sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Argumento Duplo

     A técnica do argumento duplo consiste em buscar a adesão à tese mediante a adoção e o desenvolvimento do discurso com duas premissas, por exemplo: o real e a fantasia, por certo interesse. Essa técnica tem sido adotada, com certa frequência, para atribuir aos advogados a responsabilidade pela demora na soluções judiciais, o que para os desatentos ou ignorantes isso passa como sendo verdadeiro. Só que é sabido que quando se parte de uma premissa incompatível a solução, inevitavelmente, será também incompatível. Pois bem: Hannah Arendt (Crises da República, 3ª ed., São Paulo, Perspectiva, 2013, p.15), cujo trabalho trata, basicamente, da história do processo norte-america para tomada de decisões em política vietnamita, descrevera: "Uma das características da ação humana é a de sempre iniciar algo novo, o que não significa que possa sempre partir ab ovo, criar ex nihilo. Para dar lugar à ação, algo que já estava assentado deve ser removido ou destruído, e deste modo as coisas são mudadas. Tal mudança seria impossível se não pudéssemos nos remover mentalmente de onde estamos fisicamente colocados e imaginar que as coisas poderiam ser diferentes do que realmente são. Em outras palavras, a negação deliberada da verdade dos fatos - isto é, a capacidade de mentir - e a faculdade de mudar os fatos - a capacidade de agir - estão interligadas; devem suas existências à mesma fonte: imaginação. Não é de nenhum modo natural podermos dizer "o sol está brilhando", quando na verdade está chovendo (a consequência de certas lesões cerebrais é a perda desta capacidade); a rigor isto indica que, apesar de estarmos bem capacitados para o mundo, tanto sensual como mentalmente, não estamos adaptados ou encaixados a ele como uma de suas partes inalienáveis. Somos livres para reformar o mundo e começar algo novo sobre ele. Sem a liberdade mental de negar ou afirmar a existência, de dizer "sim" ou "não", - não apenas a afirmações ou proposições para expressar concordância ou discordância, mas para as coisas como se apresentam, além da concordância e discordância, aos nossos órgãos de percepção e conhecimento - nenhuma ação seria possível, e ação é exatamente a substância de que é feita a política.". Dessa forma, Adorno & Horkheimer (Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro, Zahar, 1985, p. 179/80 - em analisam a mitologia grega e sua influência na formação do conhecimento ocidental), descreveram: "O que levou os homens a superar a própria inércia e a produzir obras materiais e espirituais foi a pressão e externa. Nisto têm razão os pensadores, de Demócrito a Freud. A resistência da natureza externa, a que se reduz em última análise a pressão, prolonga-se no interior da sociedade através das classes e atua sobre cada indivíduo, desde sua infância, na dureza de seus semelhantes. Os homens são suaves, quando desejam alguma coisa dos mais fortes, e brutais, quando o solicitante é mais fraco que eles. Eis aí, até agora, a chave para penetrar na essência da pessoa na sociedade. [...] Sob o signo do carrasco estão o trabalho e o lazer. Querer negá-lo significa esbofetear toda a ciência e toda a lógica. Não se pode abolir o terror e conservar a civilização. Afrouxar o primeiro já significa o começo da dissolução. [...] Para Voltaire [...] Apesar de todos os feitos do poder, só o poder pode cometer a injustiça, pois só e injusto o julgamento seguido da execução, não o discurso do advogado que não é aceito. O discurso só participa da injustiça geral na medida em que ele próprio visa a opressão e defende o poder em vez de defender a impotência. - Mas o poder, sussurra de novo a razão universal, é representado por homens. Ao expor o poder, você faz desses homens um alvo. E depois deles virão talvez outros piores.". Pois bem, há quem sustente e li isto numa dissertação que: "No Plenário do Júri, atitudes conscientes ou inconscientes do uso espaço como forma de comunicação humana (Proxêmica) temos não apenas na proximidade do orador com seu