se inclui em um todo cultural. Por isso, não vejo o ato ou a atividade em si mesma, senão em um horizonte e em um contexto, mesmo por suposição ou expectativa, nos quais os fatores de envolvimento cultural e valores dessa conduta lhe dão igualmente a base para o sentido perceptivo. O ambiente contextual e cultural da conduta faz parte do seu sentido. Por isso, seria ridícula ou estranha a conduta de estar em trajes de banho em um velório! Ou a de uma pessoa cozinhando com um chique chapéu de casamento! Ou a da pessoa estar carregando um guarda-chuva aberto dentro de casa! A tendência não é percebê-la com naturalidade ou apenas como natureza física. Por isso, haveria inevitavelmente sua tematização mediante a indagação (já não mais de natureza puramente sensitiva) do porquê de tal conduta estar ocorrendo. Perceber e compreender o sentido de uma conduta é imergi-la em um contexto cultural. [...]”.Pontua Alaôr Caffé Alves e foi assim que o STF decidiu: “Gerald Thomas consegue arquivar processo por atentado ao pudor.
O Supremo Tribunal Federal concedeu, nesta terça-feira (17/8), Habeas Corpus ao diretor teatral Gerald Thomas e determinou o imediato trancamento da ação penal proposta contra ele no Juizado Especial Criminal do Rio de Janeiro. Thomas foi acusado de praticar ato obsceno, previsto no artigo 233 do Código Penal.
A denúncia foi feita depois de o diretor abaixar as calças, mostrar as nádegas para a platéia e simular ato de masturbação ao reagir a vaias durante a montagem da ópera Tristão e Isolda, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 2003.
A decisão foi apertada -- houve empate no julgamento. O ministro Carlos Velloso, relator, e a ministra Ellen Gracie negaram o pedido, enquanto os ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello votaram a favor de Thomas.
O presidente da Turma, Celso de Mello, agiu de acordo com o Regimento Interno do STF que determina, no parágrafo 3º, do artigo 150 que, em casos de empate no julgamento de HC, prevalecerá a decisão mais favorável ao paciente.
O ministro Joaquim Barbosa considerou que não teria condições de votar porque não assistiu à sessão em que foi lido o relatório do caso.
Um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes suspendeu o julgamento em maio deste ano, depois de o ministro Carlos Velloso indeferir o pedido.
Ele considerou que a conduta atribuída a Gerald Thomas se ajustaria ao tipo inscrito do artigo 233 do Código Penal e que, para a configuração do crime, não é necessária a intenção específica de ofender o pudor público.
Liberdade de expressão
No julgamento, o ministro Gilmar Mendes abriu dissidência. Disse que, no caso, apesar de a manifestação do diretor teatral ter sido deseducada e de mau gosto, tudo não passou de um protesto grosseiro contra o público.
Segundo o ministro, quando simulou a masturbação, Gerald Thomas não estava pretendendo mostrar qualquer prazer sexual, mas que as vaias não lhe atingiam.
Segundo Gilmar Mendes, o contexto em que se verificou o fato não pode ser esquecido, pois tratava-se de um momento seguinte a uma apresentação teatral, depois de uma manifestação desfavorável do público, às duas horas da manhã.
"Difícil admitir, neste contexto, que a conduta do paciente tivesse atingido o pudor do público. Um exame objetivo da querela há de indicar que a discussão está integralmente inserida no contexto da liberdade de expressão, ainda que inadequada ou deseducada", disse.
De acordo com o STF, o ministro salientou que a sociedade moderna dispõe de mecanismos próprios e adequados a esse tipo de situação, como a própria crítica, "prescindindo-se do eventual enquadramento penal".
Já a ministra Ellen Gracie qualificou a conduta do diretor como “pouco edificante e esteticamente questionável", e que ele demonstrou desprezo pela opinião do público. "Figuras bem mais qualificadas, como Victor Hugo, adotaram postura de humildade diante daqueles que não compreenderam na época as inovações introduzidas nas suas criações".