público-ouvinte (o Conselho de Sentença), mas também na banco dos réus (onde o acusado senta-se, algumas vezes escoltado por policiais, em posição que sinaliza uma situação-limite, irrefragavelmente humilhante). Outro exemplo temos no costume de posicionar-se a cadeira do Juiz de Direito (não somente no Júri, mas nas audiências, de um modo geral) num plano ligeiramente (em alguns Fóruns não tão ligeiramente assim) superior ao dos demais profissionais do Direito, a indicar uma certa hierarquia, uma certa superioridade dada ao homem-juiz, como reflexo do que simboliza - a Justiça - muito embora tal hierarquia (entre Juiz, Promotor de Justiça e Advogado) ontológica ou legalmente não exista, vigorando inclusive dispositivos legais expressos regulando o tratamento mutuamente respeitoso e cordial.". Esse argumento é inconsistente porque: l) há, nele, confusão implícita tratando a regra (lei) como se fosse sinônimo de Direito ou ordem jurídica; 1) sabe-se que o Estado é superior sim; 3) quem tem o poder de decisão é o Estado, materializado no homem que exerce a função de Juiz; 4) a ordem jurídica é toda uma hierarquia; 5) superioridade hierárquica não implica, por si só, em falta de cordialidade e de respeito; 6) e o fato de existir regras (leis) não implica, por si só, que essas regras sejam legítimas e não contrariem a ordem jurídica. Essa forma de entendimento leva a que os próprios advogados assumam uma culpa (demora na prestação jurisdicional) que não é sua ontologicamente. Assim é que, em entrevista concedida à OAB/PR (Jornal da Ordem/PR, 165, 10/2012), o filósofo, livre-docente e professor titular da Universidade de Campinas, Roberto Romano da Silva, em certo momento, descrevera: "[...] O que é um processo judicial? É um equilíbrio, que deve ser o mais estável possível, dos componentes da acusação. da defesa, do juiz e, ocasionalmente, dos jurados. Se você desequilibra esse sistema e privilegia um desses elementos em detrimento dos outros, você não tem justiça. Não digo justiça absoluta, que não existe no planeta Terra, nunca vai existir. Mas você não se aproxima do ideal de justiça, você não tem os elementos fundamentais da justiça. E aí eu cito Platão. O que é justiça? Justiça é um bicho que está dentro da moita e pode fugir pelo meio das pernas da gente. É muito difícil você agarrar a justiça. Você pode começar um processo com razão e três passos depois pode perder essa razão, desde que não tenha o respeito próprio e o respeito do outro. Assim, um juiz pode ter agido durante todo o processo de maneira correta e, num determinado momento, ele cochila. Aqui no Brasil você tem uma tradição de grandes defesas porque, infelizmente, você tem uma tradição de pouca justiça. Por que Sobral Pinto, Evandro Lins e Silva, são considerados heróis da advocacia? Porque o Sobral Pinto teve que apelar para a lei de proteção dos animais para defender o Luiz Carlos Prestes. Porque tinha juiz que não ouvia. Então, esse sistema precisa ser pensado bem. Se você precisa de um advogado herói, é porque você não tem um sistema de Direito adequado. A função da advocacia, no meu entender, é importantíssima porque ela apresenta o outro lado da acusação e permite que o juiz tenha uma visão multilateral do que está em jogo. Esse equilíbrio no Brasil não existe e essa pesquisa sobre a confiabilidade da justiça mostra bem isso: que o jurisdicionado não respira dentro do tribunal. Quanto mais ele precisa da presença do advogado para garantir o mínimo, evidentemente é porque o tribunal não está vendo os dois lados. Esse é um problema sério.". Com esses fragmentos expostos, fica demonstrado que o uso da técnica do argumento duplo, busca-se inserir, no discurso, premissas incompatíveis com a realidade, para obter a adesão do destinatário desatendo ou ignorante sobre a matéria, no sentido de passar, de modo ilegítimo, a responsabilidade real pelas disfunções judiciais. É importante notar que o Estado é o que decide e os advogados não poderiam cair na armadilha de discursos com esse viés.

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