Último a votar, o ministro Celso de Mello questionou se poderia se revestir como obsceno "um ato praticado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, às duas horas da manhã, perante um público culto e sofisticado".
Segundo ele, o conceito de obscenidade é variável no tempo e no espaço e, tendo em vista o contexto em que a conduta ocorreu, "tenderia a reconhecer que foi muito mais uma expressão, ainda que grosseira, mas de sua própria liberdade de manifestação e reação às vaias".
Ainda de acordo com Celso de Mello, quando a doutrina discute a questão de obscenidade para efeito de configuração no artigo 233 do Código Penal, o ato obsceno real ou simulado deve ter uma conotação sexual, transgredindo o sentimento de decência da coletividade.
"Isso ofenderia o pudor de coletividades interioranas em nosso país, em determinadas regiões, mas não me parece que na cidade do Rio de Janeiro, antiga capital federal, centro culturalmente evoluído, esse ato possa ser reconhecido como impregnado de obscenidade", finalizou. HC 83.996, Min. Gilmar Mendes.”.
“Ao perceber um comportamento, por exemplo, de comprar uma arma, não percebemos preliminarmente, em um processo ativo de compreensão, as qualidades sensíveis desse comportamento pelas impressões inarticuladas dos sense-data (=dados dos sentidos), mas também que o objeto adquirido é ofensivo para a vida humana ou animal; que a entrega da coisa se efetiva em uma loja e que, por isso, não será normalmente adquirida por doação, e sim por compra; que o vendedor faz a nota e lança um preço, fazendo-nos perceber a arma como mercadoria; que há um entendimento entre vendedor e comprador constitutivo de um negócio; que a arma está sendo adquirida com um propósito etc. Se uma criança de cinco anos percebe o mesmo fato, é quase impossível ela ter essa mesma percepção, embora as impressões (sense-data) dos sentidos não variem substancialmente entre nós. Por outro lado, seria bem incompreensível que víssemos uma criança de cinco anos, em uma loja, examinando com um balconista uma arma de fogo e tivéssemos o sentido perceptivo de ser um comportamento de compra e venda. Isso seria bem diferente se víssemos, em vez da arma, um saco de guloseimas. Note-se ser praticamente impossível separar a dimensão pragmática do objeto em relação à sua figuração percebida como sentido perceptivo; o contexto cultural está presente. A arma cumpre uma função defensiva ou ofensiva à vida que não pode deixar de ser instantaneamente percebida no objeto na medida em que nossa cultura permita ter a experiência desse objeto. Essa compreensão não existiria em um índio primitivo que não estivesse em contato com a civilização do branco. Há, é certo, um nível de indeterminação que pode nos confundir no ato de percepção: se a pessoa estivesse comprando uma faca, não saberíamos por certo, se não tivéssemos experiência antecedentes sobre ela, de suas intenções recônditas: se é para cortar algo (utilidade inocente) ou para matar alguém (arma). Claro que, se a compra fosse de um revólver, as intenções poderiam ser mais explícitas quer para a defesa quer para o crime. Um silvícola não aculturado, como dissemos, pode não perceber imediatamente um revólver como uma arma, por esta lhe ser estranha culturalmente.Isso significa que o objeto percebido não é o real em si mesmo, mas é precisamente o sentido perceptivo, aquele sentido que ao qual também fazemos referência com a estrutura linguística disponível em situações determinadas. Por essa senda, vê-se também que, nos atos perceptivos, não percebemos a coisa em si, neutra, independente de sua organização de sentido, em determinados níveis históricos e culturais da práxis social. Nesse sentido, vemos com muita clareza a impossibilidade da separação entre sujeito e objeto, mesmo na escala mais concreta de nossa experiência vital, representada pelo contato empírico-sensorial com os seres e processos do mundo.” Conclui o autor.

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